quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

O corvo e suas traduções

O corvo e suas traduções, Ivo Barroso, org. 153 páginas. São Paulo: Editora Leya, 2012.

A poesia é um grande mistério e, a princípio, parece fácil versejar. Afinal, os poetas o fazem com tanta naturalidade que parece ser um dom genético ou uma inspiração vinda diretamente dos deuses. As vezes, essa inspiração realmente emerge de um estado de consciência alterada por alguma patologia psicológica, pelo uso de drogas ou por um delírio criativo que nem o próprio autor sabe explicar. Contudo, também pode ser fruto de planejamento, apoiado em uma exaustiva atividade intelectual.
A crítica tende a desvalorizar o trabalho artístico obtido a partir de métodos científicos, por isso muita gente não gostou quando um dos mais importantes escritores da língua inglesa, o poeta "louco" Edgar Allan Poe (1809-1849) explicou, no ensaio "A filosofia da composição" (1846), o passo a passo que cumpriu para chegar ao resultado absolutamente incomparável de seu poema mais ilustre, "O corvo" ("The raven"), escrito em 1845.
Parece mesmo um tanto anticlimático olhar o poema a partir de seus bastidores, uma vez que o efeito, quando visto sob os holofotes da ribalta, se apresenta como fruto de um espírito enlouquecido. O clima tenebroso, reforçado por rimas guturais e aliterações angustiantes não parece ser resultado de um cálculo matemático. Ou não deveria ser, para o bem de todas as nossas certezas.
São essas algumas das preocupações que o poeta e tradutor mineiro Ivo Barroso explora como organizador da antologia O corvo e suas traduções. Originalmente publicado em 1998, pela Editora Lacerda, o volume retornou em 2012 pela Editora Leya já em sua terceira edição.
Além do poema original em inglês, o livro reúne nada menos que 11 traduções, três para o francês, de Charles Baudelaire (1853), Stéphane Mallarmé (1888) e Didier Lamaison (1998), seguidas das mais importantes versões para a língua portuguesa: Machado de Assis (1883), Emílio de Menezes (1917), Fernando Pessoa (1924), Gondin da Fonseca (1928), Milton Amado (1943), Benedicto Lopes (1956), Alexei Bueno (1980) e Jorge Wanderley (1997). É curioso notar como um mesmo texto original pode ter traduções tão diferentes entre si. Inclui ainda um artigo biográfico sobre Poe e o já citado ensaio, uma aula de criação literária, mas que deixa as questões técnicas da poesia ao gosto do leitor. Barroso detalha algumas delas, bem como as diversas tentativas de seus tradutores em transpor para o português todas as filigranas da versão original. Alguns tiveram mais sucesso que outros, mas todas as traduções têm seu valor como verdadeiros documentos de sua época. E, a cereja no bolo, uma apresentação assinada por Carlos Heitor Cony, de todo simpática a obra do autor americano.
O volume tem 153 páginas e ótima legibilidade, com diagramação perfeita em fonte Berkeley impressa em papel pólen de aspecto muito confortável, de tal forma que as explicações de Poe sobre a construção "matemática" do poema parecem fazer todo o sentido, mesmo que sua vida conturbada reforce a ideia de um talento alienado e irracional.
Tido como ébrio de alma torturada que morreu na indigência, parece lícito vê-lo como um louco em contínuo estado de desespero. Sua ficção perturbadora supõe confirmar os aspectos sombrios de sua vida, mas visto na perspectiva facilitada pela leitura de O corvo e suas traduções, revela uma inteligência sagaz, racional e criativa.
Cesar Silva

Animal'z, Enki Bilal

Animal'z, Enki Bilal. Tradução de Fernando Scheibe. São Paulo: Nemo, 2012.

A ideia do fim do mundo exerce um fascínio irresistível em todos nós. Muito já foi escrito sobre isso, mas o assunto não se esgota: o tema transformou-se num dos mais rentáveis filões da ficção científica, mas a linha que separa a especulação válida da completa tolice é determinada pela preocupação do texto em antecipar as consequências das atitudes que estão sendo tomadas hoje. Nesse aspecto, Animal'z está entre as melhores peças do gênero.
Trata-se de uma sofisticada novela gráfica do quadrinhista sérvio Enki Bilal, publicada originalmente em 2009 pela editora belga Casterman e lançada em 2012 no Brasil pela Nemo, um selo da Editora Autêntica.
A leviana interferência humana sobre a natureza causou um severo desequilíbrio ambiental que ficou conhecido como Golpe de Sangue, e lançou o planeta numa nova era glacial, aniquilando a civilização. Os poucos sobreviventes tentam atingir os Eldorados, regiões quase míticas nas quais se acredita ainda ser possível a vida, mas o caminho para lá é difícil e perigoso. A água potável é rara, os meios de comunicação caíram e não há transporte aéreo e terrestre; as únicas formas de viajar são a pé, no lombo de um animal ou, para os mais afortunados, nos barcos.
Campos minados e radioatividade são perigos remanescentes dos tempos antigos, e as ruínas das cidades escondem canibais famintos a caça de carne fresca. Apesar das duras provas que a natureza impõe aos peregrinos, o verdadeiro perigo para o homem é mesmo o outro: encontros entre sobreviventes invariavelmente resultam em alguma morte, seja por acidente, por intolerância, ou mesmo por instinto de autopreservação.
A história começa a bordo de um luxuoso iate que navega em direção ao Estreito 17, um dos poucos acessos seguros a uma rota que se acredita levar até um dos Eldorados. A bordo, uma jovem sem muita perspectiva de chegar a qualquer lugar que seja: seu marido morreu num acidente improvável, empalado por um filhote de marlim arremessado por uma tempestade, e a moça agora viaja sob os cuidados de um servo eletrônico, um tipo de lagosta robótica, mistura de capitão e mordomo.
Quando um golfinho sobe a bordo e de suas entranhas emerge um homem desconhecido, é que realmente começa o pesadelo. Vamos descobrir que o Golpe de Sangue vai muito além de uma "simples" era do gelo. Os homens desse tempo não são mais como nós. Através de um milagre da tecnologia, eles podem alternar suas forma e natureza entre humano e animal.
Em outro ponto do oceano, um segundo iate também segue em direção ao Estreito 17, levando a bordo ninguém menos que o próprio inventor da tecnologia de hibridização, ele mesmo um híbrido que, assim como o inescrupuloso Doutor Morreau de H. G. Wells, ousou invadir o terreno do sagrado e, com isso, só colaborou para que as coisas ficassem ainda piores.
E, numa terceira linha narrativa, dois cavaleiros quase idênticos, separados entre si por exatos três quilômetros, caminham pela vastidão gelada em busca do local místico em que realizarão seu quarto e talvez definitivo duelo de morte. As narrativas vão se cruzar e determinar o futuro de cada um destes infelizes desesperados do fim do mundo.
A história tem o estilo descosturado que caracteriza as obras de Bilal, com personagens enigmáticos e atormentados que se debatem por algo que sequer sabem ser real. Isso, somado a ausência de uma contextualização sólida, dá a história tons claustrofóbicos estranhamente reforçados pela vastidão gelada do cenário, num diálogo muito próximo ao longa-metragem Quinteto (Quintet), ficção científica dirigida por Robert Altman em 1979.
Os desenhos são um espetáculo à parte, executados com habilidade de um mestre da anatomia, usando apenas lápis pastel sobre papel tonalizado, em cores frias que não variam muito além do cinza azulado, o preto e o branco. A arte é valorizada pelo acabamento gráfico da edição brasileira, que tem 104 páginas em papel cuchê fosco de boa gramatura e encadernação costurada em capa dura.
A Nemo investiu na publicação da obra de Bilal, um dos mais importantes ilustradores surgidos nos anos 1970 nas páginas da revista Metal Hurlant. Em 2012, a editora também trouxe aos leitores brasileiros a festejada Trilogia Nikopol, obra-prima que já tem inclusive uma adaptação para o cinema, Immortel (ad vitam), dirigida em 2004 pelo próprio Bilal.
Apesar das qualidades inegáveis, Animal'z não é uma história em quadrinhos fácil. A narrativa barroca e incômoda, ideias em estado bruto, texto fragmentado e a violência fria, quase gratuita, pode chocar os leitores que não estão acostumados ao estilo do autor, às especulações da ficção científica moderna ou aos modelos pós-modernos da narrativa literária. Ainda assim, é uma experiência muito recomendável.
Cesar Silva

A revolução dos bichos

A revolução dos bichos (Animal farm), George Orwell, adaptado e ilustrado por Odyr a partir da tradução de Heitor Aquino Ferreira. 178 páginas. São Paulo: Editora Companhia das Letras, selo Quadrinhos na Cia., 2018.

