sábado, 31 de janeiro de 2015

Asilo nas Torres, Ruth Bueno

Asilo nas Torres, Ruth Bueno. 152 páginas. Apresentação de Octavio de Faria. Coleção Autores Brasileiros, nº 38, Editora Ática, São Paulo, 1979.

O período entre 1975 e 1982, aproximadamente, é tido como perdido para a ficção fantástica brasileira, quando o gênero entrou numa hibernação que só terminaria com o surgimento dos fã-clubes e fanzines dedicados ao tema, quando despontou uma nova geração de fãs e autores que desconhecia totalmente aquelas que a antecederam. Desde então, a restauração dessa memória tem sido trabalho de muitos especialistas e muito já foi recuperado. Mas aquele período, em especial, ainda parece uma falha na evolução do gênero no país.
O Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica dedicou-se, desde o princípio, a identificar as obras históricas dos gêneros fantásticos de autores brasileiros e, aos poucos, logrou preencher lacunas que permitem observar com mais precisão a real trajetória da fc&f nativa. E o que se  percebe é que não houve, de fato, uma estagnação naqueles oito anos.
Obras de grande vigor e criatividade foram publicadas naquele período, porém uma coisa realmente se deu: os autores que as escreveram não estavam vinculados ao fandom anterior – chamado de Primeira Onda ou Geração GRD –, nem se vincularam depois à dita Segunda Onda, surgida nos fanzines. Eram, geralmente, autores experientes, de carreira feita, que ousaram adotar o gênero para estabelecer algum tipo de reflexão política e social que os anos de chumbo esforçavam-se em obliterar.
São desse período, por exemplo, O necrológico, de Vitor Giudice (1972), Sombra dos reis barbudos, de José J. Veiga (1972), Fazenda modelo, de Chico Buarque (1974), Catatau, de Paulo Leminski (1975), O fruto do vosso ventre, de Herberto Salles (1976), As mulheres dos cabelos de metal, de Cassandra Rios (1976), A invasão, de José Antônio Severo (1979), Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão (1981), Mistérios, de Lygia Fagundes Telles (1981), entre outros. Ou seja, aqueles "anos perdidos", na verdade, revelaram algumas das mais importantes obras da ficção fantástica nacional. E entre elas figura também o objeto desta resenha, Asilo nas Torres, de Ruth Bueno, publicado em 1979.
Ruth Bueno é a assinatura literária de Ruth Maria Barbosa Goulart Bueno (1925-1985). Mineira de Juiz de Fora, ficcionista, poetisa, ensaísta, advogada e professora de Direito, sua estreia na literatura aconteceu em 1966 com a coletânea de contos e poemas Diário das máscaras. Escreveu ficção e ensaios, dedicando-se a causas feministas em obras que tratam principalmente do desamor e da busca pelo auto-conhecimento. Sua última publicação foi O livro de Auta, de 1984.
Asilo nas Torres é uma novela alegórica, absurdista e distópica, curiosamente instalada num planeta Saturno que não o é. Lá, habita um povo de comportamento individualista e desiludido, que vive em função das Torres, três edifícios públicos gigantescos que concentram o trabalho burocrático da sociedade. Na mais alta das torres, num andar acima das nuvens, mora o Rei que quase nunca se mostra, mas concentra grande poder político.
As Torres são extremamente hierarquizadas e, como em qualquer repartição pública, os amigos do Rei são sempre favorecidos. Elas são alimentadas por máquinas barulhentas, mas delicadas, que precisam de temperaturas baixas para funcionar a contento. Por isso, o ar no interior das Torres é mantido bem gelado, de forma que todos os que nelas trabalham precisam estar sempre bem agasalhados.
Os trabalhadores, chamados de asilados, têm uma relação de amor e ódio com as Torres, pois o ambiente externo, aprazível e pastoral, com arco-íris decorando o céu a cada crepúsculo, despertam o desejo de liberdade. Mas como o asilo nas Torres é a única forma de garantir o sustento, elas acabam sendo, para eles, mais reais que o belo mundo que as cerca.
As Torres foram construídas em meio a um descampado, cercadas por grades e muros. Mantêm-se em constante trabalho de ampliação, para acomodar o crescente contingente de asilados. De alturas diferentes entre si, são branquíssimas como tudo mais a volta, incluindo as onipresentes iúcas, plantas decorativas de flores muito brancas.
Os asilados, anônimos e nomeados apenas pela letra inicial de seus nomes, relacionam-se de forma doentia e desesperada, utilizando toda a sorte de artimanhas para manterem seus postos de trabalho e a influência que julgam ter. Amigos do rei exploram seus amigos, estes exploram os chefes de setor que exploram seus subordinados; homens exploram mulheres etc. O ambiente burocrático favorece a evolução de situações bizarras, como trabalhadores que passam a vida toda realizando tarefas inúteis, sem que ninguém, nem os próprios, se aperceba disso. Mesmo as eventuais falhas no serviço de energia não conseguem mudar a rotina tirânica dos asilados, rigidamente controlada pelo relógio.
Duas mulheres polarizam a narrativa, as únicas com nomes. Salomé, sempre envolta em véus e acompanhada de um séquito de harpias, é uma bruxa cruel que domina os ventos e as artes da alquimia. E Assunta, mulher simples que leva a vida de forma discreta e esperançosa. Nem mesmo elas têm controle sobre as próprias vidas. Cada uma, a seu modo, é escrava das Torres, como todos os asilados.
Mas algo mais não vai bem. Filetes de água cristalina irrompem, sem explicação, nas paredes de concreto das Torres, em locais onde não há nenhum encanamento. Como os técnicos não conseguem identificar problema, a vida nas Torres segue inalterada. Contudo, serão a pista para a definição dos destinos dos asilados, suas Torres e principalmente de Salomé e Assunta, num desfecho dramático e simbólico.
A narrativa da novela é multifacetada, construída através de relatos breves e aleatórios de situações cotidianas dentro e ao redor das Torres, entremeados por trechos de versículos bíblicos. Ruth Bueno investe fortemente nas relações interpessoais, com surpreendentes inserções de um erotismo quase pornográfico.
Ainda que a novela seja curta – apenas 150 páginas – e o texto leve, a leitura é difícil e dolorida, embora não chegue a ser depressiva. Os episódios encadeados amarram-se frouxamente e só um certo distanciamento, obtido com uma leitura de pelo menos três quartos do texto total, consegue revelar uma imagem mais clara.
A ensaísta Cristina Guzzo diz, no verbete dedicado à Ruth Bueno em Latin american science fiction writers: An A-to-Z guide (página 41), que "há um paralelo claro na novela entre a cidade ficcional criada em Saturno e a fundação histórica da moderna cidade de Brasília, a nova capital do Brasil construída nos anos 1960 em meio a floresta". E conclui: "A novela está perfeitamente adaptada ao contexto brasileiro, ajudando a fazer dela um dos melhores exemplo da ficção científica escrita no Brasil".
Cesar Silva

A Amazônia misteriosa, Gastão Cruls

A Amazônia misteriosa, Gastão Cruls. Publicado originalmente em 1925. Edição utilizada: Edição Saraiva, Coleção Saraiva nº 115, 1957. 240 páginas. Apresentação de Adonias Filho. Capa: Nico Rosso.

A Amazônia misteriosa é um desses raros encontros entre a qualidade narrativa e o conhecimento científico detalhado sobre determinado assunto, no caso, as terras, gentes e costumes dos povos brasileiros.
Este romance, do escritor carioca Gastão Cruls (1888-1959), foi instalado nas profundezas da selva amazônica, um dos mais interessantes cenários da fc&f brasileira, que serviu de tabuleiro para diversos outros romances. Contudo, nenhum deles supera o de Cruls em pujança e detalhamento, tão farto que o autor julgou apropriado acrescentar-lhe um glossário, ou "Elucidário", para explicar os nomes e termos usados ao longo da história.
O primeiro capítulo do romance são as páginas finais de um diário de viagem, cujo autor chamado durante toda a história apenas como "Seu Doutor", narra os últimos progressos de uma expedição científica à floresta amazônica. O autor não se contém em apresentar o lugar como um verdadeiro paraíso, repleto de vida, beleza e perigos. Com ele viaja um pequeno grupo de homens, especializados nos perigos de uma incursão desse tipo.
A partir do segundo capítulo, o formato de diário é abandonado e assume uma narrativa mais dinâmica, em primeira pessoa. Durante uma das expedições em busca de alimento, o narrador, acompanhado dos mateiros Piauí e Pacatuba, perdem-se do grupo principal e, depois de errar na mata por alguns dias, são capturados por índios que os levam numa longa caminhada pela mata. A certa altura, Piauí é acometido de uma febre e, em delírio, acaba desaparecendo na mata, para não ser mais visto. Os dois sobreviventes são levados para uma outra tribo, que o narrador vai logo identificar como sendo a aldeia das lendárias amazonas.
Para surpresa do Seu Doutor, vivem com elas alguns estrangeiros: um pesquisador alemão chamado Jacob Hartmann, que ali desenvolve algum tipo de pesquisa secreta, a jovem francesa Rosina esposa de Hartmann, e uns poucos homens de pouca relevância na trama. A índia Malila é encarregada de cuidar dos recém chegados e acaba por desenvolver por eles uma afetividade importante. Também será significativa a figura de Rosina, que se ressente da condição de exilada na selva e do casamento infeliz com o frio cientista, e com a qual Seu Doutor vai desenvolver um relacionamento perigoso.
A princípio, porém, a vida dos dois homens na aldeia da amazonas não é desagradável. Alimentados, bem tratados e na esperança de retornar a civilização, eles passam a explorar a aldeia, conhecendo seus costumes e suas histórias. Num ritual, o narrador toma uma bebida narcótica e faz uma viagem ao tempo dos incas, às antigas metrópoles de Cuzco e Quito, no auge dessa civilização. É, sem dúvida, o trecho de maior maravilhamento do romance.
Curioso sobre os segredos da pesquisa de Hartmann, Seu Doutor espiona o laboratório improvisado numa área reservada da aldeia e fica horrorizado com o que descobre: crianças deformadas, mantidas em jaulas como animais. Ao confrontar o alemão, este lhe explica que é um importante geneticista que chegou ao limite de suas pesquisas sobre afasia, um mal que causa a perda das habilidades de linguagem falada e escrita. Entre os silvícolas, pode dar prosseguimento aos experimentos em seres humanos, especialmente entre as amazonas que desprezam os filhos homens. Também aproveitou para realizar experiências relacionadas ao crescimento, conseguindo dessa forma homens minúsculos e gigantes, bem como o cruzamento entre espécies. Inescrupuloso, Hartmann decide manter os homens presos por mais tempo e acha muito útil até, pois poderá usar o Seu Doutor como cobaia nos estudos mais conclusivos, o que vai levá-lo a tomar atitudes práticas para preservar sua própria integridade e salvar seu companheiro Pacatuba, bem como a apaixonada Rosina, de um destino incerto nas mãos do alemão.
Filho de um importante médico e cientista, Gastão Cruls foi revelado na Revista do Brasil, editada por Monteiro Lobato. Se primeiro livro foi a coletânea Coivara, e também são de sua autoria os romances Elza e Helena, A Criação e o Criador, Vertigem, e outros. A Amazônia misteriosa foi sua incursão na ficção científica e é geralmente associada pelos críticos à obra de Edgar Alan Poe. Entretanto, parece mais claramente inserida na tradição do romance científico de Júlio Verne.
Cruls não tentou escamotear outras influências e citou, textualmente, os romances A ilha do Doutor Moreau, de H. G. Wells, e As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, no que fez muio bem. Pois em pleno 1925, compôs de forma primorosa ambas as propostas do nascente gênero da ficção científica, unindo o relato científico de Verne à fantasia de Wells, e aproveitando ainda as ideias modernistas que estavam em ebulição na literatura brasileira.
O significado de A Amazônia misteriosa para a ficção científica brasileira é incomparável, pois o romance aglutina de forma primorosa um leque de propostas que ainda hoje estão em debate, num romance sofisticado cujas qualidades narrativas estão vários pontos acima da média. Se traduzido hoje no mercado estrangeiro, o romance certamente atrairia a atenção, não só pelo seu caráter exótico e pela sua qualidade literária, mas porque os estrangeiros estão ávidos por este tipo de história, que boa parte dos autores nacionais de fc&f ainda insistem em desprezar.
Cesar Silva

O alienista, Machado de Assis

O alienista, Machado de Assis. Originalmente publicado na coletânea Papéis avulsos (1882). Texto avaliado publicado em Contos escolhidos: Machado de Assis, seleção de Roberto Alves, Coleção Vestibular Estadão, editora Click, sem data.

