sábado, 22 de janeiro de 2022

O Império dos Mutantes

O Império dos Mutantes (La Mort Vivante), de Stefan Wul. Tradução: Amadeu Lopes Sabino. Capa: Lima de Freitas. 172 páginas. Lisboa: Editora Livros do Brasil, Coleção Argonauta, n. 107, 1966. Lançamento original de 1958.

 


Stefan Wul é um autor que pensa grande. Uma das qualidades de seus livros é a dimensão quase metafísica que confere à condição humana, sua evolução e destino, principalmente do ponto de vista biológico. E este romance é aquele em que vai mais longe na exploração desses conceitos.

Num futuro distante e indefinido a Terra está praticamente desabitada. Os mares tomaram toda a superfície, restando apenas túneis subterrâneos e castelos no alto de montanhas. O ar é irrespirável tomado por uma radioatividade mortal.

Mas a humanidade sobreviveu. A maioria partiu para as estrelas distantes, construindo o que chamam de ‘planetas paraíso’. Talvez emulações intencionais ou não da própria Terra? Mas há também os que colonizaram os vizinhos Vênus e Marte.

Pois é em Vênus que nos é apresentado Joaquim, um velho biólogo que luta para manter suas pesquisas científicas contra uma rígida censura religiosa. Sim, a sociedade humana em Vênus é governada por uma ditadura que subjuga todos os aspectos comportamentais à sua doutrina. Uma teocracia mergulhada na ignorância e barbárie, a despeito de defender os valores de Deus.

Todo este contexto é mostrado logo nas primeiras páginas, conferindo um efeito altamente impactante. Poderia mesmo servir como uma ótima vinheta ou miniconto, e já seria incrível. Wul mostra como, de saída, fisgar o leitor de maneira incontornável.

Após Joaquim comprar um livro proibido de medicina de um contrabandista, este o leva para a Terra, apesar dos protestos do cientista. Na verdade, reclamações hesitantes, pois lhe é oferecida a chance de pesquisar livremente, sem censuras e humilhações. Chegando à Terra, ele é conduzido a um castelo no alto dos Montes Pirineus – cadeia de montanhas que fica na fronteira entre a França e a Espanha –, onde é apresentado a Martha, uma linda e misteriosa mulher, que comanda uma rede de contrabandos entre os dois planetas.

Ela deseja que o biólogo cure sua filha gravemente doente. Mas durante a viagem a menina morre, e então a missão de Joaquim terá de ser mais complexa: trazer novamente Lisa à vida. Mas como assim? O próprio Joaquim se mostra incrédulo. Mas Martha lhe mostra uma biblioteca com livros antigos, no qual haveria o conhecimento para se trazer uma pessoa morta novamente à vida. Ressurreição? Não, na verdade a técnica é a da clonagem, mas é curioso que esta palavra não é usada no livro, dando uma ideia errada do que seja reviver uma pessoa. Mas, no fundo, a própria Martha compreende que não é exatamente a filha que perdeu que deseja de volta, mas sim uma cópia dela.

Mas não se quer apenas uma nova Lisa, mas sete! Sim, por receio de que a experiência não desse certo, a mãe desesperada replicou mais células que o necessário, e sem dizer nada a Joaquim. Contudo, rapidamente, os setes clones mostram um desenvolvimento incomum. Crescem rápido e falam após poucos meses de vida. Da felicidade se resvala para o desespero e o descontrole, quando as gêmeas passam a desafiar a autoridade de Martha e Joaquim.

Para além do exagero das sete crianças, um erro grave foi cometido na própria clonagem, pois Joaquim descobre que a Lisa original havia sido envenenada pela mordida de um lagarto. E o efeito do estranho veneno teria desencadeado este desenvolvimento físico e mental incomum dos clones que, passam a engravidar e gerar novas Lisas, num processo de partenogênese. Centenas delas agora tomam as dependências do castelo e seus túneis subterrâneos. E, ainda além, elas se unem num único organismo que de humano já não tem quase nada, adquirindo um apetite insaciável por alimentação animal e vegetal. Percebe o leitor que a partir da clonagem se desenvolve várias mutações que transformam inteiramente os seres vivos originais? Tal narrativa é mostrada pelos olhos surpresos e aterrorizados de Joaquim e Martha, que se tornam vítimas de um monstro incontrolável.

 


O Império dos Mutantes é uma história de extrapolação científica em estado puro, no qual Wul demonstra o seu conhecimento científico ligado às ciências biológicas – ele era dentista de profissão – e uma imaginação das mais delirantes. Neste caso específico de puro pesadelo e horror.

Este é o único livro de Wul publicado no Brasil, com o título de A Cadeia das Sete, pela Tecnoprint Editora, série Futurâmica, n. 4, em algum momento dos anos 1970. Tenho esta edição, mas para escrever esta resenha li a edição portuguesa mesmo, de forma a seguir o padrão de leitura dos outros livros dele publicados pela Argonauta. Em 2019, uma editora online chamada Ala dos Livros anunciou a publicação de uma adaptação em quadrinhos do livro, publicada originalmente na França em 2018, com texto de Olivier Vatine e desenhos de Alberto Varranda, mas, ao que parece, o projeto ainda não veio a lume.

Outra curiosidade é que esta FC de puro sense of wonder inspirou o nome do grupo de rock brasileiro Os Mutantes (1966-1978; 2006), de Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias – além de participações de Liminha e Dinho Leme –, que marcou época na música popular brasileira. A sugestão do título da banda foi do cantor Ronnie Von, no seu programa de TV na Record, já que até então o nome era Os Bruxos. Talvez a feliz sugestão tenha se relacionado com o caráter ambíguo e em transformação dos temas e comportamento dos integrantes da banda, que transitavam entre a Jovem Guarda e a psicodelia da Tropicália, numa pioneira experimentação de um rock and roll à brasileira.

O Império dos Mutantes reflete sobre a relação problemática entre dogma e conhecimento, teocracia e ciência, mas, curiosamente, é como se a experiência tivesse dado alguma razão aos religiosos. Isso não fica explicitamente evidenciado na história – embora Joaquim se angustie muito com o resultado de seu experimento –, mas passa essa sensação. Um romance poderoso e que deixa um forte impacto no decorrer dos acontecimentos, como que se superando, um capítulo após o outro, até um desfecho não menos que incrível. Este é um dos melhores livros de Wul, com um pulp dos mais acentuados, embora numa chave inversa – não muito comum em livros deste tipo –, com o contexto mais pessimista e desdobramento mais sombrio de sua obra.

 

Marcello Simão Branco