Tudo
é Eventual
(Everything is Eventual), Stephen King. Tradução de Myriam
Campello. 467 páginas. Rio de Janeiro: Editora Objetiva/Suma de Letras, 2003.
Lançamento original em 2002.
Apesar
de ter se notabilizado principalmente por seus volumosos romances,
King nunca abandonou a forma original com a qual iniciou sua
carreira: o conto. Assim é que, no prefácio “Em Busca da Arte
(Quase) Perdida”, ele faz uma reflexão sobre esta forma narrativa.
Com a exceção do romance, outras manifestações como o conto, a
poesia, o modelo teatral shakespeareano e as peças de rádio,
estariam todas em processo de extinção. O momento seria de
transição para outras formas narrativas, mais visuais e mesmo
virtuais, como ele mesmo experimentou com histórias publicadas na
internet há alguns anos, como The
Plant – um romance
publicado em e-book,
de 2000 – e “Andando na Bala” – esta última presente neste
livro.
Para
King o conto ainda não é uma arte perdida, mas com o encolhimento
do mercado editorial para esta forma narrativa, sua sobrevivência
estaria ameaçada. Revistas populares voltadas à forma curta e a
baixa vendagem de coletâneas e antologias, justificariam, do ponto
de vista econômico, a presença cada vez mais esparsa do conto na
produção de escritores importantes.
O
irônico é que por gerações a principal porta de entrada de
escritores iniciantes para a carreira literária foi o conto. O
próprio King é um destes casos. E retomar a forma curta e até usar
de seu prestígio para publicar é uma maneira de manter a arte viva.
Além de, antes de mais nada, mantê-la viva no seu próprio ofício.
Pois para o autor de O
Cemitério (1983):
“Se
alguém quer escrever contos, não basta pensar em escrevê-los. Não
é como andar de bicicleta. É mais como exercitar-se numa academia:
a opção é usar o corpo ou perdê-lo. (...) [Pois] continuei a
escrever contos ao longo dos anos em parte porque as ideias ainda me
ocorrem de tempos em tempos e, em parte, porque é o modo de
confirmar, ao menos para mim mesmo, que não me ‘vendi’, pouco
importa o que pensem os críticos menos amáveis”.
Temos,
então, dois motivos para o exercício do conto, por parte de Stephen
King. 1) O prazer de escrevê-los e, desta forma, manter viva sua
própria capacidade de executá-los, e 2) Uma espécie de intenção
militante, em busca de um ideal para que esta forma narrativa
continue viva.
E
o que se pode dizer após a leitura desta enorme
coletânea, é que King não perdeu o viço e continua a produzir
algumas histórias absolutamente arrebatadoras, tanto pela história
em si, como por ser criada dentro da forma específica do conto, que
procura combinar de forma virtuosa, drama e síntese.
O
livro contém 14 histórias, todas com algum elemento de horror, seja
mais explícito ou de cunho psicológico. Embora King tenha escrito
um prefácio contundente em defesa do exercício e publicação do
conto e um livro com histórias curtas, se formos rigorosos, há
muitos poucos contos no livro. A maioria das histórias são
noveletas, um conto longo demais para a forma curta e curto demais
para uma novela. Talvez, no fim, King tenha mesmo perdido um pouco da
arte de sintetizar ideias ou ações dramáticas em uma forma
eminentemente curta. Em todo caso, o que vale mesmo é o conteúdo, o
que podemos tirar de prazer da leitura das histórias,
independentemente de sua classificação formal ou editorial.
A
história de abertura é “Sala de Autópsia 4”, no qual um homem
dado como morto está prestes a ser autopsiado, após sofrer uma
picada de uma cobra venenosa. Por mais da metade do texto,
acompanhamos os preparativos para uma operação post
mortem.
Tanto do ponto de vista dos procedimentos médicos, como do próprio
comportamento dos profissionais. Isso soa de uma forma muito crua,
realista. Chega a incomodar, mas a intenção é provocar este efeito
mesmo. Só que as coisas não são exatamente como pareciam no
início, dando uma completa reviravolta no desenrolar da trama.
