sábado, 24 de abril de 2021

Lotófagos

Lotófagos (The Lotus Eaters), Stanley G. Weinbaum. Tradução de Ivan Carlos Regina. 18 páginas. Publicado originalmente em 1935.



Em uma discussão recente num grupo de leitores de FC no whatsapp surgiu o tema dos escritores talentosos, mas que andam esquecidos. Entre outros, foi citado o nome de Stanley G. Weinbaum (1902-1935), por meio da lembrança do escritor Ivan Carlos Regina. Depois que ele descobriu que ninguém havia lido a noveleta “Lotófagos”, Regina resolveu fazer uma tradução pessoal e colocar à disposição dos fãs. E é neste contexto que me surgiu a oportunidade de ler esta história.

Lotófagos” é uma sequência do conto “Parasite Planet” (1935), no qual são apresentados o engenheiro Hamilton “Ham” Hammond e a bióloga Patricia Burlingame. Mas é uma ligação tênue que não prejudica o interesse em ler a noveleta em questão. Depois de se casarem em Vênus, Ham e Patricia saem a explorar o lado oculto do planeta, já que teriam de esperar oito meses para que Vênus ficasse a uma distância mínima que permitisse a viagem para a Terra, onde iriam passar sua lua de mel.

Filha de um cientista famoso, ela seguiu as pesquisas do pai e o passeio se converteu numa exploração sobre as possibilidades de encontrar vida na parte escura de Vênus. Após se depararem com fungos, acham os triops noctivivans, uma espécie semelhante aos morcegos, muito agresssivos e que se alimentam de uma planta que se move e se refugia em cavernas de gelo. De modo surpreendente uma destas plantas responde a uma dúvida surgida numa conversa do casal que, perplexo, resolve estreitar conhecimentos com esta criatura inusitada.

Mas o mais desconcertante estava por vir, pois os lotófagos, como vegetais, embora capazes de pensamentos altamente complexos, não demonstram medo ou resistência diante de seus predadores, os triops noctivivans. A resignação diante do seu destino em servir de comida e ter, por fim, a espécie extinta, deixa o casal chocado, especialmente a bióloga.

Eles já haviam percebido que os lotófagos falam por todos, ou seja, ao falar com um, pode-se continuar a mesma conversa com outro, como se tivesse uma memória coletiva. Para facilitar, são chamados de Oscar e, aos poucos, além destes fatos, eles descobrem que não é bem por serem vegetais que os lotófagos não tem razão para reagir. Mas sim por causa dos efeitos do seu processo reprodutivo, por uma espécie de replicação do próprio corpo, do qual emana uma droga que os torna passivos e conformados. Isso não era um problema antes da chegada dos predadores a esta região do planeta, ocorrida há poucas décadas, sem dar tempo, portanto, para que houvesse um processo de adaptação evolutiva que os pudesse permitir lutar para sobreviver.

É uma noveleta extremamente bem narrada e elaborada em seus argumentos, basicamente racionais e dedutivos. Mostra uma outra forma de inteligência, soando mesmo como não humana em sua forma de pensar e exprimir compreensão da realidade. Este é, seguramente, um dos desafios mais difíceis de serem obtidos na FC: criar uma forma de inteligência alienígena que se pareça realmente alienígena, e não uma emulação ou variação da estrutura de pensamento e comportamento humano.

Lotófagos” é uma joia rara, publicada na edição de julho de 1935 da revista Astounding Science Fiction, e só reafirma a surpreendente maturidade temática e narrativa para um autor tão jovem. Esta história, na verdade, já foi publicada em Portugal na antologia Obras-Primas da Ficção Científica, Volume 2, organizada por Sam Moskowitz para a Galeria Panorama, no final dos anos 1960. E eu já conhecia sua obra através do seu ótimo romance O Novo Adão (The New Adam) publicado na mesma Panorama, em sua Coleção Antecipação no. 37 –, e a noveleta “A Odisseia Marciana” (“The Martian Odissey”, 1934) – publicada duas vezes no Brasil, a primeira na antologia … Para Onde Vamos? (Where do We Go rom Here?), organizada por Isaac Asimov, Editora Hemus, e na antologia Ficção de Polpa no. 2, organizada por Samir Machado de Machado, Não Editora, 2008. E também saiu no Brasil a noveleta A Pirata Espacial (“The Red Pery”; 1935), pela Editora M&C – Coleção Império, 1998.

