domingo, 25 de janeiro de 2015

Os melhores romances brasileiros da fc

Há algumas semanas, conversando com meu colega de Anuário, Marcello Branco, discutimos a respeito dos melhores romances da ficção científica brasileira. Esta é uma daquelas discussões difíceis, porque passa por muitas definições nem sempre possíveis, especialmente em se tratando de ficção científica, além da definição de romance que, no Brasil, tem a ver com a forma narrativa e, nos EUA, com o tamanho físico do texto. Como me importo muito pouco essas definições, vou fazer aqui um levantamento do que, na minha opinião, está entre o melhor que os autores brasileiros de ficção fantástica já produziram.

Por uma questão de pioneirismo, inicio a lista com O Doutor Benignus (1875), de Augusto Emilio Zaluar, embora não seja ficção científica na minha opinião – pelo menos não mais do que A volta ao mundo em 80 dias, de Julio Verne. O romance, resenhado no Anuário 2007, conta sobre uma expedição científica ao planalto central, movida por um intelectual do Rio de Janeiro em busca da prova da habitabilidade do Sol, que acaba acontecendo apenas numa visão do protagonista depois de avistar a queda de um meteoro. O mais interessante da história toda é a descrição da natureza da região central do Brasil que, se não é exata, pelo menos é inspiradora.
Ainda que muita gente torça o nariz, eu não tenho nenhum pudor em relacionar a novela "O alienista" (1882), de Machado de Assis, como uma das mais importantes obras da ficção científica brasileira. Muito antes da New Wave, Machado já especulava sobre as ciências humanas - no caso, a psicologia, que só seria tema da FC internacional mais de 50 anos depois dele. Resenhada no Anuário 2008, em homenagem ao centenário da morte do autor, a novela conta sobre a decisão de um respeitado médico psiquiatra em compreender a mente humana e extirpar dela toda e qualquer loucura. Para isso, instala uma clínica numa pequena cidade interiorana e começa a realizar seus estudos com a população local. Os considerados loucos eram imediatamente trancafiados e submetidos ao tratamento experimental do médico. Aos poucos, toda a população da cidade acaba aprisionada no manicômio.

Outro romance a ser registrado é o excelente A Amazônia misteriosa (1925), de Gastão Crulz, que li há poucas semanas e será resenhado no Anuário 2010. Em muitos apectos, parece-se com o romance de Zaluar, com amplo destaque para a descrição da natureza amazônica, especialmente sua geografia, que o autor executa com maestria. Contudo, Crulz avança vigorosamente na ficção científica ao instalar, no meio da selva, uma aldeia na qual vive um importante cientista europeu que ali desenvolve um trabalho secreto, no qual utiliza os animais e a população nativa da região. Qualquer semelhança com A ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells, não deve ser coincidência.

O escritor modernista Menotti Del Picchia emplaca dois títulos nesta lista. A filha do inca (1930) e Kalum (1940), ambos passados mais ou menos no mesmo universo. Também são histórias que ocorrem em meio à floresta tropical da região centro-oeste, porém Del Picchia não se dedica com tanto afinco a descrever o ambiente e investe mais e melhor nos personagens e nas situações de ação. Em A filha do inca, os sobreviventes de uma expedição científico-militar dizimada por um ataque indígena, descobrem uma cidadela perdida onde habita uma civilização de robôs, descendente de antigos navegadores fenícios que chegaram à América centenas de anos antes de Colombo.

Em Kalum, novamente às voltas com uma tribo agressiva de índios, o sobrevivente de uma equipe de filmagens acaba por encontrar uma civilização de homens minúsculos vivendo nas profundezas de uma caverna. Ambos os livros foram comentados no Anuário 2005.

Por ser o mais polêmico romance de toda a FCB, O presidente negro (1926), de Monteiro Lobato, tem que ser lembrado. É racista, mas é relevante. Conta a história de um jovem escriturário meio boçal que, depois de uma acidente automobilístico, é socorrido por uma jovem cientista que está pesquisando a história do futuro através de um equipamento chamado porviroscópio, inventado por seu pai, um cientista de renome. Nesse futuro, os EUA elegem o primeiro presidente negro, criando um grande problema político para a civilização. O livro foi resenhado no Anuário 2006.

