quarta-feira, 18 de maio de 2022

Armadilha em Zarkass

 

Armadilha em Zarkass (Piège sur Zarkass), Stefan Wul. Tradução: Álvaro Simões. Capa: Lima de Freitas. 181 páginas. Lisboa: Editora Livros do Brasil, Coleção Argonauta, n. 90, 1964. Lançamento original de 1958.

 

Dois agentes do serviço secreto do governo terrestre partem para Zarkass, um planeta do sistema de Alfa Centauro, para investigar a possível invasão de uma raça alienígena distante e com a qual naves da Terra já haviam entrado em combate anteriormente, os triângulos. Assim chamados por causa do formato de suas astronaves, já que eles jamais foram vistos.

Com a informação de que uma nave dos alienígenas caiu numa floresta afastada das principais cidades, eles partem junto a zarkassianos nativos, ´selvagens´, assim chamados pelos próprios zarkassianos urbanos, ditos ´evoluídos’. Depois de uma travessia longa e difícil por uma selva fechada e cheia de surpresas e perigos, Laurent e Darcel localizam a nave. Por sinal, a expedição em si, na primeira das três partes do livro, é a melhor passagem do romance, pois Wul, como lhe é habitual, exibe o seu melhor quando solta sua imaginação. Aqui no caso na criação de uma flora e fauna desconcertante e colorida, que inclui grama almiscarada, largartos-leões, macacos com cabeça de boi, cobras aladas, flores carnívoras, corolas que se debruçam sobre o rio para beber água, kwiis (macacos-anões), árvores que se mexem, um gavik (meio lagarto e meio peixe) e alguns outros seres não menos exóticos.

Se o leitor já leu outros livros de Wul vai reparar que Armadilha em Zarkass tem um enredo muito parecido com Missão em Sidar (Rayons pour Sidar; 1957) – ver a resenha aqui. Pois também há agentes infiltrados numa missão secreta no meio de uma selva inóspita e perigosa num planeta que também orbita Alfa Centauro, sob protetorado da Terra, mas que está para ser dominado por uma outra espécie alienígena. Além disso, também em Sidar há uma ótima descrição da fauna e flora locais, mas em Zarkass, o autor foi mais além. Assim, talvez possamos relacionar as duas histórias como pertencentes a um mesmo universo ficcional, embora Wul não deixe pistas mais diretas sobre esta intenção.

Após retirarem da nave dos alienígenas vários componentes internos, Laurent e Darcel partem para a capital de Zarkass, mas são surpreendidos e presos, sob a falsa alegação de que portariam uma doença contagiosa da Terra. Na verdade, os zarkassianos já estavam sob domínio dos triângulos – cuja aparência real era insetoide e de tamanho minúsculo – que se travestiam de humanoides, com vários deles ocupando um corpo semelhante ao dos zarkassianos tornando difícil sua identificação.

Laurent consegue fugir, mas após se disfarçar com as vestes do antigo sacertote-rei do planeta, Safass-Thin, se transforma gradual e dolorosamente em um zarkassiano. Ele passa a ser visto, simplesmente, como a reencarnação do antigo líder, que exercerá um papel vital na reviravolta dos acontecimentos em relação à presença dos triângulos.

A armadilha, portanto, tem um duplo sentido. Primeiro na transformação do espião humano num alienígena, e depois na volta inesperada do antigo governante que lutará pela expulsão dos invasores do espaço distante. Mas o que é mais sutil é que isto não representará, necessariamente, a independência de Zarkass. Pois o limite da rebeldia estará na saída dos triângulos, mantendo-se sob o domínio político da Terra. Aqui, talvez mais do que em Missão em Sidar, o aspecto imperialista se faz presente, numa linha que remete à francofonia, especialmente a exercida nas colônias do país na África. Como já apontado antes em Degelo em 2157 (La Peur Géante; 1957) – ver resenha aqui –, Wul, embora crítico de certos pormenores da presença francesa, nutria certa simpatia ou condescendência. A tentativa de reconciliação de Zarkass, quando tinha tudo para romper de vez com a Terra, mostra isso. Revela, talvez, um paternalismo implícito com relação a povos e culturas não ocidentais.

Neste romance, um dos três últimos que ele publicou na clássica coleção de bolso francesa Fleuve Noir – precursora da portuguesa Argonauta – as soluções cientificamente delirantes cedem espaço para um desfecho mais mágico e sobrenatural.

O mais interessante, contudo, é que os agentes da transformação do status quo são os próprios zarkassianos, ao contrário de outros de seus romances, no qual são os terrestres que agem. Em parte, para se beneficiarem, e em parte para ajudarem alguma civilização sob algum tipo de ameaça. Mas, como dito, acima, sem significar uma plena libertação.

Marcello Simão Branco