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, cidade do Rio de Janeiro. Mulato, pobre, gago e epilético, ninguém naquela sociedade ainda escravocrata poderia imaginar que atingiria tal significado na cultura brasileira ao ponto de, quando de sua morte, ser enterrado com cerimônias de chefe de estado.
A ficção de Machado de Assis é brilhante em sua capacidade de transmitir os contornos da sociedade brasileira do final do século XIX, evidenciando as suas contradições de uma forma aguda e, ao mesmo tempo, acessível. Seu texto é geralmente irônico e formalmente sofisticado, porém enxuto e econômico. Em seus contos, Machado é mais identificado com a escola romântica, o que o aproxima dos temas fantásticos.
Na coletânea Papéis avulsos (1882), a novela "O alienista" trabalha muito bem os conceitos que a ficção científica viria a se ocupar mais tarde, ironizando amplamente o pensamento científico frente à contraditória estrutura sócio-política, um ótimo exemplo de soft-fiction new-wave, antecipada em oitenta anos.
Nessa novela, Dr. Simão Bacamarte é um figurão na corte, respeitado pelo rei e seus súditos. Médico e pesquisador científico de alta patente, poderia ter sido o que bem quisesse com o beneplácito real, mas sua curiosidade científica o fez ir à cidade de Itaguaí, onde usou de sua influência para instalar uma clínica psiquiátrica, a primeira da cidade, num prédio grande e vistoso especialmente construído para tal fim. Pretendia o sábio Dr. Bacamarte sondar os segredos da mente humana através da observação minuciosa dos alienados e dementes de Itaguaí. A inquietação que os loucos causavam facilitou que os poderosos da cidade apoiassem a iniciativa do sábio que foi amplamente festejado, e a ele cederam plenos poderes no que se referia ao diagnóstico e tratamento dos dementes.
Recolhidos os primeiros desvirtuados mentais, começou Bacamarte a estabelecer, com métodos estritamente científicos, as muitas formas de loucura que acometiam os homens de Itaguaí, classificando-as por forma e relevância. Logo, Bacamarte percebeu que mesmo as pessoas bem socializadas podiam apresentar sintomas esquizofrênicos e, ao primeiro sinal, recolhia também esses pacientes em uma das celas de sua clínica, para estudos mais detalhados. Quando começou a deter personalidades importantes da cidade, as autoridades reagiram. Porém, a autoridade científica de Bacamarte era tamanha, que eles nada podiam fazer. A sociedade como um todo indignou-se contra a clínica e promoveu uma verdadeira revolução, aos gritos de "Morte a Simão Bacamarte". O levante foi a princípio combatido pelas autoridades constituídas, mas quando a polícia bandeou-se para o lado dos revoltosos, o governo foi dissolvido e, em seu lugar, instalado um governo revolucionário. Porém, o discurso anti-Bacamarte não resistiu sequer ao primeiro ato do novo governo que, traindo suas próprias convicções, alinhou-se ao cientista garantindo-lhe a continuidade do trabalho. Bacamarte avaliou isso como algum tipo de descontrole emocional patológico e tomou as devidas providências, recolhendo vários dos rebeldes para uma melhor avaliação do seu quadro clínico. Outras tentativas de revolução pipocaram, mas não progrediram, e o governo legal enfim retomou o poder.
A volúpia carcereira de Bacamarte não esmoreceu, ao contrário. Quando o sábio notou que três quartos da população de Itaguaí estavam detidos no seu manicômio, iluminou-lhe na mente um novo conceito: se o normal era ser louco, os verdadeiros doentes eram os que não apresentavam qualquer sintoma. Libertou todos os detidos e passou a observar os demais. Quando diagnosticava alguém como absolutamente equilibrado, detinha-o imediatamente, submetendo-o a tratamentos adequados a fim de "normalizá-lo" para o bom convívio social.
Depois de mais algum tempo, o sábio finalmente concluiu que não havia mais nenhum mentecapto em Itaguaí, e que única deformidade digna de estudos só poderia estar naquele indivíduo que fosse absoluta e perfeitamente equilibrado, exemplar do qual Simão Bacamarte só conhecia um espécime: ele mesmo. Assim, o sábio recolhe-se solitário em seu próprio manicômio, na intenção de estudar a si mesmo até descobrir uma cura adequada.
Machado estabelece em sua novela uma discussão sobre a relevância da ciência na vida do cidadão comum, a partir da iniciativa de um sábio que, da ciência, tudo sabe, mas que não tem absolutamente nenhuma empatia pela vida humana, que classifica com a mesma impessoalidade que dedicaria a um objeto qualquer. A Bacamarte importa apenas a pesquisa, pois ele tem completa convicção da relevância científica, acima de todas as coisas. Logo de saída, Machado nos conta, por exemplo, como Bacamarte selecionou sua própria esposa, considerando principalmente as qualidades físicas adequadas a uma boa procriação. Apesar da lógica perfeita, Bacamarte morreu sem filhos. Deste modo, vemos em "O alienista" a descrença de Machado na ciência e nos cientistas em especial.
Da mesma forma, o autor não economiza na crítica ao sistema governo. Os políticos eleitos comportam-se de forma fisiológica, apoiando ou opondo-se conforme as conveniências de momento. Saem de cena ao primeiro sinal de problemas e aqueles que lhe tomam o lugar, antes muito determinados, mudam imediatamente o discurso, continuando no mesmo modelo fisiológico de seus antecessores.
Muito espertamente, Machado defendeu-se de possíveis críticas na medida em que estabeleceu que toda a história do manicômio de Bacamarte em Itaguaí aconteceu muito tempo antes, possivelmente no período colonial. Mas está claro que não se trata de um épico: o autor refere-se de fato a gente de seu próprio tempo, que não deixa de ser válido ainda nos nosso dias.
Há hoje uma confiança maior nas boas intenções da ciência devido à presença massiva da tecnologia na vida das pessoas, especialmente nas grandes cidades, mas ainda é escopo importante da ficção científica antecipar os descaminhos de decisões tecnocratas e cientificistas. Neste aspecto, Machado estava sintonizado com o futuro do gênero, enquanto em seu tempo a ficção científica, ainda sem esse nome, era palco de fantasias e aventuras científicas positivistas, e assim continuaria por muito tempo.
Seria um exagero tratar Machado de Assis como um autor de ficção científica, isso ele definitivamente não foi. Seus textos eram muito variados e atendiam públicos diferentes em diversas categorias editoriais. Portanto, não é de se admirar que, em alguns momentos, tenha enviezado por esse gênero ainda nacituro, por simples sorte — ou azar, como devem pensar muitos. Contudo, não há como negar que "O alienista", uma de suas novelas mais conhecidas e características, tenha diversos pontos de contato com a ficção científica. Com certeza, um material que merece ser revisitado pela crítica acadêmica.
Cesar Silva

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O Doutor Benignus, Augusto Emílio Zaluar

O Doutor Benignus, Augusto Emílio Zaluar. Publicação original de 1875. Edição avaliada: Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 1998.

Quando foi relançado em 1994 pela Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), O Doutor Benignus, romance de Augusto Emílio Zaluar publicado originalmente em 1875, ganhou evidência na mídia e foi muito comentado pelos participantes dos fandom brasileiro. Foi considerado um trabalho de arqueologia da ficção científica brasileira, contemporâneo das aventuras científicas de Júlio Verne, das quais recebeu forte influência.
Zaluar nasceu em Lisboa em 1826 e não completou os estudo em medicina para dedicar-se ao ofício de escrever, principalmente na área jornalística. Migrou para o Brasil em 1850, estabelecendo-se como jornalista. Seus interesses nas ciências, especialmente na antropologia, o levaram a se dedicar aos estudos sobre o homem brasileiro, e Zaluar acompanhava atentamente os trabalhos das missões científicas no Brasil, e isso fica claro na leitura de O Doutor Benignus, pois o autor faz questão de citar cada um dos seus inspiradores, inaugurando junto com o gênero uma mania cada vez mais em destaque entre os autores brasileiros de ficção científica e fantasia.
A história acompanha o sábio Dr. Benignus, que decide não mais viver em meio à corte brasileira no Rio de Janeiro e retira-se para uma fazenda em Minas Gerais. Lá, além da família, apenas alguns empregados. Durante uma incursão a um trecho de mata próximo a sua residência, Benignus encontra um pergaminho com o desenho do Sol e uma inscrição desconhecida. Obcecado com o achado, realiza amplas pesquisas até descobrir que a inscrição, em língua tupi, quer dizer “Aqui há habitantes”. A descoberta incute no sábio uma grande necessidade de provar a habitabilidade de outros mundos e, para isso, organiza uma expedição científica ao Brasil Central. Juntam-se a ele o cientista francês M. de Fronville e o jovem inglês chamado Jaime River, que pretende encontrar o pai, o pesquisador William River, desaparecido numa expedição à mesma região.
A comitiva reúne dezenas de pessoas e viaja pelas matas, sempre descritas como belas e hospitaleiras, evitando as estradas e os povoados para não assustar as pessoas. Pelo caminho, enfrentam diversas aventuras, como uma forte tempestade, a travessia de rios perigosos, o ataque de um jaguar negro (quando acontece a única baixa da expedição), a exploração de uma caverna – onde encontram o crânio fossilizado de um homem pré-histórico –, a queda de um meteorito e um incêndio florestal.
Seguindo as pistas do pesquisador desaparecido, a comitiva passa por Uberaba, Santa Rita de Paranaíba, Goiás, Jurupensém, Leopoldina e a Ilha do Bananal, onde acontece o grande desfecho. Ali, os aventureiros encontram uma nação carajá, cujo chefe Koinamam confirma a posse do pai de Jaime, mas recusa-se libertá-lo. A tensão aumenta, mas ocorre um incrível golpe de sorte: da floresta surge um balão de ar quente, conduzido por James Wathon, cientista norte-americano amigo pessoal do Dr. Benignus, alterando o destino fatalista da expedição.
O Doutor Benignus está longe de ser um livro de ficção científica e mal pode ser comparado às aventuras vernianas que o inspiraram. Trata-se apenas do relato de uma viagem de intelectuais ao planalto central do Brasil, sem muito apuro realista. O Brasil selvagem de Zaluar é um lugar de campos abertos, florestas limpas e rios navegáveis, sinal claro de que o autor nunca deve ter feito sequer uma incursão à Mata Atlântica.
O Brasil de O Doutor Benignus não parece ter muitos problemas além das dúvidas existenciais que incomodam o sábio. Colonialismo puro, é apenas um enorme parque de diversões para intelectuais entediados. Não há nada no romance, por exemplo, a respeito de questões dramáticas de sua época, como a escravidão, o preconceito racial e o movimento republicano. Os próprios cientistas da expedição carecem de credibilidade, pois suas considerações são sempre citações de cientistas mais afamados. Zaluar talvez não estivesse mesmo interessado em realizar um relato científico, como acontece com a fc de forma geral, mas a ciência de O Doutor Benignus resume-se a essas citações. Apenas durante um breve delírio onírico, no qual o sábio dialoga com um ser luminoso supostamente vindo do Sol, o texto consegue estabelecer um clima favorável ao fantástico mas, sendo apenas um sonho, não pode ser ponderado nesse contexto. Contudo, percebe-se nele alguma vontade em ser fantástico na medida em que tem seu gérmen no papiro misterioso que, na interpretação do Dr. Benignus, sugere a habitabilidade do Sol e, em suma, era o que o ele pretendia provar com sua viagem ao Planalto Central, mas que não tem maiores significados na trama.
A edição da UFRJ é bem cuidada e, ainda que tenha atualizado a grafia, manteve os maneirismos do autor. O livro tem nada menos que quatro prefácios, sendo um deles um glossário com explicações das idiossincrasias textuais. Fecham o volume, um grande caderno de notas comentando as muitas citações, e um posfácio assinado por Alba Zaluar, provável descendente do autor, com uma leitura crítica que destaca a forma descomprometida com que Zaluar tratou as figuras da mulher e do negro.
Podemos, é claro, chamar à ficção científica o mérito pioneiro de O Doutor Benignus, da mesma forma que tomamos textos de muitos outros autores que nunca imaginaram que o que escreveram seria um dia adotado como registros históricos de um gênero. Mas é preciso ser um tanto criativo para encontrar ficção científica em O Doutor Benignus.
Cesar Silva