O Novo Adão trata dos impactos do que ocorreria se surgisse um ser humano acima de nossa escala evolutiva, quase como um super homem. Weinbaum explora a premissa de forma realista, mostrando como sua inteligência superior não levaria, necessariamente, a uma vida melhor para ele e nem para os demais. Já A Odisseia Marciana é uma história pioneira por mostrar de forma verossímil um alienígena pacífico e inteligente, contrário do padrão imaginado nas histórias da época. É, talvez, o seu trabalho mais influente na ficção científica. Para completar o quarteto de histórias publicadas em língua portuguesa, A Pirata Espacial gira torno de uma misteriosa nave rebelde que rapina outras naves e planetas. Mas ao chegar a Plutão se depara com um desafio inesperado, ante a presença de um aventureiro destemido. O leitor deve ter reparado que suas histórias curtas se passam em planetas. Pois assim foi, já que ele escreveu contos em todos os planetas do Sistema Solar.

Com uma obra nem tão pequena em tão pouco tempo de vida: quatro romances e 16 contos e noveletas – e escritas em apenas dezoito meses –, Weinbaum aliou não só ideias ousadas e de subversão aos clichês, mas as desenvolveu com uma complexidade que impressiona ainda hoje. Seguramente, foi uma das maiores perdas para a história da FC, com sua morte precoce, aos 33 anos, de câncer no pulmão. Weinbaum despontava como um autor muito acima da média e é de se pensar o impacto que poderia ter causado no desenvolvimento posterior do gênero, caso tivesse vivido uma vida longa e produtiva.

Vários autores que têm entrado em domínio público estão sendo publicados (e republicados) nos últimos anos, com o avançar do século XXI. Mas um autor como Weinbaum, absolutamente original e precioso, precisa ser praticamente descoberto no Brasil. Fica a sugestão enfática para que alguma editora um pouco mais atenta e sensível, o publique novamente. Um autor com voz e ideias próprias que certamente faria a diferença na imaginação dos leitores.

Marcello Simão Branco


segunda-feira, 12 de abril de 2021

Cowboy Bebop, um seriado diferente

Anuncia-se para 2021 uma versão cinematográfica em imagem real para Cowboy Bebop. Em princípio é uma boa notícia, considerando que a série original é extraordinária e deixou muitas pontas soltas, com um final até certo ponto decepcionante.
O seriado, dirigido por Shinishiro Watanabe (Estúdio Sunrise), consta de 26 episódios produzidos entre 1998 e 1999. Seguiu-se o mangá, desenhado por Hajime Yatate e que totalizou três volumes – saiu de 1999 a 2000. Finalmente, em 2001, Watanabe dirigiu um OVA de longa-metragem, Cowboy Bebop: Tengoku no tobira.
Infelizmente, o mangá e o filme longo apenas contam novos episódios avulsos, que nada acrescentam ao capítulo 26 do seriado, ou seja, não avançam com a saga ali bruscamente interrompida.
Os personagens são poucos e o argumento muito interessante. É como se fosse um faroeste cósmico: os “cowboys” são caçadores de recompensas, que procuram criminosos com a cabeça a prêmio. A Bebop é uma nave onde viajam três deles: Spike Spiegel (ex-gangster da máfia chinesa “Dragão Vermelho”), Jet Black (ex-policial, com um braço mecânico) e Faye Valentine (cujo passado é misterioso). Ainda aparecem na Bebop o cachorro Ein, que é muito inteligente, e a excêntrica “haker” Ed, de treze anos.
O nome “Ein”, por sinal, é uma abreviação de Einstein — para dar uma ideia da inteligência do cachorro. Quanto a Ed., a seu modo também é inteligentíssima, inigualável num computador, apesar de sua aparência desmazelada de “hyppie” e só andar descalça.
Sem embargo da comicidade de diversos episódios, a história tem uma raiz altamente dramática e um desfecho trágico. É uma história de crime, paixão e vingança, envolvendo um amor frustrado e um caso mal resolvido. Cínico, cético, Spike Spiegel já se considera morto e, por isso, liga pouco para a vida. Jet Black também tem um passado doloroso como policial, algo que lhe valeu a perda do braço. Quanto a Faye, que veio depois, é um caso curioso: atingida pelos cataclismos que vitimaram a Terra, planeta agora praticamente abandonado, foi levada em coma a Marte e permaneceu congelada por 54 anos, sendo resgatada sem ter envelhecido além dos 23 anos que tinha. Mas já foi acordada com o hospital cobrando os 54 anos de internação sem que ela pudesse pagar, tornando-se assim a pessoa mais endividada do Sistema Solar.
É uma série que vale a pena assistir por seu dinamismo e criatividade.