Há alguns anos, a adaptação de obras literárias para os quadrinhos tornou-se uma verdadeira febre no mercado editorial  brasileiro. Todos os anos, dezenas de títulos dessa linha chegam às livrarias, de olho na lucrativa possibilidade de entrar para o listão do MEC, ou seja, convencer o governo federal que era importante colocar o título a disposição dos estudantes nas bibliotecas escolares do país.
O governo foi o maior comprador desse tipo de publicação até que a crise econômica, política e moral que assola o país desde meados de 2015 atingiu o mercado editorial como uma bomba atômica: a bolha furou e impérios começaram a desmoronar, tanto das editoras como das livrarias. Toda a produção editorial foi impactada pela recessão econômica e com a forte redução das compras do governo, as adaptações – bem como todos os demais modelos narrativos – rapidamente perderam o espaço do qual gozavam.
Hoje, são raras as iniciativas de adaptações, por isso é de se admirar que a editora Companhia das Letras tenha investido nesta adaptação da famosa novela de George Orwell, A revolução dos bichos, um dos maiores clássicos da literatura universal, um libelo contra o autoritarismo que tanto a direita quanto a esquerda reivindicam para o seu próprio arcabouço.
Orwell, batizado como Eric Arthur Blair (1903-1950), era cidadão britânico nascido na Índia e cedo se encantou com as lutas revolucionárias. Passou sua juventude no submundo europeu entre dificuldades e privações, engajou-se na militância comunista e chegou a lutar na revolução espanhola contra o ditador Francisco Franco. Sua desilusão com os rumos do comunismo na Rússia o tornou um feroz crítico da capacidade humana de degradar tudo o que toca, do qual A revolução dos bichos, publicado em 1945, é o exemplo mais agudo, ao lado de outro de seus clássicos, o denso e aterrorizante 1984, publicado três anos depois.
A história, dividida em dez capítulos, conta como os animais de uma fazenda britânica, insuflados pelas ideias libertárias de um velho porco, empreendem uma revolução contra o proprietário alcoólatra e assumem o controle do lugar. Esses animais, é claro, têm certas faculdades intelectuais e realmente conseguem assumir o trabalho, mas terão de enfrentar duras batalhas contra o proprietário expulso, que tenta retomar a propriedade com a ajuda de homens do vilarejo. De vitória em vitória, sempre com muita dificuldade, os animais se impõem, mas as coisas complicam quando surgem as primeiras divergências internas: os porcos, líderes da revolta, entram em conflito entre si e daí advém o que sempre acontece quando o poder torna-se um fim em si mesmo.
É interessante ver sendo esboçados nesta história os conceitos de duplipensar – que iriam atingir grau máximo em 1984 –, como na máxima: "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros", que talvez seja uma das frases mais famosas da literatura mundial, ao lado das citações shakespearianas "Ser ou não ser, eis a questão" e "Há algo de podre no reino da Dinamarca". A revolução dos bichos, assim como 1984, foi um dos livros mais levados pelos cidadãos brasileiros às urnas na última eleição presidencial, e os motivos são bastante óbvios.
Além do valor indiscutível desta obra, que é leitura obrigatória para estudantes em muitos países do mundo, a edição ganha o reforço luxuoso da narrativa em quadrinhos de Odyr, experiente ilustrador gaúcho de Pelotas que, num belíssimo estilo expressionista em cores brilhantes torna a já poderosa experiência literária ainda mais intensa. O cenário rupestre e a aparente beatitude dos animais da fazenda, dos quais conhecemos bem a mansidão, ganham contornos dramáticos que beiram o insuportável. Talvez se víssemos homens matando-se uns aos outros não percebêssemos o mesmo nível de crueldade. Para quem não leu ainda o livro de Orwell, esta adaptação de Odyr é uma bela introdução, que realmente motiva o leitor a buscar pelo texto original, um efeito raro em outras adaptações.
Se há uma adaptação literária que deveria obrigatoriamente figurar nas bibliotecas escolares, com certeza é esta. Se vai chegar a isso, é um destino que, neste momento, é muito difícil prever. Afinal, discursos contra o autoritarismo não costumam ser muito populares em regimes autoritários. Tomara que eu esteja enganado...
Cesar Silva

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Viagem ao Centro da Terra (Journey to the Center of the Earth, EUA, 1959)

 


“Sabemos menos sobre a Terra em que vivemos, do que sobre estrelas e galáxias do espaço sideral – Prof. Oliver Lindenbrook, sobre o desafio de exploração do nosso próprio planeta

 

O escritor francês Jules Verne é muito conhecido por suas populares histórias de aventura com elementos de ficção científica e fantasia, como por exemplo “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, “20 Mil Léguas Submarinas”, “Da Terra à Lua”, e outras. De sua brilhante mente saiu também a história divertida e escapista “Viagem ao Centro da Terra” (Journey to the Center of the Earth), que recebeu inúmeras versões e adaptações para o cinema. A principal é de 1959, produzida pela “Twentieth Century Fox”, dirigida por Henry Levin e com James Mason, Pat Boone, Arlene Dahl e Diane Baker no elenco.

Com história ambientada no século XIX, o professor escocês Oliver Lindenbrook (James Mason), da universidade de Edimburgo, seguindo seus instintos de cientista em busca de conhecimento após encontrar um objeto manufaturado dentro de um pedaço de lava transformada em rocha, decide organizar uma expedição com destino ao centro da Terra. Viajando ao interior do planeta através de uma abertura localizada num vulcão extinto na Islândia, uma passagem secreta descoberta muitos anos antes por um lendário explorador local chamado Arne Saknussemm, um especialista em vulcões que desapareceu misteriosamente.

A expedição formada por Lindenbrook ainda conta com a companhia do jovem estudante Alec McEwan (Pat Boone), namorado da sobrinha do professor, Jenny Lindenbrook (Diane Baker). E o time é completado pela senhora Carla Goteborg (Arlene Dahl), viúva de outro cientista rival na corrida ao centro da Terra, e o ajudante Hans Belker (Peter Ronson, em seu único trabalho no cinema), um islandês alto e forte, importante como carregador dos acessórios para a exploração. O filme tem muitos elementos de humor, principalmente nas cenas envolvendo Gertrude, a pata de estimação de Hans, que acompanha seu dono na jornada.

Em paralelo, na disputa pelo reconhecimento das novas descobertas no interior do planeta, temos também o cientista Conde Saknussemm (Thayer David), que organiza sua própria expedição secreta, agindo de forma inescrupulosa e desonesta, com conspirações e sabotagens para conseguir a fama e os lucros das descobertas científicas.

Durante o arriscado trajeto por dentro da crosta terrestre, eles enfrentam diversos perigos como deslizamentos, terremotos, inundações e ataques de répteis carnívoros gigantes. Mas, também encontram cenários de imensa beleza natural como cavernas com cristais de quartzo e algas luminescentes nas paredes, minas de areia, florestas com cogumelos gigantes comestíveis, uma praia com oceano subterrâneo, culminando ainda com a descoberta dos escombros da lendária cidade perdida de Atlântida.