Se
a primeira história é boa, a segunda é das melhores do livro. “O
Homem de Terno Preto” é narrado por um velho, que conta um fato
que lhe ocorreu na infância e jamais o abandonou. É uma história
simples e muito pessoal, que poderia perfeitamente ter acontecido com
qualquer pessoa. A não ser pelo elemento sobrenatural inserido com
maestria pelo autor e que provoca arrepio e angústia com o desfecho
da história. King disse que o conto é uma espécie de homenagem a
um semelhante, de Nathaniel Hawtorne. Neste e no de King, para sermos
claros, estamos falando da presença súbita e terrível do Diabo.
Que surge, se mostra simpático e depois, de forma dissimulada,
procura cercar e destruir sua vítima. No fundo, o que marca esta
noveleta é a discussão subjacente de alguns daqueles medos que
temos na infância. Crescemos, viramos adultos. Mas no fundo de nossa
intimidade, estes mesmos medos não nos abandonaram. King cria uma
atmosfera de terror no velho-menino absolutamente convincente e, por
isso mesmo, apavorante.
A
seguir, somos apresentados a um representante comercial em profunda
depressão. Está em um motel de beira de estrada no interior dos
Estados Unidos, prestes a cometer suicídio. “Tudo o que Você Ama
lhe será Arrebatado”, é uma história daquelas cotidianas, que
acontecem todos os dias e depois lemos nas páginas da seção
cotidiana
do jornal. Alfie era um cara relativamente bem-sucedido, casado e com
filhos. Mas chegando à meia-idade, sem perspectiva de mudança em
sua vida. Intui-se que este quadro seja o motivador da ação, mas o
mais curioso é que não ficamos sabendo exatamente a razão de Alfie
querer dar cabo de sua própria vida. E o final acentua ainda mais a
dúvida, pois King deixa em aberto o destino do infortunado
personagem.
O
conto seguinte é “A Morte de Jack Hamilton”, e King escreve um
segundo conto no estilo de homenagem. Aqui não a um autor em
especial, mas às histórias policiais pulps
dos anos 1930, recheadas de foras-da-lei muito carismáticos e bem
mais interessantes que os comportados homens-da-lei. Este conto
mostra a fuga da gangue de Jack Hamilton, num texto que consegue ir
um pouco além da mera homenagem, devido as qualidades de
King, principalmente com relação à construção de personagens.
Algo que ele sabe melhor do que a maioria dos escritores.
Já
a “Câmara da Morte” é uma história curiosa: uma narrativa
política situada em algum lugar
do Caribe. Um opositor é preso e torturado em um país que vive em
uma ditadura. Isso não é familiar? Na maior parte do conto somos
expostos ao interrogatório e às torturas em si. Ou seja: não é
propriamente agradável embora, infelizmente, bastante familiar a
qualquer brasileiro acima dos 50
anos. Mas, o texto apela para uma solução absolutamente
inverossímil para
o destino do
prisioneiro. Mas King assume isso, quando diz no comentário que fez
ao final do conto que,
“Em
tais histórias, o interrogado geralmente termina cuspindo tudo e
depois sendo morto (ou) enlouquecendo). Quis escrever uma com final
feliz, por mais irreal que fosse. E aí está.”
Pois
é. Mas não convence. Se quisesse mesmo uma solução deste tipo –
que é totalmente legítima –, deveria se esforçar mais, criar
situações mais convincentes e não forçadas só para chegar ao seu
desejo intencional.
A
história seguinte volta a elevar muito a qualidade do livro.
Refiro-me a “As Irmãzinhas de Eluria”. É uma espécie de
variação sobre um tema, no caso o universo ficcional de A
Torre Negra. Isso
porque esta história foi escrita fora cronologia da série, por
encomenda a uma antologia de fantasia. King resolveu, então,
explorar um aspecto particular da série, no caso uma passagem da
vida de um dos protagonistas, Roland. E o melhor é que não é
necessário um conhecimento prévio da série. Esta história vale
por si mesma. É das coisas de terror mais intensas que acompanhei
nos últimos anos. Em um mundo desolado, o viajante solitário Roland
chega a uma cidade deserta, abandonada, fantasma. E é surpreendido
por uns mutantes estranhos, esverdeados. Ele é capturado e levado
até um hospital onde é cuidado por enfermeiras. Até aí, nada de
muito aterrador. Mas o fato é que os doentes lá hospedados somem
misteriosamente, um a um. E Roland percebe do que se trata o lugar, e
que na verdade estas enfermeiras são malignas, cruéis, enfermeiras
da morte.