Comba Malina, Dinah Silveira de Queiroz

Comba Malina, Dinah Silveira de Queiroz. 206 páginas. Coleção Dinah Fantástica, Editora Laudes, Rio de Janeiro, 1969.

Qualquer obra que tenha ultrapassado os vinte anos tem seu valor histórico e ainda mais importante se torna quando o seu autor demonstrou capacidades literárias amplas dentro e fora dos gêneros fantásticos, como é o caso de Dinah Silveira de Queiroz, autora consagrada no mainstream, que tem em sua bibliografia textos importantes como Floradas na serra (1939) e A muralha (1954).
Dinah era uma escritora consagrada quando decidiu escrever fantasia, iniciando com o romance Margarida La Rocque (A ilha dos demônios), cuja primeira edição é de 1949 pela Livraria José Olympio Editora, e que, mais tarde, teria traduções em vários países. Não por acaso, Margarida La Rocque é o primeiro volume da Coleção Dinah Fantástica, que teve em seguida a edição de Comba Malina, coletânea de contos de ficção científica que é o assunto desta resenha.
A coletânea apresenta oito contos da autora, sendo três inéditos até então, nesta ordem: "Comba Malina", "Os possessos de Núbia", "O céu anterior", "A universidade marciana", "Anima", "A Ficcionista", "Eles herdarão a Terra" e "O Carioca".
O conto de abertura, que dá nome ao livro, é o melhor de todos. Escrito em 1968 para esta antologia, é o relato, em primeira pessoa, de um faxineiro cujo nome não nos é revelado. Por necessidade financeira, o narrador procura uma residência mais próxima ao banco onde cumpre expediente, e é atraído para um beco por uma insidiosa sequência musical. Quando se dá conta, está batendo à porta de um casario, que se trata justamente de uma pensão que tem uma vaga disponível a um preço muito baixo. O protagonista vê-se então colega de quarto do cientista aposentado Professor Sarmento, que desenvolve uma pesquisa histórica sobre o passado daquele velho casarão que, 250 anos antes, fora a Bodega da Comba Malina, uma cigana belíssima pela qual o Professor parecia ter fixação.
Ao longo dos dias e noites que ambos compartilham, o faxineiro começa a participar das investigações do cientista, que tem uma teoria inusitada sobre o tempo e desenvolveu um dispositivo que permite a visualização do passado. Quando o protagonista finalmente experimenta a viagem e vê Comba Malina, apaixona-se perdidamente por ela, o que será a sua ruína. O desfecho assemelha-se a algumas histórias do escritor americano H. P. Lovecraft, porém com amplas referências ao candomblé, que dá um charme especial ao conto, numa das mais pioneiras manifestações da antropofagia modernista na fc brasileira.
A seguir temos "Os possessos de Núbia", também um conto inédito escrito em 1968 para esta antologia. Bruno é um imigrante em Núbia, planeta inóspito que abriga uma colônia de humanos. Ele foi para lá para dar a sua família uma vida melhor, uma vez que os imigrantes recebiam uma generosa indenização pelos vinte anos, no mínimo, que cada colono teria de passar no planeta. Porém Bruno não foi só pelo dinheiro. Ele se sentia incomodado com os desejos da esposa em ter filhos de forma natural, quando há muito tempo isso não era mais o costume, sendo as crianças todas geradas em úteros artificiais de porcelana.
Núbia apresentava sempre a mesma face para o sol local. Era impossível viver tanto na sua face iluminada, muito quente, quanto no lado escuro, muito frio. A colônia situava-se, portanto, numa estreita faixa de crepúsculo, onde as temperaturas eram suportáveis. A colônia nunca fizera contato com qualquer forma de vida local, mas isso iria mudar quando uma inesperada onda de calor intenso começou a varrer a superfície do planeta. Uma boa ideia desenvolvida nos moldes da Asimov e Bradbury. Porém, sem a precisão científica daquele e o lirismo deste, não repetiu o estilo brilhante visto no primeiro conto.
"O céu anterior" já havia sido publicado na antologia Histórias do acontecerá (GRD, 1961), e seria novamente compilado na antologia Enquanto houver Natal (GRD, 1989). No ano 3559, um astrônomo vê, através de um monitor especial, o céu do ano zero e fica perturbado ao ter uma visão mística com a imagem de uma "estrela que fala". Vai então passar férias num balneário subterrâneo, onde consultará um psiquiatra especialista em esgotamentos de astronautas. Como já se percebe, é uma história sobre o Natal, e seu final-surpresa não funciona porque é perfeitamente previsível antes da metade do conto.
Trata-se do conto mais fraco da antologia porque parte da premissa que dezesseis séculos no futuro ninguém mais se lembraria do Natal, sem dar uma explicação plausível de como isso poderia acontecer uma vez que o calendário usado ainda é o mesmo.
Muito melhor é o conto seguinte, "A universidade marciana", visto anteriormente na outra coletânea da autora, Eles herdarão a Terra (GRD, 1960).  O protagonista narrador também não tem seu nome revelado na história, mas trata-se de um morador da cidade do Rio de Janeiro, residindo no décimo andar de um prédio em ruínas numa Copacabana arrasada pela elevação do nível do mar. Em sua andanças solitárias pela orla decadente, é contatado por uma entidade alienígena que, entretanto, não lhe revela muita coisa.  Ele desenvolve uma filosofia sobre o modo de ser do homem brasileiro, a qual chama de "Carioquismo" e, por conta de sua repercussão, é convocado para ir ao Vaticano unir-se a um grupo heterogêneo formado por dezenove homens e mulheres cuidadosamente escolhidos para serem instruídos por seres superiores vindos do espaço, possivelmente marcianos – os mesmos que o contaram na praia. O Papa Pio XIII, um chinês, é um dos poucos líderes políticos do mundo a acreditar nos bons préstimos desses alienígenas e aproveita o fato do Vaticano ser o único estado murado do mundo para abrigar, sob sigilo, essa verdadeira universidade. Esses vinte homens e mulheres serão confrontados aos alienígenas e suas estranhas filosofias, mas os marcianos também serão irremediavelmente afetados pelos conceitos humanos.
A autora constrói uma bela narrativa, com descrições vivas e detalhadas do Vaticano e, sem apelar para qualquer dos recursos costumazes da ficção científica, elabora um trabalho perturbador e de profundo lirismo.
"Anima" é o terceiro conto inédito da coletânea, tal como os outros escrito em 1968. Jorge Alves é um cientista pesquisador da alma humana, que propõe na Assembleia Geral da ONU que a comunidade internacional participe do esforço brasileiro em enviar uma missão "espiritual" ao planeta Vênus. A princípio ridicularizado, o método demonstra-se eficiente e uma equipe de cinco astronautas, entre eles o próprio Jorge Alves, despacha seus espíritos para Vênus e lá passam três dias em expedições de reconhecimento visual, uma vez que não podem interagir fisicamente. Entre esses astronautas está uma jovem que sofre de uma doença terminal e, no momento da volta, ela decide permanecer em Vênus, abandonando a existência física que, de qualquer forma, seria bastante breve, e com isso desequilibra toda a equipe. Uma ideia interessante, ainda que não de todo original, desenvolvida com sensibilidade porém sem apresentar uma personalidade mais definida.
"A Ficcionista" é o conto mais longo do livro, já visto na Antologia brasileira de ficção científica (GRD, 1961). É narrado em primeira pessoa por um homem criado em laboratório, um cidadão de segunda classe adotado como assistente pelo cientista e engenheiro Jonas André Camp, que desenvolve um sistema de comunicação audiovisual que fala diretamente ao cérebro, conseguindo dessa forma uma integração quase real com o expectador. O invento entusiasma Sálvio Marconi, proprietário de uma das maiores emissoras de tv concreta (uma espécie de tv 3D), que financia a instalação da máquina, chamada de Ficcionista. A nova mídia é um sucesso de público e crítica, e rapidamente fagocita todas as outras. levando a humanidade para uma existência passiva de tragédia iminente.
O conto apresenta a função de amarragem do livro, pois alguns dos seus elementos principais, como a tv concreta, por exemplo, aparecem nos demais. Também é metalinguístico, uma vez que trata do trabalho do escritor, da maneira como os escritores se comportam e da relação da arte de massa com o público consumidor. Há muitos mais conceitos filosóficos que, embora não se aprofundem, não impedem que este seja um conto muito bom.
"Eles herdarão a Terra" é um conto de invasão marciana, o primeiro texto de ficção científica de Dinah, escrito em 1957 e primeiro publicado na revista Jóia, depois compilado na coletânea que lhe emprestou o nome, publicada em 1960 pela Editora GRD.
Marcos mora com seu idoso pai num farol isolado. O velho é fascinado por astronomia e passa as noites a observar o céu. Certo dia, o faroleiro decide trazer para o farol sua outra filha, Tuda, que será a catalisadora de uma tragédia cósmica. Quando o velho morre de infarto, Marcos assume suas funções até que seja nomeado um novo titular e, justamente num dia em que, depois de uma tempestade, o farol está mais isolado do que o normal, Marcos e Tuda recebem a visita de uma entidade estranha, bizarra, aparentemente pacífica mas que revela um sórdido plano de invasão e atira os irmãos num torvelinho de horror. Um conto perturbador, que dialoga com muitas outras obras da fc mundial.
O conto que fecha a edição é "O Carioca", que também faz parte da já citada coletânea Eles herdarão a Terra. O conto apresenta dois moradores do décimo segundo andar de um prédio recentemente construído, vazio de outros habitantes. O vigia do prédio, que ainda está em fase de acabamento, desliga a energia elétrica do prédio ao final do expediente e ambos têm de passar as noites sem luz e sem elevadores. Num desses dias, chegando atrasados, eles se conhecem ao subir os doze andares pelas escadas. Sendo um homem e uma mulher, ambos jovens, é fatal que se apaixonem. Ela é viúva e passou por uma séria provação quando da doença de seu falecido marido; ele é solteiro, mas tem uma profissão estranha: fabrica robôs e tem alguns deles em seu apartamento. A relação do casal de vizinhos é neurótica e as coisas se complicam mais quando o rapaz leva para casa seu robô mais sofisticado, o Carioca, que ele está prestes a vender para o exército. As máquinas são muito mais que simples mecanismos, tratam-se de inteligências artificiais primitivas e a convivência deles com a mulher vai trazer desentendimentos para a relação de ambos. Um conto maduro e muito bem realizado, como poucas vezes se viu na fc brasileira, com grandes doses de psicologia e drama humano.
Os jovens autores de fc teriam muito a ganhar com a leitura desta coletânea de uma das pioneiras da ficção científica brasileira que, não só, demonstra uma qualidade literária superior e sem pedantismo, um estilo amadurecido e o domínio dos conceitos e protocolos do gênero, mas inocula nos enredos altas doses de dramaticidade e psicologia, de problemas e preocupações humanas.
Não é, obviamente, uma fc de entretenimento, e isso vai desgostar aqueles que avaliam a qualidade de uma historia diretamente proporcional a sua capacidade de entreter, e inversamente a sua capacidade de perturbar. Dinah Silveira de Queiroz escreveu fc como gente grande e para gente grande.
Cesar Silva