“Viagem ao Centro da Terra” tem uma duração longa, com 129 minutos, porém é divertido o tempo todo com uma típica aventura recheada de elementos fantásticos e efeitos especiais grandiosos e convincentes, principalmente pela época da produção, no final doas anos 50 do século passado. Sem a tecnologia de computação gráfica para a criação dos monstros, foram utilizados animais vivos (lagartos, iguanas e camaleões) para simular os dimetrodontes e outros répteis, caminhando sobre cenários em miniatura, com a perspectiva de filmagem por baixo, dando a sensação de serem monstros gigantescos ameaçadores.

O filme foi lançado em DVD por aqui pela “Fox”, com a opção da dublagem clássica da exibição na televisão, na saudosa “Sessão da Tarde” da TV Globo, numa época que eram exibidos filmes divertidos como “A Guerra dos Mundos” (1954), “A Máquina do Tempo” (1960), “O Mundo Perdido” (1960), “Viagem Fantástica” (1966), “Planeta dos Macacos” (1968) e muitos outros similares. Foi uma experiência extremamente nostálgica rever o filme com a dublagem original, com vozes reconhecidas que ficaram eternizadas em nossa imaginação pelos filmes e séries que assistíamos nos anos 70 e 80.      

 

(Juvenatrix – 29/12/20)






sábado, 19 de dezembro de 2020

Babel 17 e Estrela Imperial

Babel 17 (Idem)/Estrela Imperial (Empire Star), Samuel R. Delany. Capa: Frede Tizzot. Tradução: Petê Rissati. 280/120 páginas. São Paulo: Morro Branco Editora, 2019. Lançamentos originais de 1966.


Em meio à bem-vinda onda recente de publicação de FC estrangeira de qualidade no Brasil, Babel 17 é um dos lançamentos mais celebrados. Romance icônico da New Wave dos anos 1960, sempre esteve na lista de desejos dos fãs mais antigos da FCB. Alguns não esperaram e leram em inglês mesmo; outros, como eu, tiveram mais paciência e, finalmente, tem o prazer de ler o livro nesta tradução da Morro Branco Editora.

E é uma edição diferenciada, pois publica também a movimentada novela Estrela Imperial, atendendo um antigo desejo do autor de ver as duas histórias juntas numa só edição. Conforme veremos a seguir, Estrela Imperial se situa dentro do universo ficcional da história mais famosa, embora possa ser lida de maneira independente. Chama a atenção também a qualidade do projeto gráfico das capas e da diagramação, além de uma pequena biografia do autor.

Babel 17 é a obra mais conhecida de Samuel R. Delany, um dos escritores mais talentosos e representativos da FC da segunda metade do século XX. Talvez o fato de não ser oriundo do ambiente mais tradicional dos fãs – à época ainda ligados à Golden Age –, tenha permitido a ele maior liberdade temática e, sobretudo, estética, em se juntar ao grupo de escritores que mudou radicalmente a feição do gênero, com mais experimentação literária e a abordagem mais ousada de temas como diversidade cultural, orientação sexual, drogas e comportamentos sociais alternativos. Tudo isto está presente em Babel 17. Ler esta história, em seu devido contexto, nos ajuda a compreender um pouco mais as mudanças de mentalidade da FC em meio às revoluções culturais da década de 1960.

Em um futuro indefinido a Terra faz parte da Aliança – uma coalizão de povos extraterrenos que colonizou as galáxias mais próximas –, e que está em guerra com Os Invasores, uma misteriosa raça alienígena que nunca mostrou o rosto e o pouco que se sabe, vem de suas naves, armas e tecnologias militares. A Terra sofreu sérios revezes, por meio de embargos e isolamento, provocando crises econômicas, surtos de doenças, fome desesperada, o que levou a práticas de canibalismo. Delany ilustra com acuidade a degradação através da miséria e da precariedade de recursos numa cidade portuária de nosso planeta.

Neste contexto em que, ao que parece, estamos perdendo a guerra, Rydra Wong, a poeta mais popular das cinco galáxias habitadas, recebe de um general a missão de desvendar o que vem a ser um estranho código identificado nas ações dos invasores: Babel 17. Ela é convocada não por ser talentosa e conhecida, mas por ter grande talento no aprendizado rápido de línguas. Fala e compreende dezenas delas. Mas Wong esconde um segredo ao qual nem ela quer admitir. Tem um leve poder telepático, mas que quando se manifesta a faz se sentir mal, com gagueira e náuseas, efeitos também de uma tragédia pessoal na adolescência.

Os militares desconfiam que Babel 17 esteja por trás de uma série de atendados militares que estão atingindo as instalações da Aliança, e o receio maior é que possa ter consequências imprevisíveis. Desvendar este código passa a ser, então, uma tarefa estratégica no conflito. Mas Rydra mostrará que Babel 17 é bem mais do que isso.

Num capítulo particularmente inspirado ela adentra o submundo boêmio da cidade portuária para recrutar uma tripulação para a sua nave, que deve partir para onde os militares acreditam que acontecerá o próximo incidente. Acompanhada de um burocrata da alfândega, ela vê uma luta livre, e conhece tipos muito estranhos, até para os padrões desta época: pessoas com todo tipo de implantes e próteses, alienígenas humanoides, e seres desincorporados. Sim, mortos que são recuperados para a vida, ou por meio de uma conexão mental ou fisicamente mesmo. Ou seja, dentro de determinadas situações, é possível trazer o corpo e/ou a consciência de alguém à vida novamente.

Formada a tripulação Rydra parte com a Rymbaud para o centro da galáxia, usando o salto de Specelli como uma espécie de salto hiperespacial. Delany apenas se utiliza de convenções do gênero, sem se preocupar com detalhes. Pois, se estamos diante de uma space opera militar, na verdade o tema é apenas uma moldura externa para as verdadeiras implicações do desenvolvimento do enredo. Isso porque o grande interesse é no que é Babel 17 e que consequências trará, antes de mais nada, para a própria protagonista.

Após chegar a seu destino onde, espera-se que ocorra o próximo atentado, Rydra descobre que Babel 17 é muito mais que um código militar, é uma linguagem extremamente sofisticada, talvez pertencente à civilização inimiga. Pois o contato com a língua permite uma percepção diferente do pensamento e uma expansão da própria noção de tempo. Tais possibilidades em Rydra Wong permitem que desenvolva sua própria habilidade telepática, num nível jamais imaginado.

A língua Babel 17 problematiza a condição de individualidade, anulando o “eu” e incorporando uma noção mais coletiva, grupal de existência. Pois Rydra compreende isso melhor quando conhece o Carniceiro, um humanoide estranho, de origem desconhecida e que se expressa, justamente, sem uma identificação individualizada. Será mesmo com ele, que a poeta descobrirá todo o potencial de Babel 17, e que consequências poderá trazer para sua própria ideia de individualidade e lealdade à causa terrestre. Neste cenário, a guerra em si é deixada num segundo plano. O que importa é a consequência daqueles que tem contato e aprendem a interagir com a estranha linguagem.

Babel 17 venceu o Prêmio Nebula 1966 – num empate inédito com o também clássico Flores para Algernon (Flowers for Algernon), de Daniel Keys – e foi finalista do Prêmio Hugo 1967. Se insere de maneira inspirada no conjunto restrito de romances de FC que tem na linguagem a grande força do enredo. Como, por exemplo, As Linguagens de Pao (The Languages of Pao, 1958), de Jack Vance; Tempo de Mudança (A Time of Changes, 1971), de Robert Silverberg, e The Embedding (1973), de Ian Watson.

Penso, logo existo”, diz o célebre cogito de René Descartes (1596-1650). Mas para pensar precisamos de uma linguagem. Ela se insere na própria estrutura prática e simbólica do pensamento, como e por que pensamos e compreendemos a vida e o mundo. Em chave de FC, Delany explora a premissa e suas possíveis consequências, ainda que tenha ficado uma sensação de incompletude pois, afinal, a guerra não se resolve e nem o destino de Rydra Wong. Em todo caso, é um romance movimentado, com personagens interessantes e que não perde de vista o entretenimento.