Morte
também está presente na próxima história, a que dá título ao
livro, “Tudo é Eventual”. Um rapaz descobre, meio por acaso, que
tem poderes especiais. Tem a capacidade de influir na vida alheia,
seja de uma pessoa ou de um animal. Basta que mentalize ou realize
alguma tarefa indireta para que seu desejo se cumpra por completo ou
em parte. Também de forma misteriosa ele, sem saber ao certo, é
recrutado por uma organização secreta. Reúne ‘talentos’ com
maneiras incomuns de influir na vida alheia, em benefício de um
grupo oculto que os sustenta financeiramente.
Esta
é uma narrativa com uma premissa interessante, sombria, que me
provocou duas sensações: 1) um desconforto pelo personagem
principal, que não me empolgou, e 2) fiquei com a impressão que a
história terminou de forma precipitada, pois as situações ficaram
abertas, não há uma conclusão clara.
E o tal
‘tudo é eventual’, passa aqui como uma ironia. Que trágicas
‘ironias’, ou eventualidades marcam coisas ruins, estúpidas,
inexplicáveis na vida de pessoas (ou animais) – geralmente aquelas
que consideramos como boas. Enfim, King nos coloca diante de uma
explicação nada eventual sobre a razão de coisas absurdas e más
acontecerem o tempo todo. Há uma explicação mas, curiosamente,
procura desconstruir exatamente a noção de que ‘tudo é
eventual’, como se houvesse um conserto oculto, maligno,
conspiratório permeando a vida de cada um. Sinistro, sim, mas sem
grande sustentação racional, mesmo para os parâmetros obviamente
fantasiosos que a história postula. E de qualquer forma, a sucessão
de que tudo é eventual, sem qualquer conotação oculta ou
fantástica, é a mais desconcertante e perturbadora. A que
provavelmente rege o universo em que vivemos.
Na
próxima história somos confrontados novamente sobre porque algumas
coisas horríveis acontecem. Em “A Teoria de L.T. sobre Animais de
Estimação”, uma mulher abandona o marido e leva junto o cachorro
de estimação. O cara passa boa parte da história remoendo a razão
do abandono e sai à sua procura. É uma noveleta de emoções e
surpresas, pois ela começa em um tom cômico e vai, gradativamente,
mudando em direção ao terror e à tristeza.
O
relato seguinte é batido no horror como um todo, e recorrente também
na carreira de King. O tema do quadro que muda, a cada nova olhada de
um observador. Neste “O Vírus da Estrada vai para o Norte”,
contudo, o autor está inspirado e somos levados a acompanhar a
história de um escritor que ao voltar de uma conferência literária,
depara com um quadro de aspecto estranho, em uma daquelas
liquidações, família vende tudo. Aqui nota-se outra recorrência
de King: o terror que ronda a atividade de um escritor, já visto em
vários contos e romances como, por exemplo, Angústia
(1987), A Metade Negra
(1989) e “Janela Secreta, Secreto Jardim” (1989). A sucessão de
mudanças no quadro é muito bem narrada. King imprime um ritmo forte
e convincente. Espera-se que, no fim das contas, tudo seja alguma
paranoia ou algum truque. Mas só posso adiantar que a intensidade da
solução assusta pelo seu vigor.
O
que já não é o caso de “Almoço no Café Gotham”. Um casal em
litígio marca um almoço num
restaurante, no qual acertam, na presença dos seus respectivos
advogados, um processo de separação amigável, depois do abandono
da mulher. Aqui temos a segunda abordagem de King neste livro sobre
este assunto. Contudo, o que surpreende
é a presença
de um mâitre psicótico, que começa a cortar e matar sem piedade
com uma grande faca – sem motivo aparente – os fregueses do
local. E o casal é surpreendido e tem de procurar se defender para
poder sobreviver à sangrenta loucura estabelecida.
Já
em
“Você só
Pode Dizer o Nome daquela Sensação em Francês”, estamos falando
no deja vù.