Uma das obras primas da ficção científica brasileira é Zanzalá (1936), de Afonso Schmidt, FC de primeira linha, com tudo o que o gênero tem direito: futuro distante, tecnologia extrapolada, utopia e um movimentado conflito militar. Conta a história de um casal que se muda para um povoado utópico encravado nas encostas da Serra do Mar. Ali, vivem em perfeito idílio e comunhão total com a natureza e com seus semelhantes. Porém, a felicidade desse povo não é vista com bons olhos pelos povos bárbaros no norte que, a certa altura, atacam o povoado com toda a sua potência bélica. Sem dúvida, uma obra de fôlego que merece ser lembrada. O romance foi resenhado no Anuário 2006.
Li O homem que viu o disco voador (1958), de Rubens Teixeira Scavone, quando ainda era muito jovem, mas ainda me lembro de um conjunto de impressões muito fortes. Trata-se de um romance poderoso, que investe nos mistérios da ufologia que, na época em que o livro foi escrito, ainda não havia se tornado a paraciência que é hoje. Scavone era um autor sofisticado, senhor de um estilo erudito, por isso ao publicar o romance pela primeira vez, assinou como Senbur Enovacs, um segredo de polichinelo, pois trata-se apenas do seu próprio nome escrito ao contrário, mas resultou. O livro foi bem recebido e todos ficaram curiosos sobre a origem do autor, que se acredita ser possivelmente tcheco. Mais tarde, quando o livro foi republicado – e o foi diversas vezes – passou a assinar com seu verdadeiro nome. O tema da ufologia não é muito caro à ficção científica, há inclusive algum preconceito, mas no Brasil trata-se de um tema recorrente e muito produtivo, do qual este romance é seu mais importante representante. O homem que viu o disco voador foi resenhado no Anuário 2008. Contudo, este não é o mais significativo trabalho do mestre.

Sua obra prima é O 31º peregrino (1993), uma novela também com viés ufológico, que se apropria do estilo de Os contos de Canterbury, obra do século XV do escritor inglês Geoffrey Chaucer. Scavone insere um 31º personagem a peregrinação à Catedral de Cantuária, uma mulher grávida e amaldiçoada que desequilibra o grupo. Ela sofre um destino trágico depois que testemunha o aparecimento de uma estranha luz no céu. A novela é forte e impactante, certamente uma das melhores obras da FC em língua portuguesa, resenhada no Anuário 2007.

Jerônimo Monteiro foi certamente a personagem principal daquela que chamamos a Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira. Monteiro organizou toda a sua carreira em torno da ficção fantástica, como autor e editor, e entre seus muitos escritos importantes está o romance Fuga para parte alguma (1961), que conta a história do fim da civilização, vitimada pelo avanço de um outro ser vivo, melhor preparado para ocupar o ecossistema terrestre: a formiga. Suas imensas cidades subterrâneas, construídas sob as cidades humanas, acabam por destruir toda a infraestrutura da superfície, obrigando os humanos a saírem delas e procurar por lugares onde os vorazes insetos não possam chegar, o que parece impossível. Uma autêntica ficção científica aos moldes daquela praticada nos EUA, que ainda hoje é uma leitura perturbadora.
Um dos mais expressivos autores da fantasia brasileira foi, sem dúvida alguma, o goiano José J. Veiga. Suas histórias invariavelmente seguiam os caminhos do mistério e das coisas estranhas e não explicadas. Para Veiga, a fantasia era um modo de desnudar a alma de suas personagens, revelando os aspectos sombrios e insuspeitos das relações humanas.

Praticamente todos os seus romances são clássicos da fantasia e, entre eles, temos alguma FC, talvez um tanto alegórica para o gosto dos fãs mais empedernidos, mas nem por isso menos ficção científica do que se pode desejar. A hora dos ruminantes (1966), resenhado no Anuário 2006, conta a história de um pequeno povoado que, certo dia, percebe que uma grande operação está sendo realizada em suas redondezas. Muitos caminhões e trabalhadores chegam ao local, mas não há interação com os moradores, que ficam cada vez mais curiosos. Não se sabe o que se trata a tal operação, mas ela traz consequências dramáticas para a cidade, coisas das quais nunca mais poderão ser esquecidas.

Outro romance poderoso de Veiga é Sombras de reis barbudos (1972), a história mais FC do mestre. Trata-se de uma distopia política, aos moldes de 1984, de George Orwell, em que as pessoas de uma determinada comunidade são encarceradas em suas casas por altos muros e uma polícia política tão implacável quanto sem objetivo.