***

A segunda história do livro é Estrela Imperial. Delany gostaria que tivesse sido publicada junto com Babel 17, mas isso só foi acontecer numa edição de 2001. Antes, ela foi publicada de forma independente ou ao lado de outro romance A Balada de Beta 2 (The Ballad of Beta 2) (1965), publicado no Brasil nos anos 1970 pela coleção Fantastic n. 587, da editora Tecnoprint.

Estrela Imperial é uma aventura agitada de space opera infanto-juvenil. Mas, assim como Babel 17, é mais do que parece. O vínculo com o romance se dá pelo fato da história ter sido escrita por um dos namorados de Rydra Wong. Uma história popular comentada pelos personagens de Babel 17.

Uma nave sofre um acidente e cai em Rhys, um satélite de um planeta joviano em órbita de Tau Ceti. Um jovem nativo chamado Cometa Jo encontra os destroços, e dois sobreviventes. Um deles, antes de morrer, pede que ele leve uma mensagem para a Estrela Imperial. O outro sobrevivente é Jóia, um tritoviano que assume uma forma cristalizada. Ao assumir esta forma se torna possível que visualize vários pontos de vista ao mesmo tempo. E a partir desta habilidade Jóia é quem conta a história como narrador onisciente.

Entediado e sem perspectivas num lugar em que a economia se baseia na extração e exportação de um minério que serve como fonte de energia para as naves interestelares, Jo parte em sua jornada, inseguro, sem saber o teor da mensagem a ser entregue, nem a quem, e com que propósito.

A bordo de uma nave como auxiliar de serviços gerais, ele passa a ter como tutora uma mulher, Sam Severina, rica e sábia, que lhe ensinará línguas e cultura geral para torná-lo menos ´simplexo´e mais ´complexo´, até chegar a ser uma pessoa ´multiplexa´. Não fica claro o que significa cada conceito, mas sugere algo próximo de deixar de ser uma pessoa de hábitos mais convencionais para outros mais abertos à diversidade e maturidade. Ao que parece, essencial para que possa cumprir sua missão e viver plenamente pela galáxia. Não deixa de ser uma alusão ao processo de amadurecimento da vida adolescente até a adulta, e uma postura mais plural e tolerante com relação ao outro.

A galáxia vive a tirania da Estrela Imperial. Destrói civilizações que se opõe ao seu poder e escraviza outras. Entre elas estão as LLL, criaturas construtoras, hábeis em elaborar cidades e ecossistemas inteiros. Servem de força de trabalho ao império. E como Jo irá descobrir a mensagem a ser entregue está ligada à libertação das LLL e à sucessão do trono, entre o Príncipe Nactor e sua jovem irmã, escondida numa nave militar do império.

A certa altura, contudo, a perspectiva linear é abandonada, e Jóia revela acontecimentos do antes e do depois do cumprimento da missão de Cometa Jo. O desfecho se conecta ao início, numa estrutura de tempo circular e síncrona. Em certo sentido me pareceu um pouco confuso e mentalmente trabalhoso, pois é solicitado ao leitor que repense várias situações da história, numa perspectiva totalmente nova. É Jóia mesmo que afirma que cabe ao leitor o desafio de desvendar as relações de causa e efeito. Mesmo assim, este é o diferencial da narrativa em relação a soluções mais convencionais. Não se poderia esperar menos de um autor como Samuel R. Delany, e ele estava certo: Babel 17 e Estrela Imperial não se ligam apenas do ponto de vista metalinguístico e ficcional, mas também em seu estilo e nas situações multivariadas de cada trama.

A publicação mais recente de Samuel R. Delany no Brasil antes deste volume foi o conto "Para Sempre, e Gomorra"!, na antologia Contos Fantásticos de Amor e Sexo, organizada por Braulio Tavares (Imã Editora, 2011). Mas já havia sido publicado nas décadas de 1960 e 1970, com cinco livros, todos de bolso. Primeiro com Prisioneiros das Chamas (La Selva, coleção Espacial, n. 2) (1964), A Cidade dos Mil Sóis (Rio Gráfica, coleção Galáxia, n. 19) (1967), Metagaláxia (Editorial Bruguera, coleção FC, n. 29) (1971), As Torres de Toron (Editorial Bruguera, coleção FC, n. 44) (1972), a novela “Linhas de Força” (Antologia de Ficção Científica n. 3, Editora Globo/RS) (1973) e o já citado A Balada de Beta-2. Em língua portuguesa, Babel 17 já havia sido publicado, em Portugal, pelo Círculo de Leitores n. 20, em 1989. Mas estas duas histórias do volume da Morro Branco estavam inéditas no Brasil. Nesse sentido, podem permitir ao leitor brasileiro dos anos 2000 descobrir Delany, um dos autores mais talentosos da FC norte-americana dos anos 1960 até os dias de hoje.

–– Marcello Simão Branco

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Interferências, Connie Willis

Interferências (Crosstalk), Connie Willis, tradução de Viviane Diniz Lopes. 464 páginas. Editora Companhia das Letras, selo Suma, São Paulo, 2018.

Conheci o texto de Connie Willis no periódico Isaac Asimov Magazine (carinhosamente chamada de IAM), publicação tradicional nos EUA que teve 25 edições no Brasil nos anos 1990, pela editora Record. Ao lado de monstros da ficção científica recente, como Charles Sheffield, Kim Stanley Robinson, James Tiptree Jr., Geoffrey Landis, Bruce Sterling, Judit Moffet, George R. R. Martin e Lucius Sheppard, entre outros, Connie Willis era autora frequente e seus textos sempre interessantes e contundentes, como a novela “O último dos Winnenbagos” – publicado na edição número 11 de abril de 1991 e ganhador dos prêmios Hugo e Nebula –, sobre um casal idoso em viagem nas estranhas estradas do uma América futurista. Willis é uma das autoras mais premiadas de sua geração, com nada menos que sete Nebulas e onze Hugos no currículo (e contando).
Connie Willis é, então, uma paixão do passado. Se alguém diz que há uma nova história dela no mercado, meu coração já começa a bater mais forte. Ler Willis hoje é como voltar no tempo e reviver a emoção de ler uma IAM inédita. Velhos tempos.
Interferências, romance de 2016 traduzido no Brasil em 2018 pela Companhia das Letras no selo Suma, é o segundo romance de Connie Willis no Brasil. O anterior foi O livro do juízo final, publicado pela mesma editora em 2017 e resenhado aqui. Fiquei um pouco receoso de que Connie não tivesse acertado a mão em Interferências, pois ouvi opiniões que davam conta de que esta não seria uma história de ficção científica, a especialidade da autora. Mesmo assim, confiava que o talento literário de Willis não me decepcionaria. Eu estava certo e as opiniões, erradas, é claro.
A história acompanha a confusão que se torna a vida de Briddey Flanningan, jovem executiva de uma indústria de celulares que aceita o pedido de Trent, seu noivo e chefe na empresa, para realizarem com um importante cirurgião da moda o implante de um tipo de chip cerebral que permitirá ao casal compartilhar as emoções um do outro e, dessa forma, ter uma relação mais intensa e transparente. Muitos casais felizes atestam as vantagens do procedimento, que é um tipo de prova de amor nesse futuro próximo, sendo uma operação simples e corriqueira, sem riscos à saúde. Mas essa não é a opinião de um dos colegas de Briddey, o engenheiro de desenvolvimento C.B., mais conhecido nos corredores da empresa como “Corcunda de Notre Dame” devido ao seu aspecto desengonçado e anti-social, sempre isolado em sua oficina no subsolo. C.B. usa todos os seus piores argumentos para demover Briddey de sua decisão pelo implante, apela até para um discurso de terror explícito dando exemplos de cirurgias aparentemente simples que levaram os pacientes a óbito, mas a jovem está convencida do amor de Trent e briga com C.B., pois acredita ele está com ciúmes e tentando sabotar seu sonho de conto de fadas.
Depois de uma verdadeira operação de guerra para evitar as fofocas no trabalho e as invasivas mulheres de sua família irlandesa, Briddey e Trent internam-se secretamente no hospital para receber o implante. Tudo vai bem até que a anestesia passa e Briddey descobre que alguma coisa deu muito errado com a cirurgia: em vez de sentir as ondas de amor emanadas por Trent, começa a ouvir em sua mente a voz de C.B., com quem agora têm um vínculo telepático. E isso é muito mais que um inconveniente, pois o que Trent vai pensar quando souber que sua amada tem com o “Corcunda de Notre Dame” uma ligação mais íntima que com ele próprio? Mas isso é só o início dos problemas de Briddey, pois o seu dom telepático pode colocar em perigo não só a si, mas a toda sua família, que é disfuncional mas a qual ela ama sinceramente.
A história tem, em boa parte, o tom de uma comédia romântica, e em alguns momentos iniciais realmente lembra o enredo do longa-metragem Do que as mulheres gostam (What women want, 2000). Mas é só superficialmente, porque Interferências tem um panorama efetivamente de ficção científica, com muitas teorias voando por todos os lados, com direito a conspirações e cientistas malucos que tornam a narrativa uma verdadeira montanha-russa. O tom humorístico é delicioso e raro tanto no trabalho de Willis – que geralmente é dramático – quanto no gênero da ficção científica de modo geral. Uma peça literária valiosa portanto.
E as epígrafes que abrem cada capítulo são um charme à parte, transcrevendo frases inspiradoras de filmes, seriados de tv e livros como Graça infinita, Artemis Fowl, Alice no País das Maravilhas, O jardim secreto e outros, que fazem o delírio dos fãs de citações.
Por tudo isso, Interferências é um livro que pode ser lido com prazer tanto pelo leitor veterano, fã de ficção científica, como também pelo leitor não especializado no gênero, incluindo aquele que acredita não gostar dele. Porque, no fim das contas, Connie conseguiu com louvor fazer aquilo que muitos perseguem sem sucesso: escreveu uma ficção científica para quem não gosta de ficção científica. E isso é um feito e tanto.
Cesar Silva