— Miguel Carqueija
Resenha iniciada em 7 de novembro de 2010 e somente completada em 12 de abril de 2021.

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Conto: "O Capitão Barbosa e o Chimuti"

    Acompanhado por seu imediato Zé Peroba, o Capitão Barbosa caminhava célere por um dos corredores de Heliópolis, a estação interplanetária situada para além da nuvem de Oort e que era frequentada por diversas raças cósmicas.
    Barbosa estava apressado, pois queria ir numa feira de mangás e animês que funcionava no nível 6. Em poucas horas teria de retornar à Terra.
    De repente, pelo corredor em que ele seguia, vieram pela direção oposta dois sujeitos altos, escaniçados e ostentando antenas flexíveis. Eram dois chimutis, do planeta Chimutino, e por seus uniformes e insígnias dava para perceber que um deles era capitão e o outro imediato — portanto as mesmas categorias de Barbosa e Zé Peroba.
    Eles estacaram, todos os quatro, bem defronte uns dos outros.
    Surgiu um impasse: os terrestres seguiam pela direita, como é hábito na Terra; os chimutis, porém, como é hábito em seu planeta, seguiam pela esquerda.
    — Droga! Outra vez problemas entre a esquerda e a direita! — resmungou o Capitão Barbosa.
    — Choputiski Ypikusti! — falou o capitão chimuti, em tom bem arrogante.
    — Prezado senhor, a direita é minha — respondeu Barbosa com firmeza.
    — Mahulinski oritopis! Chopiltiski ypikasti, alolei matinsky!
    — Impossível! Pelas regras do meu planeta, nós temos direito à direita!
    — Prahatús pajutios! Hinski! Hinski!
    — Capitão — arriscou timidamente o Zé Peroba — o senhor está entendendo alguma coisa?
    — Bulufas! Mas não é por isso que eu vou entregar os pontos!
    O imediato chimuti segredou qualquer coisa ao seu capitão, que deu de ombros.
    — Prezado senhor — insistiu Barbosa — o senhor tem que nos ceder a direita.
    — Capitão — interveio o Zé Peroba, enquanto os outros dois confabulavam — todo mundo está contornando a gente, sem ligar...
    — Cala a boca, Zé Peroba! Quando eu precisar da sua opinião eu peço! E o senhor, comandante chimuti, não vai querer criar um incidente interplanetário! Além do mais eu não vou querer perder a feira de mangás e animês!
    — Abdul ormatininski paafraim! Yhikut! Ypahust!
    — Ypahust para você também! Faça o favor de nos ceder a direita!
    — Lebrankoviski bestakoviski! Lolabrapia nujolinski! Alalá! Alalá!
    — Não tem nada lá, não! Vamos resolver é aqui!
    — Capitão Barbosa — e o Zé Peroba ousou tocar-lhe o pulso — esse pessoal usa a esquerda, alguém vai ter que ceder!
    — Pois que não seja eu! A honra da Terra está em jogo!
    — Mas se nós demorarmos muito não teremos tempo para ir na feira dos mangás!
    Diante de argumento tão convincente, o Capitão Barbosa parou e refletiu por bem uns dois segundos.
    — Bem, bem... ora, para não dizerem que eu sou radical e intransigente, capaz até de causar um incidente interplanetário por causa de uma ninharia, abrirei mão do meu direito à direita e a pecha de intransigente ficará com esse nosso amigo. Peroba, como diz o leão da montanha, saída pela esquerda!
    Zé Peroba deu um suspiro de alívio. O que eles não perceberam foi que os dois alienígenas também haviam confabulado rapidamente, pois o motel aonde ia o capitão chimuti tinha hora para fechar, e ele por sua vez patrioticamente e também apressadamente por sua vez abriu mão da esquerda.
    Os quatro se chocaram.
— Miguel Carqueija 
Rio de Janeiro, 19 de julho a 4 de agosto de 2019.