Kalum, Menotti Del Picchia

Kalum, Menotti Del Picchia. Publicação original de 1940. Edição avaliada: Ediouro Publicações, Coleção Prestígio, Rio de Janeiro, sem data.

Em 1940, dez anos após a primeira publicação de A filha do inca, Menotti Del Picchia retornou ao universo da República 3000 em Kalum, esta também uma história de aventuras na selva brasileira, "para recreio da nossa juventude", como diz o autor em seu prefácio.
Kalum repete a estrutura usada no livro anterior e, de forma geral, é um livro mais regular que aquele. Mas é lamentável que seja assim, pois as imagens de A filha do inca emocionam muito mais e fixam-se de forma mais profunda na memória do leitor. Desse modo, Kalum soa anticlimático, ainda que tenha muitas sequências emocionantes.
A história de Kalum inicia com uma expedição alemã, científica e cinematográfica, que pretende filmar os rituais canibalescos de uma tribo de índios da Amazônia, os kurongangs, intocada pela civilização. A tribo habita uma área de difícil acesso e a jornada é longa, ainda que não tão desastrada quanto aquela comandada pelo Capitão Fragoso. Esta expedição é chefiada por Karl Sopof, um tipo atlético e esperto que acredita que é sua melhor chance de ficar rico, pois tem certeza que o filme que pretende fazer vai ser um sucesso na Europa.
Os mateiros que guiam a expedição têm medo, pois conhecem a selvageria dos kurongangs, especialmente seu líder, o cacique Kalum, O Sangrento. A certa altura, os expedicionários são surpreendidos pelos kurongangs e levados prisioneiros. Quando se aproximam da taba dos indígenas antropófagos, numa clareira de acesso difícil entre montanhas altas e escarpadas, Karl surpreende-se com a arquitetura de algumas ocas, que se parecem com casas urbanas, porém erguidas com bambu e barro.
Ao confrontarem Kalum, todos percebem porque ele é tão temido. Trata-se de uma figura um tanto cômica, de pequena estatura, ainda que fortíssimo e de aparência feroz. Mas o que realmente assusta é que Kalum demonstra ser psicológica e emocionalmente instável, com toda certeza um psicopata. Kalum decreta que todos os prisioneiros deverão ser sacrificados mas, antes disso, devem ser purificados pelo pajé, um tipo misterioso chamado de Bogum. Karl é levado a sua presença justamente numa das choças de aparência familiar, e se depara com outra criatura bizarra, barbada e vestida em andrajos, mas que fala sua língua e sabe exatamente o que ele pretendia fazer ali com seus equipamentos estranhos. Alguns mistérios desfazem-se quando Bogum revela a Karl que ele é, na verdade, o padre D. Rui Colaço, que sobrevive entre os kurongangs pois impressionou-os com truques de mágica, enquanto seus companheiros, de uma malfadada missão de catequese, foram todos mortos.
Bogum sabe que não pode fazer muito pelos prisioneiros sem arriscar sua própria vida mas, junto com Karl, elabora um plano para intimidar Kalum, que consiste em filmá-lo, exibir o filme realizado e convencê-lo que Karl também é um feiticeiro poderoso e que aprisionou sua alma.
O plano funciona parcialmente pois, dessa forma, Karl e Bogum conseguem livrar os demais prisioneiros que rapidamente abandonam a taba. Porém, Bogum e Karl são retidos pelo desconfiado Kalum, que exige a devolução de sua alma. Quando percebem que nunca sairão vivos da tribo kurongang, ambos decidem fugir pela única saída possível, uma passagem secreta sob as montanhas, que Bogum descobriu através de um mapa que encontrou junto a um esqueleto do que ele julgara ser uma criança. Na proteção da noite, ambos esgueiram-se em direção as escarpas, mas são descobertos e caçados pelos índios. Já próximos do paredão de rocha, o velho padre é abatido mortalmente por uma flexada, enquanto Karl, ao tropeçar numa pedra, aciona o mecanismo que abre o portal secreto na parede montanhosa, através do qual ele se atira precipitadamente. Os kurongangs ficam assustados com o poder do estranho feiticeiro que fugiu para dentro da montanha, mas Kalum não está com medo. Promove um dos feiticeiros menores ao posto do falecido Bogum e exige, sob pena de morte, que ele descubra uma maneira de também abrir a montanha, para recapturar o feiticeiro branco que lhe roubou a alma.
Enquanto o aterrorizado feiticeiro tenta desesperadamente descobrir como se abre uma montanha, Karl tateia na escuridão de uma caverna colossal que se aprofunda mais e mais para dentro da rocha. Milhares de metros abaixo do solo, descobre uma cidade futurista habitada por mulheres pequeninas como crianças, lindas, louras e idênticas que, ainda por cima, falam sua língua. Bem recebido, Karl se depara com uma versão ampliada das pequenas mulheres, a única entre elas que tem a altura normal, chamada Elinor. Ela lhe conta que os habitantes daquela cidade, que também se chama Elinor, descende de viajantes cretenses que naufragaram na Ilha de Marajó, os mesmos navegantes dos quais outro ramo de descendentes fundou, em local mais favorável, a mítica República 3000. Nas cavernas, seu povo encontrou abrigo e segurança, pois na floresta eram hostilizados pelos kurongangs, que os caçavam sem trégua. Lacraram a entrada da caverna, aprofundaram as galerias e erigiram ali sua cidade, com sofisticados sistemas de iluminação e circulação de ar. Através de receptores de rádio-televisão, acompanharam a evolução dos povos do mundo, aprendendo suas línguas e absorvendo seu conhecimento. Sua estatura foi se reduzindo ao longo das gerações e, sem a luz natural do sol, o ar fresco e o céu aberto, uma desgraça terrível se abateu sobre o povo de Elinor. Uma infelicidade existencial profunda vitimou principalmente os homens, que se suicidaram aos milhares. As mulheres resistiram melhor, mas tornaram-se infantis e fúteis. Aos poucos, a população foi se reduzindo e naquele momento encontra-se à beira da extinção.
Elinor lidera os últimos homens remanescentes numa investida desesperada em escavar, a partir dos níveis mais profundos da caverna, uma passagem para o exterior, longe dos ferozes kurongangs. O trabalho é lento e imprevisível, mas há esperança que seja finalizado em breve.
As pequenas mulheres não se importam com a escavação e em nada ajudam os trabalhos, passando seu dias em absoluta improdutividade. Volúveis e medrosas, logo voltam-se contra Karl, temendo que ele traga os kurongangs até ali. Os ânimos exaltam-se e, quando parece que nem Karl nem Elinor poderão contê-las, soam os alarmes: os kurongangs finalmente abriram o portal e a luta final tem início.
Como se percebe, a história de Kalum é muito mais elaborada que a vista em A filha do inca. Há mais detalhes, os personagens são individualmente mais trabalhados, os conceitos de uma história de aventuras são melhor instalados e mesmo as estruturas de gênero parecem melhor arranjadas, ainda que muita coisa pareça absurda ao leitor moderno. Mas falta o toque de maturidade que A filha do inca tem de sobra. Falta, sobretudo, um personagem carismático como o Maneco, tão bem colocado na história anterior. Parece, a princípio, que um dos muitos companheiros de Karl, especialmente o grandalhão e sentimental Fritz, poderia assumir esse posto, mas todos são removidos da trama antes de sua metade.
Kalum ainda tem a seu desfavor o fato de ser uma história muito mais sombria se comparada a A filha do inca. Enquanto em A filha do inca os autômatos da República 3000 sobem em revoada para as estrelas, numa cena emocionante e transcendental que levaria qualquer fã de hard fiction às lágrimas, Kalum só tem sangue e destruição a oferecer. Para compensar, Kalum apresenta um epílogo lírico e belíssimo de efusividade tropical, em si uma peça à parte, com seu colorido contrastando ao preto e branco predominante da história. Decerto que Del Picchia já sabia disso tudo. Ele mesmo diz, em seu prefácio, que se entregara "à volúpia de imaginar coisas absurdas que fizessem sentido pelo menos como hipóteses de um futuro maravilhoso".
Cabe a nós percebermos que esse maravilhoso não tem que ser, invariavelmente, positivista. No caso de Kalum, é o maravilhoso do horror que se apresenta muito mais exposto do que o maravilhoso científico. Comparado à pobreza de ideias que cerca o gênero do horror no Brasil, que se volta insistentemente para um gótico superado e enfadonho, Kalum mostra que Menotti Del Picchia estava adiante de todos nós tanto na ficção científica quanto no horror.
Cesar Silva

A filha do inca, Menotti Del Picchia

A filha do inca, Menotti Del Picchia. Edição original de 1930. Edição avaliada: Livraria Martins Editora, São Paulo, 1982.