A assombração da Casa da Colina, Shirley Jackson

A assombração da Casa da Colina (The haunting of Hill House), Shirley Jackson, Tradução de Débora Landsberg. 240 páginas. Editora Companhia das Letras, selo Suma, São Paulo, 2018.

Muitas vezes, conhecemos um clássico não pela obra original, mas por suas inúmeras adaptações. Mas é claro que as adaptações, por não serem obrigatoriamente idênticas ao original, tomam liberdades, mudam contornos e até alteram completamente seu conteúdo. Na maior parte das vezes, as adaptações não fazem justiça ao original e as exceções são raras.
Não foi diferente com relação a este romance de Shirley Jackson (1916-1965), escritora norte-americana que viveu de maneira reclusa e morreu jovem, aos 48 anos, tendo escrito uma porção de contos e uns poucos livros, geralmente associados ao gênero do horror, dentre os quais seu quinto romance, A assombração da Casa da Colina (1959), é o mais destacado. Apesar disso, sua obra é muito respeitada, sendo frequentemente creditada como influência por autores como Richard Matheson (1926-2013), Stephen King e Neil Gaiman. Contudo, foi pouco publicada no Brasil; além deste, somente está disponível o romance Sempre vivemos no castelo (We have always lived in the castle, 1962), publicado pela editora Companhia da Letras em 2017. E isso é bastante sintomático. Jackson trabalha temas incômodos e delicados, entre os quais a condição da mulher na sociedade. Finalmente, a Companhia das Letras decidiu traduzir e publicar esses dois títulos em edições luxuosas de capas duras, a altura de seu significado.
Mas o teor feminista é apenas um dos muitos atributos de sua arte. Jackson é senhora de um estilo limpo e elegante, de descrições vívidas, personagens bem construídos e uma sensibilidade emocional que impacta o leitor.
A história é conhecida dos brasileiros nas adaptações cinematográficas Desafio do além (1963, Robert Wise) e A casa amaldiçoada (1999, Jan de Bont). O filme de Wise tem uma proposta mais cerebral, próxima à ficção científica e com um desfecho que tudo explica de forma mais ou menos satisfatória. O de Bont é um festival de efeitos especiais em que a história é o que menos importa. Nenhuma delas prepara o leitor para a experiência emocional que é mergulhar nas páginas da narrativa literária. A mais recente adaptação do romance é uma série exclusiva do servidor de streaming Netflix, que dizem ser bastante fiel ao romance, mas isso é algo que ainda preciso conferir.
Acompanhamos a história pelos olhos da jovem desempregada Eleanor, que se inscreve para um projeto de pesquisa acadêmica de um tal Montague, doutor em filosofia que pretende estudar uma casa incomum próxima a Hillsdale. Ela vê nisso a oportunidade de encontrar um rumo para sua vida, depois da longa doença e morte da mãe da qual cuidava, o que comprometeu as chances de uma carreira mais precoce. Ao ser selecionada, Eleanor empreende uma corajosa viagem dirigindo seu próprio automóvel, chega ao vilarejo em que se encontra a mansão e, numa breve parada para um café, percebe de imediato a animosidade dos habitantes locais com relação ao lugar. Quando avista a construção pela primeira vez, fica angustiada com a aparência externa da casa. E fica ainda mais alarmada com a recepção feroz que recebe dos empregados do lugar, um casal de zeladores muito rudes e intimidadores. Mas, ao adentrar a mansão, fica impressionada com o luxo das dependências, que beira ao extravagante. Apesar de tudo, a casa é aconchegante e confortável, mas de uma arquitetura que confunde os sentidos.
Suas preocupações reduzem-se com a chegada dos outros membros da equipe de pesquisas: Theodora, garota segura e expansiva com a qual Eleanor se identifica de imediato; Luke, jovem herdeiro da mansão que participa do grupo por insistência dos proprietários, e o próprio dr. Montague, que parece muito mais interessado em curtir o luxo da residência do que realmente realizar uma pesquisa séria.
Depois de alguns dias, período em que os jovens passam a se conhecer e dominar a confusa estrutura da casa, que tem peculiaridades como portas que se fecham sozinhas, armários que se auto-organizam e áreas em que a temperatura é radicalmente contrastante com o ambiente ao redor. Mas o mais assustador são os acontecimentos noturnos, que parecem ameaçar a vida dos hóspedes, mas que não deixam quaisquer rastros: a casa sempre se recompõe depois de cada evento, deixando em todos a impressão de que tudo não passou de alucinação.
As coisas complicam quando chegam dois novos hóspedes: a sra. Montague e seu motorista. Agora percebemos por que o dr. Montague não parecia tão interessado na pesquisa: a verdadeira pesquisadora é a sua autoritária esposa, uma mulher de personalidade forte e dominadora, que acredita piamente em espíritos desencarnados e quer fazer contato com eles para poder “libertá-los” de sua sina. O trabalho, enfim, começa. Mas a casa tem outros planos e Eleanor parece fazer parte deles. E quando uma casa escolhe alguém, é muito difícil negociar com ela.
A assombração da Casa da Colina é uma história apavorante, mas está longe de ser uma história de horror. Não há monstros, nem assassinos psicopatas. Não há perigos maiores do que aqueles que enfrentamos em qualquer outro lugar. O grande terror é mesmo a tensão psicológica de estar vinculado a uma situação da qual sabemos que precisamos nos afastar mas que, ao mesmo tempo, não queremos, por razões muitas vezes justificadas, mas que mesmo assim nos fazem mal. O destino da equipe de pesquisadores importa menos que o de Eleanor. A história que se conta aqui é a dela, e só a dela.
O final é surpreendente, sem ser um “final surpresa”, por contraditório que isso possa parecer. Talvez até escorra uma lágrima, mas não choramos por Eleanor. Choramos por nós mesmos, que ficamos na Casa da Colina.
Cesar Silva

domingo, 29 de novembro de 2020

Memória da Água

Memória da Água (Teemestarin Kirja – original finlandês; Memory of Water – da tradução em inglês para a edição brasileira), Emmi Itäranta. Tradução de Liliana Negrello e Christian Schwartz. Capa de Túlio Cerquize. 286 páginas. Rio de Janeiro: Galera/Record, 2015. Lançamento original de 2012.