Veiga não esteve associado a nenhum grupo de FC&F, mas produziu alguns dos melhores textos do gênero e chegou a flertar com a história alternativa antes que qualquer outro brasileiro tivesse pensado em fazê-lo. Em A casca da serpente (1989), Veiga traça uma linha histórica alternativa para a Guerra de Canudos, na qual Antônio Conselheiro não morre. Uma premissa muito instigante, com certeza.

Outra história de ficção científica alegórica e perturbadora é Asilo nas torres (1979), de Ruth Bueno. Resenhada no Anuário 2009, é uma novela com um criativo tratamento formal. Conta a história de duas mulheres em tudo opostas, que vivem à sombra de três altíssimas torres que abrigam uma repartição pública industrial, onde praticamente todos trabalham. Não há, aparentemente, mais nada na vida das pessoas além do que as próprias torres, e todos vivem em função delas. Aos poucos, as duas mulheres vão sendo confrontadas, com um final poético e redentor.

Dentre os grandes autores da primeira onda da ficção científica brasileira, um dos poucos que ainda está vivo é André Carneiro. Como todos os outros, a obra de Carneiro é mais retumbante na ficção curta, mas ele tem pelo menos um romance muito significativo, Piscina Livre (1980), resenhado no Anuário 2005. A história fala de uma utopia sexual futurista, na qual os tabus foram superados e as mulheres usam livremente os serviços da Piscina Livre, uma espécie de prostíbulo masculino onde as mulheres podem gozar momentos de satisfação com andróides especialmente desenvolvidos para esse fim. Mas nem tudo é perfeito nesse futuro de total liberdade sexual. Um romance importante que resume perfeitamente as ideias deste que é o mais feminista autor da FC brasileira.

Na minha opinião, o melhor de todos os romances da ficção científica em língua portuguesa é o incisivo Não verás pais nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão, extensamente comentado no Anuário 2006. Parte de um projeto do autor, iniciado com o romance Zero (1975), Não verás país nenhum é uma distopia que acompanha os descaminhos políticos e econômicos de um país em que a ditadura militar se perpetua, cometendo absurdos sobre absurdos, tudo testemunhado por um protagonista impotente que tenta sobreviver me meio ao caos. Deveria ser leitura obrigatória para o vestibular. Infelizmente, é o único romance de FC de Brandão, que tem alguns contos muito bons também.
Padrões de contato (1985), de Jorge Luiz Calife, é a nossa melhor hard fiction já publicada. Comentado no Anuário 2005, o romance narra a história de uma jovem que, depois de contatada por uma entidade alienígena, torna-se imortal, e dessa forma, testemunha toda a história do futuro, na qual a humanidade se lança às estrelas. O romance teve duas sequências, Horizonte de eventos e Linha terminal que, em 2009, foram reunidas num único volume pela editora Devir Livraria, uma ótima oportunidade para os leitores experimentarem a totalidade dessa que é a mais vultosa obra da ficção científica brasileira, que muitos especialistas consideram a pedra fundamental da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira.

Blecaute (1986), de Marcelo Rubens Paiva, também é um título que merece estar nesta lista. A prosa naturalista e cheia de estilo de Paiva contribui para o estranhamento da história de três jovens espeleólogos que, ao voltarem de sua última exploração subterrânea, encontram a cidade de São Paulo completamente paralizada, com todas as pessoas congeladas como manequins. Trata-se de um dos maiores sucessos editoriais da ficção científica nacional.

Mais ousado que Paiva, o escritor franco-brasileiro Daniel Fresnot foi extremamente feliz ao escrever A terceira expedição, de 1987 (republicado em 2013 pela Devir Livraria), com toda a certeza, o melhor romance de toda a Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira, comentado no Anuário 2007, quando completou vinte anos de publicação. Fresnot conta a aventura de um grupo de moradores do interior de São Paulo, sobreviventes de uma hecatombe mundial, que realizam uma expedição às ruínas da capital do estado. As descrições que Fresnot faz das regiões metropolitanas em total abandono são fortes e emocionantes, especialmente para quem conhece a cidade.

O escritor mineiro Luis Giffoni, que tem sua obra mais vinculada ao mainstream, brindou os leitores com seu intrigante Infinito em pó (2004), uma história sobre uma espaçonave gigante numa jornada de décadas rumo a uma estrela distante. Os tripulantes têm uma relação tensa e complicada, com uma verdadeira espada de Dâmocles sobre suas cabeças: uma mini buraco negro, que é a fonte de energia da espaçonave, mas que também pode destruí-la. Giffoni não faz conceções para uma narrativa fácil: o primeiro diálogo do romance via acontecer apenas por volta da página 100. Mas vale a pena acompanhar a história até o final, pois é um dos raros exemplos de um romance brasileiro sobre uma espaçonave de gerações. O trabalho foi resenhado no Anuário 2004.