Entre os leitores brasileiros de ficção científica existe uma indisfarçada má vontade para com os romances clássicos da fantasia nacional. Supõem que são textos rasos, de pouca ou nenhuma qualidade, seja literária, seja nos parâmetros da ficção de gênero. Afinal, o que poderia um matuto no início do século XX produzir de significativo para um gênero que mal engatinhava em seus mercados mais importantes, se até neles os autores tinham dificuldades em encontrar o tom e o espaço correto desses protocolos?
A dificuldade de acesso a esses livros mais antigos, que não se encontram nas livrarias há décadas, também contribui para que sejam preteridos e, muitas vezes, esquecidos. Por preconceito e distanciamento, os primeiros exemplos da ficção científica brasileira vão sendo empurrados para a vala comum do que não tem valor. É o caso do romance A filha do inca ou A República 3000, do modernista Menotti Del Picchia (1892-1988).
Mais conhecido por seus textos realistas, como Juca Mulato (1917) e Laís (1931), Del Picchia nasceu em São Paulo/SP, iniciou como jornalista em Pouso Alegre, dirigiu o jornal A Tribuna de Santos e trabalhou em diversos periódicos importantes de São Paulo. Participou ativamente da Semana de Arte Moderna de 1922 e, mais tarde, chegou a criticar os excessos do Modernismo. O que ficou marcado na obra de Menotti Del Picchia foi sua ânsia por uma literatura iminentemente brasileira, para o que lançou mão de mitologias indígenas e imagens da flora e da fauna nacionais. De certa forma, Del Picchia foi o primeiro interlocutor de um debate conceitual que, nos anos 1980, viria a ser conhecido como Movimento Antropofágico da ficção científica brasileira.
Contudo, até isso reforça o preconceito dos leitores de hoje pois há tantas correntes críticas restringindo o espectro da ficção científica ao ponto de quase nada se enquadrar nele e qualquer contexto culturalmente definido, como o sugerido pelo Modernismo, é suficiente para que a obra seja retirada do balaio.
No prefácio, assinado pelo autor, Del Picchia assume sua motivação de escrever  "à nossa mocidade que procura uma leitura imaginosa que raramente lhe oferecem nossos melhores escritores, pois talvez achem o gênero puramente lúdico."  Ainda diz que se lançou à escrita de A filha do inca como uma forma de superar os traumas de A tormenta, livro sobre a Revolução de Isidoro em 1924, que ele testemunhou. Era de se esperar, portanto, uma novela leve e juvenil, que realmente justificasse o preconceito com relação a seriedade do autor brasileiro para com os gêneros fantásticos. Ledo engano.
A filha do inca inicia num frenesi devastador. Talvez as memórias sangrentas do autor fossem tão fortes que ele não conseguiu purgá-las todas redigindo A tormenta. As primeiras oitenta páginas de A filha do inca são de um furor pouco comum em toda a literatura fantástica, brasileira ou não.
Um grupo de militares, comandado pelo capitão Paulo Fragoso, está em missão de cartografia nos confins da Serra do Caiapó. A tropa enfrenta problemas sérios com doenças e acidentes. A mata fechada e o terreno acidentado atrasam a missão, que vai perdendo homens ao longo do caminho.
A certa altura, a tropa é atacada por uma tribo de selvagens que mata a maioria dos soldados e captura outros, ficando livres apenas o próprio Fragoso e um de seus comandados, o inábil e pouco valente Maneco, além do cão Faísca. A sequência de combate entre os índios e a tropa é de vigor e realismo espetaculares, em alguns momentos beirando à sanguinolência explícita.
Mesmo sem munição e mantimentos, Fragoso e Maneco tentam resgatar seus companheiros da sanha antropófaga dos indígenas, mas fracassam na tentativa. Exaustos e em frangalhos, a única chance de sobreviver é chegar ao ponto de encontro onde um avião viria resgatar a tropa.
Com dificuldades, o trio consegue chegar a uma planície castigada pelo sol, onde encontram uma tétrica muralha que parecia seguir em linha reta de horizonte a horizonte, formada por ossos calcinados de todos os tipos de animais conhecidos e desconhecidos, esqueletos humanos e um sem número de armamentos primitivos, trabalhados em ouro, prata e pedras preciosas.
Nesse momento, percebem a aproximação do avião de resgate mas, ao sobrevoar a muralha de ossos, os motores do aparelho falham. Dos destroços fumegantes, nada se pode aproveitar.
Desanimados, Fragoso, Maneco exploram a estranha barreira, que desperta a cobiça de Maneco. Cruzam-na sem problemas mas, ao tentar pular de volta, o cão morre eletrocutado. Os dois homens são capturados e conduzidos por uma estranha energia que os faz caminhar até um edifício onde são confrontados por um autômato antropomórfico que os leva para a mais estranha das nações sobre a face da Terra: a República 3000.
Ali vivem descendentes de homens vindo da Grécia há milênios, cuja embarcação naufragou na Ilha de Marajó. Depois de muita atribulação nas terras de uma América selvagem, fixaram-se naquela planície rica em minérios e alimentos, e desenvolveram-se para além do mais avançado sonho tecnológico. Fecharam seu perímetro com uma barreira eletrônica que impede qualquer invasão, trocaram seus corpos mortais pelos de autômatos e ali estabeleceram uma utopia que está prestes a dar um novo e grandioso salto evolutivo. Mas a sorte de Fragoso e Maneco está selada: eles substituirão os dois últimos remanescentes de uma tribo inca escravizada pela República 3000: Capac e Raymi – "a filha do inca" –, por quem Fragoso se apaixona e é correspondido. Contudo, a substituição implica no sacrifício ritual de Raymi e Capac, sendo que suas mortes devem vir pelas mãos do pobre Maneco. Parece não haver futuro para o romance entre Fragoso e Raymi, a não ser que os sábios da República descubram a equação final que procuram e fará deles cidadãos do universo.
A filha do inca apresenta duas partes bem distintas: a primeira é um relato realista da malfadada missão militar, com descrições vivas da geografia, flora e fauna brasileiras. A segunda, uma história fantasiosa e romântica, na tradição das aventuras de H. Rider Haggard, com ambientes áridos e minimalistas arrematados por um final positivista que cumpre a intenção do autor em realizar um texto para jovens. Entretanto, a parte inicial é tão pungente que agrada também ao leitor adulto.
Não há preconceito que resista a leitura do texto vigoroso de A filha do inca. Quem quer que o faça vai, imediatamente, defender que seja relacionado entre as melhores obras da ficção científica brasileira, com admiração por saber que foi redigido em época anterior a maioria dos grandes clássicos internacionais da ficção científica, antecipando em muito a consciência do gênero no Brasil.
Cesar Silva

Fazenda Modelo: Novela pecuária, Chico Buarque

Fazenda Modelo: Novela pecuária, Chico Buarque. 140 páginas. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1974.

Os anos 1970 foram uma espécie de interregno entre as duas principais gerações de escritores brasileiros que se dedicaram aos gêneros fantásticos e, mais especificamente, à ficção científica. Até 1969, tivemos uma boa quantidade de livros escritos pelos autores da chamada Primeira Onda da ficção científica brasileira, carinhosamente conhecida como Geração GRD, ainda que nem todos tenham realmente surgido sob a égide da legendária editora GRD: André Carneiro, Fausto Cunha, Dinah Silveira de Queiroz, Rubens Teixeira Scavone, Jeronymo Monteiro, Rachel de Queiroz, Nilson Martello, Guido Wilmar Sassi, Antonio Olinto, Levy Menezes e muitos outros. Muitos destes não construíram suas obras exclusivamente na fc&c, e no mainstream conquistaram reconhecimento de público e crítica, emprestando prestígio ao fantástico brasileiro.
A Segunda Onda de autores ensaiou seus primeiros passos a partir de 1982 no Boletim Antares, publicado pelo Clube de Ficção Científica Antares de Porto Alegre: Simone Saueressig, Gerson Lodi-Ribeiro, Miguel Carqueija, Jorge Luiz Calife e Roberto de Sousa Causo foram os nomes dessa turma que se firmaram nas páginas de fanzines e boletins de clubes de fãs, unindo-se a outros tantos, tais como José dos Santos Fernandes, Ivan Carlos Regina, Carlos Orsi Martinho, José Carlos Neves, Braulio Tavares, Finisia Fideli, Fabio Fernandes, Roberto Schima e muitos outros.
Entretanto, nesses dez ou doze anos de intervalo, a fc&f brasileira não foi abandonada totalmente. Apesar dos especialistas terem reduzido sua presença editorial durante os piores anos da ditadura militar, outros escritores não necessariamente identificados com o gênero perceberam na literatura de fantasia uma ótima maneira de contornar as redes da censura e dizer o que pensavam a respeito daquele período tenebroso, uma vez que os órgãos de comunicação de massa eram bem mais vigiados do que os livros.
Chico Buarque de Holanda era então um compositor de sucesso, respeitado e prestigiado tanto pela elite intelectual quanto pelo povão, no Brasil e no exterior. Sua poesia de sentidos múltiplos agradava pela qualidade da composição e pela identificação imediata com o jeito brasileiro, somada a musicalidade criativa, belos arranjos e harmonias. Chico Buarque fazia então o que alguns classificavam como "música de protesto", embora sua responsabilidade artística não permitisse que o panfletarismo simplório dominasse o conteúdo criativo, como acontecia com outros compositores menos brilhantes.
Em 1974, no auge da repressão política, a editora carioca Civilização Brasileira, que já publicava o fantasista goiano José J. Veiga, levou às livrarias a primeira novela de Chico Buarque, Fazenda Modelo: Novela pecuária.
Trata-se de um texto obviamente alegórico, tal como também são suas poesias, que conta a ascensão e a queda de um projeto econômico e social dirigido por tecnocratas e financiado pelo capital estrangeiro.
A Fazenda Modelo era, a princípio, uma propriedade rural que, embora de grandes dimensões, não diferia em nada de qualquer outra propriedade agropecuária, com a boiada solta no pasto descuidado, sem nenhuma tecnologia ou acompanhamento técnico. A vida dos bois e vacas não era fácil, mas era tranquila e sem percalços. As rezes nasciam naturalmente, alguns meses depois de coitos igualmente naturais, a comida vinha diretamente do chão inculto, os carrapatos e as doenças eram um grande incômodo mas, enfim, não é assim em toda parte?
Então Juvenal, o bom boi, elegante e educado filho da pátria, é elevado a posição de conselheiro-mor da Fazenda Modelo e aos poucos implanta nela o milagre econômico que vai tirar a boiada do atoleiro e arremessá-la para o futuro glorioso. Assessorado por técnicos especialistas importados (todos curiosamente tendo o nome iniciados pela letra "K") Juvenal elege Abá como o semental-mor da Fazenda Modelo: boi forte e viril, apaixonado pela vaca Aurora, que viria ser a matriz criadora mais importante do projeto. Abá é isolado da vacada em um galpão absolutamente limpo e somente durante os períodos propícios de cobertura são trazidas as vacas para que ele as emprenhe. Alucinado de desejo por Aurora, que é a primeira vaca a entrar no touril, Abá vai trepando em cada uma das vacas que vem depois e garante dessa forma o sucesso da primeira geração de bezerros cientificamente selecionados da Fazenda.
Com o bom desempenho da vacada nas exposições, o sêmen de Abá torna-se o ouro branco de exportação da Fazenda Modelo, que passa a usar um processo eletrônico, sem contato físico, para colher o líquido de Abá, sendo as vacas  fertilizadas artificialmente.
Enquanto a Fazenda Modelo cresce e se desenvolve, com a instalação de fábricas de todos os tipos, estádios de primeiro mundo, monumentos a Juvenal, praças e fontes grandiosas, a vacada vai ficando cada vez mais triste. A poluição começa a envenenar a boiada mais simples, as reprodutoras entram em depressão pelo desaparecimento inexplicável de seus filhos, parando de aleitar e de emprenhar, e até Abá, viciado no aparelho de coleta de sêmen, envelhece precocemente. Lubino, seu sucessor, é apressadamente escolhido entre os touros da primeira geração. Mas Lubino não estava ainda preparado e a tragédia vai se abater sobre a Fazenda Modelo e seu grande projeto de desenvolvimento.
É interessante deixar-se levar pela fantasia de Chico Buarque, que modula a humanização/bovinização dos personagens conforme as circunstâncias dramáticas exigem.
Está claro que esta novela é uma alegoria da situação política brasileira em 1974, não muito disfarçada pelo cenário da Fazenda Modelo. Frases e atos de Juvenal têm paralelos óbvios na realidade histórica, e muitos leitores experientes na fc anglo-americana podem achar a leitura um tanto ingênua e previsível.
Mas Fazenda Modelo exemplifica uma das mais imediatas missões da arte e da literatura, qual seja, levar o leitor a refletir sobre a sua realidade objetiva. Nesse aspecto, é amplamente bem sucedida, pois a mensagem é clara e a leitura é facilitada por um texto que fala muito bem ao leitor comum que, em tese, é o seu público alvo. Contudo, Fazenda Modelo preserva os ideais do Modernismo e utiliza uma redação elaborada repleta de estruturas literárias criativas e coloquialismos intraduzíveis, que agradam também ao leitor sofisticado.
Ainda mais significativo é o fato de Fazenda Modelo ter aparecido em pleno cenário dos fatos que motivaram a sua composição. Não há dúvida que Chico Buarque e a editora Civilização Brasileira correram riscos sérios ao ousar sua publicação. Pode ser que Buarque tenha se escudado em sua fama maiúscula ou no auto-exílio que cumpriu no exterior. Mesmo assim, é espantoso que assim tenha sido.
Geralmente, espera-se que um autor literário demonstre alguma coragem para atacar os seus alvos e que, eventualmente, ponha a cabeça para fora da trincheira e dispare um tiro na direção deles. Isso já é suficiente para dar significado à obra para além do entretenimento frívolo e descartável ou do formalismo acadêmico, principalmente no caso da fc, tida como um gênero alheio à realidade. Ainda que possamos pinçar uns tantos bons exemplos, entre eles o próprio Fazenda Modelo, no que se refere a fc&f brasileira percebe-se que o preconceito justifica-se, infelizmente.
Apesar da tendência natural e quase inevitável da fc&f para o simbolismo, a caricatura e a alegoria, os autores brasileiros sempre demonstraram interesse especial pelo entretenimento do gênero, evitando a discussão de problemas contemporâneos em seus trabalhos. Investem na elaboração de utopias e conceitos tecnológicos fantásticos, lançando suas histórias em tempos distantes no passado ou no futuro, com protagonistas mitológicos, mecânicos ou alienígenas, de forma a fugir o mais possível do problemas do presente e dos mistérios da alma humana, alienando-se já no ato da composição da obra que, desse modo, distancia-se do leitor que não se identifica com ela quando publicada.
Um e outro ainda demonstram, eventualmente, coragem suficiente para dar aquela olhadela acima da trincheira, mas a grande maioria satisfaz-se em sentar num canto retirado, jogar baralho e apostar cigarros. Para eles a batalha, a realidade, sequer existe.
Exatamente por isso, Fazenda Modelo é leitura importante num gênero que ainda carece de uma profunda discussão existencial no País.
Cesar Silva