 

Em um futuro não definido, mas aparentemente não muito distante, o aquecimento global provocou o colapso da civilização como a conhecemos. O aumento da temperatura derreteu os polos, os oceanos e mares invadiram as superfícies, mudando toda a geografia do planeta.

A água se tornou o bem mais valioso e disputado. Por pessoas, comunidades e países. Restaram pouquíssimas fontes de água potável e a maior parte do que é consumido ocorre por meio de enormes usinas de dessalinização da água dos oceanos.

Em consequência deste novo contexto guerras são travadas há décadas em busca de fontes de energia – houve, inclusive, uma “guerra do petróleo” –, e a China invadiu e governa o que restou da Europa. O território da Escandinávia passou a ser chamado de Novo Qian, vivendo sob uma rígida ditadura militar.

Mas a esta conjuntura política não é dada grande profundidade. Mas sim a uma família peculiar que preserva a arte milenar do ritual do chá. Nela, o velho mestre ensina seus saberes à sua única filha, Noria, a quem se espera levar adiante a tradição da família. É uma arte quase perdida e valorizada por poucos, especialmente os chineses e seus descendentes. Para preparar o ritual e servir o melhor chá, os mestres retiram a água de nascentes naturais. Assim era, e como Noria descobrirá, seu pai detém o segredo de uma nascente oculta.

Após a morte dele, Noria se torna a nova mestre do chá, mas não será fácil manter as aparências e o segredo, ainda mais com a chegada de um novo comandante ao local, que passa a investigar sistematicamente todas as famílias – punindo algumas com a sombria inscrição de um círculo azul na porta de suas casas. Sinal para todos de que cometeram o crime de conseguir água de forma ilegal, e serão punidos com a morte.

Memória da Água é um romance inusitado e interessante. Nos apresenta a cultura do cultivo e preparo do chá, de forma detalhada e respeitosa. Soube mesmo de leitores que se interessaram pelo livro por esse aspecto, mais do que ao contexto distópico em si. O vínculo com a FC ocorre pela história se passar no futuro e extrapolar de forma dramática problemas já graves que vivemos hoje, com respeito às alterações climáticas no planeta.

Mas a força dramática da narrativa se dá no plano mais pessoal em meio a este contexto desfavorável. Faz todo o sentido, portanto, a conexão entre a excelência do chá e um mundo carente de água. E, afinal, é colocado para a própria Noria: até que ponto é ético ter água em abundância para manter o seu negócio enquanto a população passa necessidade?

A autora é muito hábil e sensível também na analogia que traça entre a água como elemento da natureza que nos traz a vida e, quando se esvai, nos leva à morte. Assim, a arte do preparo do chá está morrendo, a civilização também e, finalmente, cada uma das pessoas, pela ausência dramática da água no mundo. Neste sentido, o título faz a sutil alusão à memória da água enquanto o ritual do chá continuar existindo. Assim, Noria toma a consciência do legado do seu pai, de manter a nascente em segredo como forma de preservar não o chá em si, mas o vínculo com o que o mundo foi um dia e, eventualmente, possa vir a ser de novo. Mas, como disse, ela enfrentará problemas concretos que a levarão a ser pressionada a rever tal simbologia.

Noria é uma garota de dezessete anos e, a despeito da grande responsabilidade que lhe foi transferida pelo pai, também sonha em escapar desta realidade, e procurar água potável com sua amiga de infância Sanja. Principalmente depois delas descobrirem algumas fitas VHS num lixão abandonado. Depois de descobrirem o que eram as fitas, conseguem reproduzir ao menos o áudio das gravações. E, chocadas, ficam sabendo que décadas antes, um grupo de cientistas dissidentes descobriu uma região à leste da Finlândia, chamada de Terras Perdidas, onde haveria água potável em boa quantidade. O que elas deduzem é que, a maior parte da água é consumida pela elite dirigente, e através da censura, repressão e controle do acesso à água, a população vive na ignorância sobre a situação concreta.

Elas, então, organizam uma expedição, mas acabam surpreendidas com o cerco dos militares e os problemas das pessoas do vilarejo, cada mais sedentas de água e comida. Noria e Sanja, assim, tem não só seus objetivos e descobertas alterados, mas seus próprios destinos.

Este é o primeiro romance da escritora finlandesa Emmi Itäranta, jornalista que se tornou crítica de teatro, e daí passou para a literatura. Traduzido para vários idiomas, na versão em inglês foi indicado a dois dos principais prêmios da FC: o Arthur C. Clarke Award (para o melhor romance publicado no Reino Unido no ano) e o norte-americano Philip K. Dick Award (para o melhor romance publicado nos EUA no ano em formato popular). Além disso, recebeu “menção honrosa” no James Tiptree Jr Award, conferido ao melhor romance de FC escrito por uma mulher no ano em língua inglesa. Ela escreveu um segundo romance em 2015, também num futuro indefinido e distópico, e com a mesma boa recepção de crítica e público, em especial na Finlândia. Foi traduzido para os EUA e Canadá como The Weaver e no Reino Unido como The City of Woven Streets.

Além da qualidade de uma prosa limpa e fluente, e da originalidade da história, chama a atenção a força da voz feminina neste cenário multicultural em que se transformou a FC no século XXI. Cada vez mais obras de culturas espalhadas pelo mundo tem se tornado relevantes, diversificando e enriquecendo o próprio gênero. E a perspectiva feminina é uma das que mais têm ganhado relevo neste contexto.

Pois em Memória da Água a condição feminina ilustra tanto a condição sensível à preservação dos saberes do chá, quanto a do seu próprio gênero: mais oprimido e secundário num mundo regido por regras estritamente masculinas. Ainda mais se governado por uma cultura política e filosófica tradicionalmente machista e de desvalorização da condição da mulher.

O romance, portanto, pode ser interpretado em diferentes níveis: o das consequências desastrosas de um mundo em guerra, da disputa desesperada por um bem que hoje ainda dispomos em quantidade razoável – a água –, e de como um de seus simbolismos – o cultivo e preparo ritualístico do chá –  pode nos conduzir entre uma linha que vai da fartura à escassez, da vida à morte, até, finalmente, no plano de visão destes temas, a partir da perspectiva mais sensível da mulher. E, talvez por isso, o primeiro romance da autora priorize o intimismo em meio ao contexto macro (masculino), que, via de regra, se apresenta como organizador e, neste caso, extremamente opressor. Um belo livro de uma autora que merece ser acompanhada.

– Marcello Simão Branco

 

sábado, 7 de novembro de 2020

Tudo é Eventual

 

Tudo é Eventual (Everything is Eventual), Stephen King. Tradução de Myriam Campello. 467 páginas. Rio de Janeiro: Editora Objetiva/Suma de Letras, 2003. Lançamento original em 2002.



Apesar de ter se notabilizado principalmente por seus volumosos romances, King nunca abandonou a forma original com a qual iniciou sua carreira: o conto. Assim é que, no prefácio “Em Busca da Arte (Quase) Perdida”, ele faz uma reflexão sobre esta forma narrativa. Com a exceção do romance, outras manifestações como o conto, a poesia, o modelo teatral shakespeareano e as peças de rádio, estariam todas em processo de extinção. O momento seria de transição para outras formas narrativas, mais visuais e mesmo virtuais, como ele mesmo experimentou com histórias publicadas na internet há alguns anos, como The Plant – um romance publicado em e-book, de 2000 – e “Andando na Bala” – esta última presente neste livro.