Quintessência (2004), de Flávio Medeiros Jr., foi uma grata surpresa e foi resenhado no Anuário daquele ano. Estreia literária do escritor, é um movimentado tecnotriller com elementos de ficção científica muito bem posicionados. Medeiros aproveitou sua origem mineira e instalou a história em uma Belo Horizonte da segunda metade do século XXI. Depois de um atentado fatal num shopping center, o detetive que investiga a ação é arrolado como mandante, e isso vai levá-lo a um torvelinho de situações, com fugas e perseguições dignas de um filme hollywoodiano.

Domingos Pellegrini é outro autor mainstream que se aventurou na ficção científica com ótimos resultados. Não somos humanos (2005), comentado no Anuário 2005, é um romance sobre a escravidão, desta vez a de pessoas geneticamente manipuladas para esse fim. Um jovem casal de escravos foge da fazenda de seus proprietários e, depois de muita luta, encontram uma espécie de quilombo em meio às montanhas. Ainda que a vida ali não fosse fácil, era bem melhor que aquela que eles levavam na fazenda, e eles resolvem ficar por ali. Contudo, como os senhores mantém seus capitães do mato em ação, a comunidade de escravos fugidos vai ter que se envolver mais efetivamente com um movimento de libertação que de desenvolve nos bastidores das grandes cidades.

A ira da águia (2006), do médico carioca Humberto Loureiro, também foi uma boa surpresa. Trata-se de um romance ousado, com vários níveis narrativos, que conta a história de um físico brasileiro que cria uma arma tão poderosa que pode colocar o Brasil na liderança política mundial. Quando um pequeno navio brasileiro põe a pique uma poderosa força-tarefa norte americana, o serviço secreto dos EUA convence-se de que é fundamental conseguir os segredos dessa arma misteriosa, custe o que custar, pois está em jogo o seu predomínio no mundo. O livro foi resenhado no Anuário 2006.

Autor formado durante a Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira, Roberto de Sousa Causo exercitou-se um bocado nos fanzines ao longo dos anos 1980 e 1990. Contudo, apesar dessa longa experiência com o gênero, sua literatura tem crescido ainda mais depois que começou a publicar regularmente no mercado editorial. O par: Uma novela amazônica (2008), é um de seus trabalhos mais maduros e intensos, foco de vários de seus temas preferidos, especialmente a vida militar, alienígenas e as profundas matas da Amazônia. Neste romance, um soldado desertor experimenta um contato imediato com um ovni e a partir disso desenvolve um abscesso na perna esquerda, de onde, depois de algum tempo, surge uma jovem que lembra a sua antiga esposa. Juntos, eles continuam a fuga e vão encontrar um acampamento de contrabandistas que pode ser o final de sua jornada. O romance venceu o concurso Projeto Nascente 11, promovido pela Universidade de São Paulo em 2001.
A excelente escritora gaúcha Simone Saueressig publicou em 2011, pela editora Clube de Autores, o interessantíssimo romance B9 (anteriormente desenvolvido em forma de folhetim na internet), que conta os dramas de um grupo de jovens tripulantes de uma espaçonave encalhada na órbita de um buraco negro, um trabalho detalhado e denso, avaliado pelo Anuário como o melhor livro de fc naquele ano.
Encerro aqui este artigo, porém sem fechar a lista. Há ainda muitos livros que não li e que merecem ser citados; a cada ano, renovo a esperança por um novo grande trabalho da ficção científica brasileira. E, geralmente, não me frustro.
Cesar Silva

Um comentário:

  1. Aproveito para perguntar: sabem se existe alguma versão digital de «O Doutor Benignus»? Pergunto porque, como responsável pelo Projecto Adamastor, teria bastante interesse em incluir a obra na nossa nova colecção Génesis, dedicada à ficção especulativa escrita em português.

    Em Portugal, em caso de inexistência de digitalizações online, temos a possibilidade de requisitar reproduções (pagas, naturalmente) à Biblioteca Nacional, não sei se no Brasil existe algo semelhante, nem se existirão cópias do original que possibilitem essa reprodução.

    ResponderExcluir