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O jogo no tabuleiro, Simone Saueressig

O jogo no tabuleiro, Simone Saueressig. 350 páginas. Editora Clube de Autores, Novo Hamburgo, 2010.

O jogo no tabuleiro é um romance de alta fantasia que consegue, de forma criativa e surpreendente, trazer um gênero iminentemente angloamericano para o dia-a-dia brasileiro, sem parecer forçado.
A história conta o que acontece a um grupo de jovens amigos, moradores de uma cidade pequena, quando um deles desaparece misteriosamente depois de participar de um novo tipo de jogo. Dias depois, a turma traumatizada recebe a visita de um personagem desconhecido que lhes traz um recado do amigo desaparecido, pedindo ajuda e dando um endereço. Apreensivos e sem avisar ninguém, os jovens deslocam-se até o local que revela ser uma apenas uma casa comum, onde uma senhora simpática mantém um espaço lúdico com um jogo de tabuleiro que ela mesma construiu. Ao aceitarem experimentá-lo, finalmente descobrem o que aconteceu com o colega desaparecido e o tamanho das dificuldades para fazer o caminho de volta.
Simone é uma autora experiente, com diversos títulos de fantasia publicados por editoras importantes, como O palácio de Ifê (L&PM, 1989), A fortaleza de cristal (L&PM, 1993), A máquina fantabulástica (Scipione, 1997) e Receita para um dragão (Scipione, 1999), livros comercialmente identificados como infanto-juvenis e recomendados como leitura paradidática. Porém, Simone vai além da maioria dos autores dessa espécie de texto. Todos os seus romances têm níveis mais profundos de interpretação e satisfazem totalmente aos leitores mais exigentes.
A autora investiu todo o seu potencial autoral em O jogo no tabuleiro. Por causa de seu volume avantajado, a autora teve dificuldades em encontrar uma editora para ele. Depois de anos de buscas, resolveu em 2009, publicá-lo em seu site Porteira da fantasia, dividido em em três volumes: O afilhado das fadas, A falcoeira e O Nemthru, reunidos depois em um único volume também publicado pela autora em 2010 através do Clube de Autores.
Quem gosta de fantasia vai se deliciar com O jogo no tabuleiro. E mesmo quem não sabe se gosta, vale a pena arriscar: O jogo no tabuleiro é, sem dúvida, o melhor romance de fantasia já escrito por um autor brasileiro.
Cesar Silva

O senhor da chuva, André Vianco

O senhor da chuva, André Vianco. 272 páginas. Capa de Christian Pinkovai. Editora Novo Século, Barueri, 2001.

André Vianco é um escritor de Osasco que tem aparecido muito bem nas livrarias, pela Editora Novo Século. Seu livro de estreia, o romance vampiresco Os sete, publicado em 2000, foi muito bem recebido pelos leitores e inaugurou uma nova era no acesso dos autores de fc&f às editoras brasileiras.
Apesar do sucesso, Vianco é muito simples e simpático, e não se furta a comparecer aos eventos de horror organizados pelos fãs. Ele cedeu uma longa entrevista ao Anuário Brasileiro de Arte Fantástica, publicada na edição referente a 2008, na qual confessa que O senhor da chuva foi, na verdade, o primeiro livro que o escreveu, e que não gosta muito dele pois o considera amador mas, ainda assim, não pretende reescrevê-lo. De fato, o romance apresenta algumas inconsistências, mas nada que destoe exageradamente. É um livro que entretém, tem bons personagens – uma característica em todos os livros de Vianco – ótima narrativa e objetivos filosóficos meritórios.
A história é sobre dois irmãos gêmeos separados pela vida. Samuel tornou-se fazendeiro e toca uma plantação de milho na imaginária cidade de Belo Verde, no interior de São Paulo, enquanto o outro, Gregório, caiu no mundo e se tornou um pequeno traficante de drogas na capital do estado. Gregório pretende voltar para sua antiga vida em Belo Verde tão logo encerre seu último grande negócio, que lhe irá render muito dinheiro. Mas as coisas não dão certo e ele acaba fuzilado pela gangue que ia lhe comprar a droga.
É neste ponto que se insere o maravilhoso, quando Thal, um anjo que guarda algumas boas almas da região, tocado pelos sentimentos sinceros do traficante, tenta interferir na tragédia e acaba vitimado por uma horda de demônios que acompanhava a gangue assassina. No momento da morte de ambos, um milagre acontece e o espírito combalido do anjo entra no corpo de Gregório, devolvendo-lhe a vida ao mesmo tempo que o arremessa ao local em que ele mais pretendia estar, Belo Verde. Encontrado no meio da plantação de milho do irmão, um desmemoriado Gregório acredita que poderá viver tranquilamente dali em diante, mas as hostes demoníacas farejam o destino do anjo Thal que habita o seu corpo, enquanto velhos inimigos de Gregório, que também querem sua pele, encaminham-se à pequena cidade, onde se prenuncia um holocausto de proporções cósmicas, cujo desfecho trágico e previsível só poderia ser evitado pela intervenção divina.
O senhor da chuva tem, portanto, um enredo movimentado, com muita ação, tiroteio, batalhas violentas e sanguinárias em dimensões que se superpõe (homens x homens; anjos x demônios), interferindo uma na outra através do vínculo entre Gregório e Thal. Além dos anjos e dos demônios, outros seres sobrenaturais aparecem no livro que, por exemplo, não deixa de dar sua própria versão para a origem dos objetos voadores não identificados.
O que mais surpreende em O senhor da chuva é a coragem do autor em usar a doutrina cristã na cosmologia do romance, num momento em que o niilismo ateu predomina os discursos literários. Explica-se: André Vianco passou sua juventude na igreja Batista e tem uma forte formação religiosa. O senhor da chuva reveste-se, portanto, de um caráter evangélico explícito, ainda que um tanto permissivo, derivando em alguns momentos para o gnosticismo e até o espiritismo kardecista. Não deixa de ser, contudo, um exemplo raro desse tipo de ambiente na literatura fantástica, principalmente no Brasil, abrindo um leque de possibilidades novas ao gênero. Também é muito louvável o fato do autor não ter evitado expor essa visão, perfeitamente autêntica dentro de suas convicções pessoais.
Ainda que não seja seu maior sucesso, O senhor da chuva emplacou várias tiragens e continua a ser bem vendido nas livrarias brasileiras.
Cesar Silva

Futuro proibido


Futuro proibido [Semiotext(e)], Rudy Rucker, Robert Anton Wilson & Peter Lamborn Wilson, orgs. 224 páginas. Tradução de Sergio Kukpas, Ludmila Hashimoto Barros e Alexandre Matias. Capa de Johnny Freak e Denis Takata. Editora Conrad, São Paulo, 2003.