Para King o conto ainda não é uma arte perdida, mas com o encolhimento do mercado editorial para esta forma narrativa, sua sobrevivência estaria ameaçada. Revistas populares voltadas à forma curta e a baixa vendagem de coletâneas e antologias, justificariam, do ponto de vista econômico, a presença cada vez mais esparsa do conto na produção de escritores importantes.

O irônico é que por gerações a principal porta de entrada de escritores iniciantes para a carreira literária foi o conto. O próprio King é um destes casos. E retomar a forma curta e até usar de seu prestígio para publicar é uma maneira de manter a arte viva. Além de, antes de mais nada, mantê-la viva no seu próprio ofício. Pois para o autor de O Cemitério (1983):

Se alguém quer escrever contos, não basta pensar em escrevê-los. Não é como andar de bicicleta. É mais como exercitar-se numa academia: a opção é usar o corpo ou perdê-lo. (...) [Pois] continuei a escrever contos ao longo dos anos em parte porque as ideias ainda me ocorrem de tempos em tempos e, em parte, porque é o modo de confirmar, ao menos para mim mesmo, que não me ‘vendi’, pouco importa o que pensem os críticos menos amáveis”.

Temos, então, dois motivos para o exercício do conto, por parte de Stephen King. 1) O prazer de escrevê-los e, desta forma, manter viva sua própria capacidade de executá-los, e 2) Uma espécie de intenção militante, em busca de um ideal para que esta forma narrativa continue viva.

E o que se pode dizer após a leitura desta enorme coletânea, é que King não perdeu o viço e continua a produzir algumas histórias absolutamente arrebatadoras, tanto pela história em si, como por ser criada dentro da forma específica do conto, que procura combinar de forma virtuosa, drama e síntese.

O livro contém 14 histórias, todas com algum elemento de horror, seja mais explícito ou de cunho psicológico. Embora King tenha escrito um prefácio contundente em defesa do exercício e publicação do conto e um livro com histórias curtas, se formos rigorosos, há muitos poucos contos no livro. A maioria das histórias são noveletas, um conto longo demais para a forma curta e curto demais para uma novela. Talvez, no fim, King tenha mesmo perdido um pouco da arte de sintetizar ideias ou ações dramáticas em uma forma eminentemente curta. Em todo caso, o que vale mesmo é o conteúdo, o que podemos tirar de prazer da leitura das histórias, independentemente de sua classificação formal ou editorial.

A história de abertura é “Sala de Autópsia 4”, no qual um homem dado como morto está prestes a ser autopsiado, após sofrer uma picada de uma cobra venenosa. Por mais da metade do texto, acompanhamos os preparativos para uma operação post mortem. Tanto do ponto de vista dos procedimentos médicos, como do próprio comportamento dos profissionais. Isso soa de uma forma muito crua, realista. Chega a incomodar, mas a intenção é provocar este efeito mesmo. Só que as coisas não são exatamente como pareciam no início, dando uma completa reviravolta no desenrolar da trama.1

Se a primeira história é boa, a segunda é das melhores do livro. “O Homem de Terno Preto” é narrado por um velho, que conta um fato que lhe ocorreu na infância e jamais o abandonou. É uma história simples e muito pessoal, que poderia perfeitamente ter acontecido com qualquer pessoa. A não ser pelo elemento sobrenatural inserido com maestria pelo autor e que provoca arrepio e angústia com o desfecho da história. King disse que o conto é uma espécie de homenagem a um semelhante, de Nathaniel Hawtorne. Neste e no de King, para sermos claros, estamos falando da presença súbita e terrível do Diabo. Que surge, se mostra simpático e depois, de forma dissimulada, procura cercar e destruir sua vítima. No fundo, o que marca esta noveleta é a discussão subjacente de alguns daqueles medos que temos na infância. Crescemos, viramos adultos. Mas no fundo de nossa intimidade, estes mesmos medos não nos abandonaram. King cria uma atmosfera de terror no velho-menino absolutamente convincente e, por isso mesmo, apavorante.

A seguir, somos apresentados a um representante comercial em profunda depressão. Está em um motel de beira de estrada no interior dos Estados Unidos, prestes a cometer suicídio. “Tudo o que Você Ama lhe será Arrebatado”, é uma história daquelas cotidianas, que acontecem todos os dias e depois lemos nas páginas da seção cotidiana do jornal. Alfie era um cara relativamente bem-sucedido, casado e com filhos. Mas chegando à meia-idade, sem perspectiva de mudança em sua vida. Intui-se que este quadro seja o motivador da ação, mas o mais curioso é que não ficamos sabendo exatamente a razão de Alfie querer dar cabo de sua própria vida. E o final acentua ainda mais a dúvida, pois King deixa em aberto o destino do infortunado personagem.

O conto seguinte é “A Morte de Jack Hamilton”, e King escreve um segundo conto no estilo de homenagem. Aqui não a um autor em especial, mas às histórias policiais pulps dos anos 1930, recheadas de foras-da-lei muito carismáticos e bem mais interessantes que os comportados homens-da-lei. Este conto mostra a fuga da gangue de Jack Hamilton, num texto que consegue ir um pouco além da mera homenagem, devido as qualidades de King, principalmente com relação à construção de personagens. Algo que ele sabe melhor do que a maioria dos escritores.

Já a “Câmara da Morte” é uma história curiosa: uma narrativa política situada em algum lugar do Caribe. Um opositor é preso e torturado em um país que vive em uma ditadura. Isso não é familiar? Na maior parte do conto somos expostos ao interrogatório e às torturas em si. Ou seja: não é propriamente agradável embora, infelizmente, bastante familiar a qualquer brasileiro acima dos 50 anos. Mas, o texto apela para uma solução absolutamente inverossímil para o destino do prisioneiro. Mas King assume isso, quando diz no comentário que fez ao final do conto que,

Em tais histórias, o interrogado geralmente termina cuspindo tudo e depois sendo morto (ou) enlouquecendo). Quis escrever uma com final feliz, por mais irreal que fosse. E aí está.”

Pois é. Mas não convence. Se quisesse mesmo uma solução deste tipo – que é totalmente legítima –, deveria se esforçar mais, criar situações mais convincentes e não forçadas só para chegar ao seu desejo intencional.

A história seguinte volta a elevar muito a qualidade do livro. Refiro-me a “As Irmãzinhas de Eluria”. É uma espécie de variação sobre um tema, no caso o universo ficcional de A Torre Negra. Isso porque esta história foi escrita fora cronologia da série, por encomenda a uma antologia de fantasia. King resolveu, então, explorar um aspecto particular da série, no caso uma passagem da vida de um dos protagonistas, Roland. E o melhor é que não é necessário um conhecimento prévio da série. Esta história vale por si mesma. É das coisas de terror mais intensas que acompanhei nos últimos anos. Em um mundo desolado, o viajante solitário Roland chega a uma cidade deserta, abandonada, fantasma. E é surpreendido por uns mutantes estranhos, esverdeados. Ele é capturado e levado até um hospital onde é cuidado por enfermeiras. Até aí, nada de muito aterrador. Mas o fato é que os doentes lá hospedados somem misteriosamente, um a um. E Roland percebe do que se trata o lugar, e que na verdade estas enfermeiras são malignas, cruéis, enfermeiras da morte.

Morte também está presente na próxima história, a que dá título ao livro, “Tudo é Eventual”. Um rapaz descobre, meio por acaso, que tem poderes especiais. Tem a capacidade de influir na vida alheia, seja de uma pessoa ou de um animal. Basta que mentalize ou realize alguma tarefa indireta para que seu desejo se cumpra por completo ou em parte. Também de forma misteriosa ele, sem saber ao certo, é recrutado por uma organização secreta. Reúne ‘talentos’ com maneiras incomuns de influir na vida alheia, em benefício de um grupo oculto que os sustenta financeiramente.