Quando ao vivenciarmos um fato, temos a nítida impressão de já o
termos vivenciado, mas sem saber como nem porquê. O conto é ainda
narrado de uma maneira estranha, ao transmitir a sensação de que os
acontecimentos não são claramente percebidos, não parecem reais.
Mas eles se insinuam e, mais que isso, se repetem, condenando o casal
da história a fazer a mesma coisa de forma repetida. Como se presos
a um inferno, como define o próprio King, em seus comentários sobre
o conto. Um dos grandes momentos do livro.
Assim
como a história seguinte, o aterrador “1.408”. Segundo King, a
sua versão de uma ‘sala fantasma em um hotel’. Um escritor quer
passar uma noite em um hotel de Nova York que está fechado há
décadas por ter fama de mal assombrado. Pessoas teriam sido
queimadas, outras
enlouquecido, e cometido suicídio e assassinato no tal quarto 1.408.
O gerente do hotel tenta de todas as formas possíveis, dissuadir o
escritor a levar à frente seu intento. Mas ele é irredutível e
terá a sua noite no 1.408. É uma história excelente de cômodo
assombrado. Lembra o clássico O
Iluminado (1977),
na
relação do hotel com o escritor Jack Torrance. E é bom lembrar que
aqui King retoma a questão sob o prisma dos escritores. Talvez para
extravasar seus próprios sentimentos ao lidar com temas tão
incomuns e perturbadores, como o desta história puramente de
horror.
“Andando
na Bala” vem a seguir. A badalada história que teve sucesso
comercial ao ser publicada na internet, e fez King virar capa da
Time.
No prefácio ele se disse desapontado, porque tanto a revista como a
maioria das pessoas só lhe perguntavam o quanto estava ganhando com
a história. Não lhe contavam o que tinham achado da história.
Talvez porque não a tenham lido. Ou
porque tenham lido e não gostado. Ou
então
porque a história, embora muito boa, toque em um tema muito
sensível, ao qual as pessoas não gostam de falar: a morte de entes
queridos. Fico com a primeira hipótese. Mas “Andando na Bala” é
uma história de emoções muito fortes e humanas. Se insere no
terreno de sua autobiografia, conforme ele mesmo anuncia no pequeno
prefácio que escreve à história. Temos aqui King em seu melhor
momento, equilibrando de forma virtuosa, os mistérios da realidade e
da imaginação. Ao final deste relato
tocante, dá para entender porque King ficou tão contrariado por só
elogiarem o êxito financeiro da história. Ele estava contando uma
história dele, muito íntima. Quando nos expomos desta maneira,
queremos, de uma forma ou de outra, alguma espécie de solidariedade.
Depois
destas três histórias de alto nível, o livro termina de forma meio
sem graça, com um conto que poderia ter sido limado. Refiro-me à “A
Moeda da Sorte”. Uma variação sobre a tentação perigosa e
gananciosa do jogo. Nada mais do que uma fantasia simpática –
porque, afinal, a intenção da mãe era louvável, pois tinha um
filho doente
–, mas com um desfecho um tanto moralista, o que acaba por destoar
do ambiente geral do livro.
Reza
a sabedoria convencional que numa coletânea – ou antologia –
temos histórias boas e ruins. Não é possível agradar a todos. O
que dizer deste Tudo é
Eventual? Tudo bem, há
histórias menos boas sim, mas temos algumas excepcionais, o que
perfaz um conjunto altamente positivo e encorajador. Stephen King
mostra que, embora esteja escrevendo romances cada vez mais
volumosos, não perdeu o jeito para textos mais curtos – embora não
muito curtos, como já frisado –, uma preocupação que ele mesmo
demonstrava em seu prefácio. Pois como ele afirma em certa passagem
do livro, ao comentar uma das histórias, os “contos são como
artefatos: não coisas feitas, criadas por nós (e pelas quais
possamos receber créditos), mas objetos preexistentes que
desencavamos”. Esta declaração até pode ser verdadeira do ponto
de vista dele. E para, alguns de seus pares escritores. Mas o fato é
que nem todos tem essa capacidade ‘preexistente’, um tipo de,
digamos, instinto natural. Não só para conceber uma ideia mas,
principalmente, torná-la interessante, fazê-la ganhar vida como uma
história bem contada. Talento que
King desenvolve como poucos.
– Marcello
Simão Branco