A editora brasileira comenta, na apresentação assinada por Marietta Baderna, que o livro seria publicado no Brasil em duas partes, anunciando para o segundo volume os textos de Philip José Farmer e Robert Sheckley entre outros. No entanto, publicou só o primeiro volume, deixando os leitores brasileiros com apenas parte desse curioso projeto, na qual se destacam-se os nomes de Bruce Sterling, Colin Wilson, Willian Gibson, Rudy Rucker e J. G. Ballard.
A ideia dos organizadores de Futuro proibido era reunir textos ousados e perturbadores que eventualmente tivessem sido censurados em suas edições originais, mas a maior parte dos contos não foi realmente censurada. Publicados em fanzines, são textos algo libertinos para o estado da arte vigente a época em que foram escritos, mas lidos hoje soam bastante normais. De fato, há trabalhos mais ousados entre os modernos escritores brasileiros de fc&f, mas é possível que muitos deles tenham sido influenciados pela leitura deste mesmo volume.
No aspecto erótico, os contos mais expressivos são "Êxtase no espaço", de Rudy Rucker – que não termina lá muito bem – e "O pênis Frankenstein", de Ernest Hogan – o mais entusiasmante do conjunto.
"Vemos as coisas de modo diferente", de Bruce Sterling e "Relatório sobre uma estação espacial não identificada", de Ballard, são textos bastante profissionais. O de Sterling lida com um tema sensível para os americanos, que é a presença em destaque de personagens árabes, mas ambos são trabalhos conservadores no estilo, ainda que avançados nas ideias.
A maior parte dos 16 contos publicados na edição brasileira se destaca mais pela ousadia formal, pós-moderna, do que pelos conteúdos. O trabalho de Colin Wilson sequer chega a ser um conto, está mais para um artigo. Dentre esses textos alternativos, impressiona "Visite Port Watson!", de um autor anônimo, que se desenvolve na forma de um guia de viagem a uma ilha no meio do Pacífico que vai soar familiar a quem acompanhou o seriado Lost.
Completam a edição alguns portfólios de artistas plásticos que perderam muito de seu possível apelo por serem publicados em uma apresentação pobre, sem cores e com definição ruim.
Por ser um livro pela metade, a sensação de incompletude é frustrante. Imaginar o que Farmer e Sheckley fizeram e que não sabemos é de deixar maluco. É difícil dar uma avaliação final realmente isenta, mas a impressão geral é que a ideia é melhor que o resultado. Poucos dos trabalhos publicados realmente cumprem a promessa do futuro proibido prometido pelo título nacional, mas vale a pena conhecer o que estes autores pensam ser uma fc imaginativa aos olhos do século XXI. Pelo menos a metade do livro é bastante inspiradora, o que é muito mais do que eu geralmente se pode esperar das antologias em geral.
Cesar Silva

Tempo fechado, Bruce Sterling


Tempo fechado (Heavy weather), Bruce Sterling. Tradução de Carlos Angelo. Capa de Vagner Vargas. Devir Livraria, São Paulo, 2008.

O escritor texano Bruce Sterling é um dos baluartes de um movimento estético e conceitual da fc que ficou conhecido como cyberpunk. Teve publicado anteriormente no Brasil apenas o romance Piratas de dados (Islands in the net, 1988) pela editora Aleph, além de alguns contos. O estilo de Sterling é arejado, agradável de ler, sem afetações e bastante interessante no que se refere aos temas propostos.
Tempo fechado conta a história dos irmão Alejandro (Alex) e Juanita (Jane), herdeiros de uma enorme fortuna mas que tiveram o azar de ter um pai controlador e nascer num mundo em processo de demolição por conta de incontornáveis prejuízos ambientais causados pela ação humana desregrada. As fronteiras internacionais praticamente não existem para eles, que vivem de uma forma selvagem, deslocando-se ilegalmente, escondendo-se do pai e um do outro. No início da história, Alex – que sofre de bronquite crônica aguda – está em tratamento de saúde numa clínica ilegal no México, gastando os tubos com medicamentos experimentais. Ele passa a maior parte do tempo drogado, mas Jane tem outros planos para o irmão. Com um equipamento de espionagem sofisticado, ela invade a clínica, resgata Alex e o carrega, num veículo todo-terreno que mais parece um robô, até uma região no meio-oeste americano onde há grande incidência de tornados – que têm sido cada vez mais violentos depois que as alterações climáticas interferiram no equilíbrio ambiental do mundo inteiro. Jane faz parte da Trupe Intempestiva, uma equipe de especialistas em tornados, cujo líder, Jerry, previu através de ensaios matemáticos a formação de um super-tornado que pode devastar toda a região e alterar definitivamente o clima global. Ninguém acredita que esse tornado possa acontecer, mas toda a Trupe espera que sim e se prepara caçando e estudando tornados menores. As previsões de Jerry indicam que o fenômeno deve acontecer dentro de alguma semanas e, por isso, todos estão ansiosos. Aos poucos, entendemos que Jane arriscou-se tirando o irmão da clínica mafiosa porque, no final das contas, estava completamente falida e esperava que o irmão pudesse suprir as necessidades financeiras da Trupe com a sua parte da herança familiar. Mas Alex vai além. Apesar da saúde comprometida, prova ser suficientemente rústico para se dar bem na Trupe. Ele realmente espera morrer no supertornado e assim dar algum sentido à sua vida. Mas a aventura pode ser um pouco mais complicada. Sempre é.
Conheci Sterling pessoalmente em 1997, durante a V InteriorCon, em Sumaré. Um cara muito simples e acessível, apreciador de churrasco e caipirinha, e penso que Alex é uma espécie de alter-ego dele. Como seus personagens, Sterling vive em deslocamento, cada hora num país diferente – quando esteve no Brasil, por exemplo, estava vindo de um temporada na Rússia. Apaixonado por culturas exóticas, aproveita para colocar essa rica experiência em sua literatura, o que acabou por caracterizar também o movimento cyberpunk como um todo. Ler Sterling acrescenta camadas de entendimento sobre o cyberpunk, que vai muito além de jargão tecno, brutalismo e óculos espelhados.
Sterling conta histórias que se passam no futuro tão próximo que mal chega a ser fantástico. Fala de coisas que já estão no dia-a-dia, que vemos ao nosso redor. Há seres humanos de verdade nas suas histórias, em situações que poderiam estar acontecendo de fato. 
Tempo fechado é uma história no seu tempo certo, colocando em debate a nossa responsabilidade coletiva, ou a falta dela, no cuidado com a natureza, o meio ambiente e o próprio homem. Afinal de contas, o tal supertornado pode até não acontecer, mas sabemos que a realidade sempre supera a ficção.
Cesar Silva

Antonio Olinto (1919-2009)

Mineiro de Ubá, Antonio Olinto foi professor e jornalista, dono da cadeira número oito da Academia Brasileira de Letras. Seu primeiro livro foi a antologia poética Presença publicada em 1949. Desenvolveu um amplo trabalho como ensaísta, crítico literário e divulgador da cultura brasileira. Em 1994 recebeu o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra. A biblioteca da Faculdade de Letras Ozanan Coelho, de Ubá, recebeu seu nome.
Na ficção científica, seu currículo é pequeno mas significativo. Foram dois contos, ambos publicados pela GRD: "O menino e a máquina", na Antologia Brasileira de Ficção Científica (1961) e "O desafio", em Histórias do acontecerá (1961). Olinto foi ainda o primeiro crítico a publicar ensaios sobre ficção científica em um livro, o Cadernos de crítica.
Olinto era casado com a escritora Zora Seljan, falecida em 2006, que também teve uma curta carreira na ficção científica.
Ainda que o acadêmico tenha se afastado do gênero, ao ponto de nem relacionar os trabalhos de ficção científica em sua bibliografia oficial, mesmo assim merece a nossa lembrança e homenagem, pelo que fez em favor da fc&f no Brasil num tempo em que quase ninguém se importava com isso.
Antonio Olinto faleceu no dia 12 de setembro de 2009, no Rio de Janeiro, de falência múltipla dos órgãos. Foi velado no prédio da ABL e sepultado no mausoléu da Academia, no Cemitério João Batista, no Rio de Janeiro.

Walter Martins (1932-2010)


Escritor da Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira, José Walter Martins era formado em Engenharia Química pela USP (1958), Mestre em Ciências pela Universidade de Illinois (1963) e Doutor em Ciências pela UNICAMP (1974), foi professor na Unicamp por mas de vinte e cinco anos, aposentando-se em 1995.
Participou da comissão organizadora da I Convenção Brasileira de Ficção Científica, ocorrida entre 12 e 18 de setembro de 1965, no Auditório das "Folhas" em São Paulo, evento em que foi fundada a Associação Brasileira de Ficção Científica, a primeira agremiação formal do gênero no Brasil. Também esteve presente no Simpósio de FC de 1969, no Rio de Janeiro, até hoje o maior evento do gênero realizado no país.
Martins ainda compareceu à V InteriorCon, realizada em 1997 em Sumaré/SP, num encontro de autores do qual também praticiparam Nilson Martello e André Carneiro.
Entre seus textos de fc&f, o destaque é o clássico "Tuj", noveleta publicada na antologia Além do tempo e do espaço (1965, Edart). Martins também publicou "A volta de Adalbeu" no Magazine de Ficção Científica da Editora Globo (1970) e, mais recentemente, "De trufas e fanfruinhas" no Terra Magazine (2009). Walter Martins faleceu em 12 de janeiro de 2010, de embolia pulmonar, aos 77 anos.

Frank Frazetta (1928-2010)

Na segunda feira, 10 de maio de 2010, o mundo da fantasia perdeu um de seus mais expressivos talentos. Frank Frazetta mostrou a pelo menos quatro gerações como enxergar o gênero a partir de uma interpretação selvagem, romântica e surrealista.

Frazetta nasceu em Nova York em 9 de fevereiro de 1948 e iniciou sua carreira aos 16 anos como assistente no estúdio de John Giunta e Bernard Bailey. Fez muitos quadrinhos de humor com desenhos caricatos, mas se especializou em um estilo realista, de contornos precisos e contrastes dramáticos. Nos quadrinhos, desenhou histórias de romance, ficção científica e aventura, sendo famosas as suas pranchas para Shining Knight, White Indian, Buck Rogers e Johnny Comet, este último de sua criação.
Antes da fama, Frazetta foi ghost de Dan Barry nas tiras de jornais de Flash Gordon, e trabalhou no estúdio do lendário cartunista All Capp, desenhando as histórias de Li'l Abner (Ferdinando). Nos anos 1960 trabalhou com a editora Warren, fazendo capas para as revistas Eerie e Creepy, que lhe abriram as portas para o mercado editorial.
Suas ilustrações passaram a ser requisitadas para capas livros de fantasia, como as edições de Edgar Rice Burrougs e Robert E. Howard, entre outras. Frazetta também fazia belíssimos bicos de pena para ilustrar páginas internas, num estilo despojado e expressionista. Todos esses originais são hoje muito valorizados no mercado de arte.
Aprendi a gostar de Frazetta ainda garoto, nos anos 1970, nos portfólios importados que chegavam ao Brasil a peso de ouro. Gostaria de dizer que seu traço elegante e detalhista me influenciou, mas eu acho que o que aproveitei dele não foi o estilo de desenho, mas sim os temas e enfoques, de cenários épicos, poses heróicas, mulheres voluptuosas e grandes animais ferozes e elegantes. Seu traço mais visível eram as fisionomias algo orientais das mulheres e a delicadeza na composição das cores.
As imagens de Frazetta foram também adotadas por algumas bandas de heavy metal e apareceram nas capas de vários álbuns. Ainda guardo na minha estante, por saudosismo, uns poucos LPs em vinil, entre eles está o primeiro disco do Mollyhatchet, Flirting' with disaster, com uma de suas ilustrações mais conhecidas.
Um pouco de sua arte pode ser apreciada na deliciosa animação Fire and Ice (1983), de Ralph Bakshy, uma das melhores transposições da arte do mestre em formato audiovisual. Um documentário raro sobre suas técnicas é Frazetta: Paintig with fire (2003).
Frazeta estava com 82 anos, debilitado depois de vários derrames, sendo também um AVC a causa de sua morte. Seu legado é, além das milhares de pranchas e telas que estarão para sempre associadas a construção do imaginário de FC&F, a forte influência sobre as gerações seguintes de artistas que certamente vão continuar explorando as trilhas abertas pelo mestre.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Al Williamson (1931-2010)