Esta é uma narrativa com uma premissa interessante, sombria, que me provocou duas sensações: 1) um desconforto pelo personagem principal, que não me empolgou, e 2) fiquei com a impressão que a história terminou de forma precipitada, pois as situações ficaram abertas, não há uma conclusão clara. E o tal ‘tudo é eventual’, passa aqui como uma ironia. Que trágicas ‘ironias’, ou eventualidades marcam coisas ruins, estúpidas, inexplicáveis na vida de pessoas (ou animais) – geralmente aquelas que consideramos como boas. Enfim, King nos coloca diante de uma explicação nada eventual sobre a razão de coisas absurdas e más acontecerem o tempo todo. Há uma explicação mas, curiosamente, procura desconstruir exatamente a noção de que ‘tudo é eventual’, como se houvesse um conserto oculto, maligno, conspiratório permeando a vida de cada um. Sinistro, sim, mas sem grande sustentação racional, mesmo para os parâmetros obviamente fantasiosos que a história postula. E de qualquer forma, a sucessão de que tudo é eventual, sem qualquer conotação oculta ou fantástica, é a mais desconcertante e perturbadora. A que provavelmente rege o universo em que vivemos.

Na próxima história somos confrontados novamente sobre porque algumas coisas horríveis acontecem. Em “A Teoria de L.T. sobre Animais de Estimação”, uma mulher abandona o marido e leva junto o cachorro de estimação. O cara passa boa parte da história remoendo a razão do abandono e sai à sua procura. É uma noveleta de emoções e surpresas, pois ela começa em um tom cômico e vai, gradativamente, mudando em direção ao terror e à tristeza.

O relato seguinte é batido no horror como um todo, e recorrente também na carreira de King. O tema do quadro que muda, a cada nova olhada de um observador. Neste “O Vírus da Estrada vai para o Norte”, contudo, o autor está inspirado e somos levados a acompanhar a história de um escritor que ao voltar de uma conferência literária, depara com um quadro de aspecto estranho, em uma daquelas liquidações, família vende tudo. Aqui nota-se outra recorrência de King: o terror que ronda a atividade de um escritor, já visto em vários contos e romances como, por exemplo, Angústia (1987), A Metade Negra (1989) e “Janela Secreta, Secreto Jardim” (1989). A sucessão de mudanças no quadro é muito bem narrada. King imprime um ritmo forte e convincente. Espera-se que, no fim das contas, tudo seja alguma paranoia ou algum truque. Mas só posso adiantar que a intensidade da solução assusta pelo seu vigor.

O que já não é o caso de “Almoço no Café Gotham”. Um casal em litígio marca um almoço num restaurante, no qual acertam, na presença dos seus respectivos advogados, um processo de separação amigável, depois do abandono da mulher. Aqui temos a segunda abordagem de King neste livro sobre este assunto. Contudo, o que surpreende é a presença de um mâitre psicótico, que começa a cortar e matar sem piedade com uma grande faca – sem motivo aparente – os fregueses do local. E o casal é surpreendido e tem de procurar se defender para poder sobreviver à sangrenta loucura estabelecida.

em “Você só Pode Dizer o Nome daquela Sensação em Francês”, estamos falando no deja vù. Quando ao vivenciarmos um fato, temos a nítida impressão de já o termos vivenciado, mas sem saber como nem porquê. O conto é ainda narrado de uma maneira estranha, ao transmitir a sensação de que os acontecimentos não são claramente percebidos, não parecem reais. Mas eles se insinuam e, mais que isso, se repetem, condenando o casal da história a fazer a mesma coisa de forma repetida. Como se presos a um inferno, como define o próprio King, em seus comentários sobre o conto. Um dos grandes momentos do livro.

Assim como a história seguinte, o aterrador “1.408”. Segundo King, a sua versão de uma ‘sala fantasma em um hotel’. Um escritor quer passar uma noite em um hotel de Nova York que está fechado há décadas por ter fama de mal assombrado. Pessoas teriam sido queimadas, outras enlouquecido, e cometido suicídio e assassinato no tal quarto 1.408. O gerente do hotel tenta de todas as formas possíveis, dissuadir o escritor a levar à frente seu intento. Mas ele é irredutível e terá a sua noite no 1.408. É uma história excelente de cômodo assombrado. Lembra o clássico O Iluminado (1977), na relação do hotel com o escritor Jack Torrance. E é bom lembrar que aqui King retoma a questão sob o prisma dos escritores. Talvez para extravasar seus próprios sentimentos ao lidar com temas tão incomuns e perturbadores, como o desta história puramente de horror.2

Andando na Bala” vem a seguir. A badalada história que teve sucesso comercial ao ser publicada na internet, e fez King virar capa da Time. No prefácio ele se disse desapontado, porque tanto a revista como a maioria das pessoas só lhe perguntavam o quanto estava ganhando com a história. Não lhe contavam o que tinham achado da história. Talvez porque não a tenham lido. Ou porque tenham lido e não gostado. Ou então porque a história, embora muito boa, toque em um tema muito sensível, ao qual as pessoas não gostam de falar: a morte de entes queridos. Fico com a primeira hipótese. Mas “Andando na Bala” é uma história de emoções muito fortes e humanas. Se insere no terreno de sua autobiografia, conforme ele mesmo anuncia no pequeno prefácio que escreve à história. Temos aqui King em seu melhor momento, equilibrando de forma virtuosa, os mistérios da realidade e da imaginação. Ao final deste relato tocante, dá para entender porque King ficou tão contrariado por só elogiarem o êxito financeiro da história. Ele estava contando uma história dele, muito íntima. Quando nos expomos desta maneira, queremos, de uma forma ou de outra, alguma espécie de solidariedade.

Depois destas três histórias de alto nível, o livro termina de forma meio sem graça, com um conto que poderia ter sido limado. Refiro-me à “A Moeda da Sorte”. Uma variação sobre a tentação perigosa e gananciosa do jogo. Nada mais do que uma fantasia simpática – porque, afinal, a intenção da mãe era louvável, pois tinha um filho doente –, mas com um desfecho um tanto moralista, o que acaba por destoar do ambiente geral do livro.

Reza a sabedoria convencional que numa coletânea – ou antologia – temos histórias boas e ruins. Não é possível agradar a todos. O que dizer deste Tudo é Eventual? Tudo bem, há histórias menos boas sim, mas temos algumas excepcionais, o que perfaz um conjunto altamente positivo e encorajador. Stephen King mostra que, embora esteja escrevendo romances cada vez mais volumosos, não perdeu o jeito para textos mais curtos – embora não muito curtos, como já frisado –, uma preocupação que ele mesmo demonstrava em seu prefácio. Pois como ele afirma em certa passagem do livro, ao comentar uma das histórias, os “contos são como artefatos: não coisas feitas, criadas por nós (e pelas quais possamos receber créditos), mas objetos preexistentes que desencavamos”. Esta declaração até pode ser verdadeira do ponto de vista dele. E para, alguns de seus pares escritores. Mas o fato é que nem todos tem essa capacidade ‘preexistente’, um tipo de, digamos, instinto natural. Não só para conceber uma ideia mas, principalmente, torná-la interessante, fazê-la ganhar vida como uma história bem contada. Talento que King desenvolve como poucos.

Marcello Simão Branco

1 A noveleta me lembrou do conto “G.C.P.A.” (1920), de Gastão Cruls, em que o clima de uma sala de autópsia chega a ser nauseante. Foi publicado na antologia O Conto Trágico, organizada por Jeronymo Monteiro para a Civilização Brasileira, em 1960.

2Ganhou uma boa versão para o cinema em 2007, com o mesmo título.