Alphonsus Williamson, ilustrador cujo estilo claro-escuro perfeito influenciou mais de uma geração de ilustradores, nasceu em 21 de março de 1931, em Nova York. Filho de pai colombiano e mãe americana, passou sua juventude em Bogotá, onde aprendeu a gostar dos comics americanos, especialmente de Flash Gordon e de seu ilustrador mais expressivo, Alex Raymond. Em 1943, transferiu-se para os EUA, onde estudou desenho na escola de Burne Hoggart. Trabalhou com grandes artistas, como Frank Frazetta, Roy Krenkel e Wallace Wood, e com personagens importantes, como Tarzan, Flash Gordon e Phil Corrigan. Esteve entre a equipe de colaboradores da legendária editora EC Comics, realizando histórias de ficção científica e terror para as revistas Weird Fantasy e Weird Science, e também da editora Warren, para as revistas Eerie e Creepy.
Seu estilo hiperrealista, com uma sofisticada técnica volumes definidos em alto-contraste, fizeram dele um artista muito identificado com a ficção científica. Quando George Lucas procurou um grande artista para adaptar O império contra-ataca para os quadrinhos, foi Williamsom que ele escolheu. As versões em quadrinhos para os filmes da saga estão entre as edições mais valorizadas do gênero. Williamson também deu extrema dignidade às tiras de jornal de Star Wars (publicadas em São Paulo pela extinta Folha da Tarde) e para algumas das mais valiosas edições da versão em gibi, pela Marvel Comics. Também realizou uma notável adaptação em quadrinhos para o "cultmovie" Blade Runner, uma edição rara e de altíssima qualidade.
Ganhou vários prêmios Harvey e National Cartoonists Society e Eisner, do qual faz parte do Hall da Fama.
Nos últimos anos, Williamson esteve envolvido com os quadrinhos de super-heróis, principalmente como artefinalista, um desperdício para um profissional desse quilate.
Al Williamson morreu neste domingo, dia 13 de junho, em sua cidade natal, aos 79 anos, e deixa para a posteridade uma obra de extremo valor que merece ser continuamente recuperada.

José Saramago (1922-2010)

Em 2010, a língua portuguesa perdeu um de seus mais expressivos escritores, o português José de Sousa Saramago, ganhador do Nobel de Literatura de 1988.
Saramago é autor de alguns dos mais surpreendentes textos da moderna literatura mundial, entre os quais o seminal Ensaio sobre a cegueira (1995), filmado em 2008 por Fernando Meirelles. Um perturbador mergulho na natureza humana que pode perfeitamente ser lido como um texto de ficção científica.
Além deste, outros títulos do autor navegam na ficção fantástica, como A jangada de pedra (1986), Ensaio sobre a lucidez (2004), As intermitências da morte (2005) e História do cerco à Lisboa (1989), entre outros.
O estilo genial e inusitado de Saramago, com longos parágrafos sem pontuação, diálogos embutidos, e ainda assim perfeitamente compreensível, desmonta todas as teorias literárias conhecidas.
Saramago foi um crítico ferrenho do catolicismo e seu último livro, Cain (2009), foi recebido com muita antipatia pela igreja Católica Romana.
Apesar de Saramago ter sido o maior representante vivo da ficção portuguesa, com uma boa quantidade de títulos claramente instalados em gêneros fantásticos, nunca aceitou o rótulo de escritor de ficção fantástica e talvez por isso o fandom português de FC&F não teve com ele uma relação próxima. Mas isso não desqualifica em nada a sua obra maiúscula, que merece ser conhecida e, por que não, imitada pelos autores jovens.
Saramago faleceu nesta sexta-feira, 18 de junho, aos 87 anos, em sua casa em Lazanrote, vítima de leucemia crônica.

Fantasmas do século XX, Joe Hill


Fantasmas do século XX (20th century ghosts), Joe Hill, 288 páginas. Tradução de Fernanda Abreu. Capa de Raul Fernandes. Editora Sextante, Rio de Janeiro, 2008.

Terminei de ler, há alguns dias, a coletânea do escritor americano Joe Hill, Fantasmas do século XX (20th century ghosts), publicada no Brasil em 2008 pela editora Sextante e premiada com o Bram Stoker, o British Fantasy e o International Horror Guild. A introdução do volume é assinada por Christopher Golden.
Não é segredo que Joe Hill é filho de Stephen King, e essa ascendência levou-me a crer que o jovem Joe Hill (nascido em 1972) de alguma forma fosse uma miniatura do pai e que dele fizesse pastiches e simulacros, de modo que a princípio eu não me entusiarmei com o título, pelo menos até saber do reconhecimento internacional que tanto a coletânea quanto vários dos contos presentes neste volume receberam.
"O melhor do novo horror" ("Best new horror" - prêmios British Fantasy e Bram Stoker) abre o volme e é o melhor texto da coletânea. Metalinguagem com ecos de O massacre da serra elétrica, mas com um algo mais que certamente vai apavorar quem vive em meio a livros e fanzines de horror.
"Fantasma do século XX" ("20th century ghost", prêmio Bradbury Fellowship) conta sobre um velho cinema assombrado pelo fantasma de uma garota e a maneira como um jovem se apaixona por ela. Participação especial de Steven Spielberg, com o nome trocado, é claro.
"Pop art" ("Pop art") fala sobre os problemas existenciais de um menino inflável. Delicioso.
Em "Vocês irão ouvir o canto do gafanhoto" ("You will hear the locust sing"), um jovem vira um inseto gigante e inicia uma cruzada de violência na cidade, óbvia citação a Kafka, com um quê de Carrie.
A ficção alternativa "Os meninos de Abraham" ("Abraham's boys") conta o que aconteceu depois dos eventos vistos em Drácula. Abraham Van Hellsing casa-se com Mina e com ela tem um filho. A família Hellsing migra para os EUA, onde nasce mais um menino. Mina morre e Abraham tem que criar as crianças sozinho. Mas ele é um pai rigoroso, paranóico com a ideia de que os vampiros ainda os estão perseguindo e os filhos sofrem com sua obsessão.
"Melhor do que lá em casa" ("Better than home" - prêmio A.E. Coppard) não é de horror, mas é delicioso. Um moleque cheio de encucações, cujo pai é jogador de beisebol profissional em um time da segunda divisão, conta suas impressões sobre os demais membros da família, em relatos maravilhosos do tipo Forest Gump.
"O telefone preto" ("The black phone") mostra como um garoto sequestrado por um psicopata encara a morte iminente.
"Encurralado" ("In the rundown") conta como o terror pode invadir a vida de qualquer um, seja durante um jogo de beisebol ou no caminho de casa depois do trabalho. Terror real, mas demasiado poético para ser realmente assustador. A poesia manda o medo para segundo plano.
"A capa" ("The cape") relata o que provavelmente um sociopata faria se pudesse voar.
"O último suspiro" ("Last breath") é uma belezinha. Uma família bem convencional visita, por acaso, um museu que guarda em grandes frascos, os últimos suspiros de várias personalidades famosas. Entre os silêncios engarrafados, por exemplo, o derradeiro suspiro de Edgar Allan Poe. As pessoas escutam o não-som engarrafado com estetoscópios e compartilham as últimas emoções do falecido. Um museu que deveria existir.
Depois, o curtíssimo "Madeira morta" ("Dead-wood"), sobre árvores fantasmas. Bom demais.
Em "O desjejum da viúva" ("The widow's breakfast"), um vagabundo chega a uma casa no meio de uma floresta e lá encontra uma viuva e suas três filhas pequenas. Narrativa realista, com um clima estranho mas muito suave, repleta de tragédia humana.
Em seguida, um dos melhores contos da coletânea: "Bobby Conroy volta dos mortos" ("Bobby Conroy comes back from the dead"). Mais uma vez, quase nada de fantasia... A narrativa é tão naturalista que o título parece uma licença poética, mas o desfecho é genial, que não é surpresa e não deixa dúvidas. Com participações especiais do maquiador Tom Savini e do cineasta George Romero, afinal a história se passa durante as filmagens de Dawn of the dead.
"A máscara do meu pai" ("My father's mask") é o penúltimo conto do livro. Um casal leva o filho adolescente à sua casa de veraneio para um final de semana em família. A mãe é uma mulher invulgar e ambígua, e o pai parece ser totalmente subordinado a ela. No caminho, a mãe inventa histórias malucas e propõe brincadeiras estranhas ao filho. Eles estão com problemas financeiros e parecem estar sendo perseguidos "pelas pessoas do baralho", como diz sua mãe, no que parece ser apenas mais uma das brincadeiras dela. Na casa de campo, um monte de máscaras, e a mãe recomenda que o menino as use o tempo todo para enganar as "pessoas do baralho". Como está frio, ela suspeitamente manda o menino buscar lenha na floresta para acender a lareira e, como numa história de fadas, recomenda que ele nunca saia da trilha. Na floresta, quando o garoto encontra as versões adolescentes de seus pais, fica claro que sua vida nunca mais será a mesma.
O conto final, "Internação voluntária" ("Voluntary committal" - World Fantasy para melhor novela), é muito perturbador. Só não supera em qualidade aquele que abre a antologia, o que revela o perfeito trabalho de estrutura da coletânea, com os dois melhores contos abrindo e fechando o volume. Fala de um garoto com problemas mentais que ajuda o irmão mais velho a se livrar de um problema. Ele constrói, no porão, um labirinto de caixas de papelão que transporta quem andar por ele para algum lugar que não se sabe onde é, para nunca mais voltar. Gosto de pensar que a vítima vai para o País das Maravilhas, mas quando lembro do romance de Stephen King, Os estranhos, em que um garoto metido a mágico manda o irmão para um lugar horrível, sinto-me mal.
Mas Hill ainda guardava uma carta na manga, um derradeiro conto embutido no posfácio. Diz o autor que fez isso porque queria ser tão criativo quanto Neil Gaiman, que havia embutido um conto em um prefácio (em Coisas frágeis, se não me engano). E lembro que King já havia embutido um conto numa nota de pé de página (em Dança macabra, se também não me trai a memória). Trata-se do interessante e curtinho "A máquina de escrever de Cherazade" ("Scheherazade's typewriter"), outro texto metalinguístico muito inspirado, sobre a máquina de escrever de um escritor falecido que continua a gerar romances por conta própria.
Fantasmas do século XX é um ótimo livro. Joe Hill não é imitador do pai e seu talento é suficientemente grande para que ele construa uma identidade literária independente, coisa que ele já comprova aqui. Coletânea altamente recomendada, tanto para quem gosta de horror quanto para quem não gosta.
Cesar Silva