segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O Passa-Paredes

O Passa-Paredes (Le pasie-muraille), de Marcel Aymè. Tradução e orelhas: Fernando Py. Capa: Ipojucan. 162 páginas. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, Coleção Mestres do Horror e da Fantasia, 1982. Lançamento original de 1943.


Marcel Aymè (1902-1967), escritor pouco notado no Brasil, se destacou principalmente em seu país, a França, na segunda metade do século passado. Chama a atenção nesta coletânea de dez histórias, uma prosa limpa e coloquial, o humor e a fina ironia, um trânsito muito competente entre o cotidiano e o fantástico, além do caráter crítico ao seu tempo. Época dramática, em plena ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

O conto “O Passa-Paredes”, que dá nome à coletânea, é o primeiro da lista e um dos momentos mais brilhantes. Nele, um modesto funcionário de uma repartição pública descobre, por acaso, que tem o poder de atravessar corpos sólidos. Após o espanto, que o leva, inclusive a procurar um médico – e que lhe receita uns comprimidos! –, se acostuma e passa a tirar proveito da situação. Não demora para que aflore outra parte de sua personalidade. Se torna um exímio assaltante que deixa bilhetinhos com o apelido Garou-Garou. Isso pega no imaginário do povo e ele se torna muito conhecido, para desmoralização da polícia. Acaba preso, mas sempre escapa… A história se tornou tão popular que ganhou até uma estátua em Paris  ver imagem abaixo , e recebeu três adaptações no cinema (duas francesas e uma alemã), e uma minissérie na TV do seu país em 2016. Outra história sobre o mesmo tema do qual me lembro é o filme "Quarta Dimensão" (4D Man; 1959), de Irwin S. Yeaworth. Baseado num roteiro de Theodore Sturgeon, ao contrário do conto do francês, procura dar uma justificativa científica ao fenômeno de pessoas trespassarem objetos sólidos. É um filme de FC competente, mas sem a aura de meio de não se levar muito a sério de Aymé, o que garante a este parte do seu encanto.

Outra história insólita e divertida é “As Sabines”, no qual uma jovem possui o dom da ubiquidade. Como no conto anterior, ela se rende à tentação. Casada, mas entediada, arruma um amante atrás do outro. E não só em Paris, mas em Londres, e mundo afora. Chega a conviver com centenas ao mesmo tempo! É uma história que, mais que a anterior, flerta com o absurdo, ainda mais acentuado pelo tom humorístico – e ao mesmo tempo sarcástico – sobre o comportamento humano.

Em dois outros contos, Aymè explora a questão da ética religiosa e o valor da doutrina cristã. Em “A Lenda Poldova” e “O Oficial de Justiça”, o sobrenatural se insere na chegada ao céu de uma beata – no primeiro conto –, e de um, justamente, oficial de justiça, no segundo. Ambos, por motivos diferentes, têm dificuldades em serem aceitos por São Pedro no Paraíso – no segundo conto até Deus é chamado para resolver a controvérsia que se instala quando o oficial de justiça não é aceito, exatamente por exercer de forma corretíssima o seu trabalho, o que ocasionou a miséria e a humilhação de muita gente. Já o motivo da vetusta cristã não ser aceita, é que como era tempo de guerra, priorizou-se permitir a entrada dos mortos em batalha. Assim, quando ela morre de uma doença, ela é barrada e não se conforma, por ter sido sempre um exemplo de retidão e caridade. Mas quando descobre que o seu sobrinho ladrão e estuprador, morto na guerra, é aceito ela resolve dar um jeito nem um pouco ético de adentrar no céu.

O tom mais socialmente crítico é ainda mais acentuado, e sem o fantástico, na tocante noveleta “As Botas de Sete Léguas”, sobre a convivência de um menino pobre com colegas mais ricos em uma escola, a partir do desejo de todos de comprar as botas do título. Mas, do ponto de vista do fantástico e, principalmente, do subgênero da FC da viagem no tempo, duas outras histórias que se destacam: “O Cupom do Tempo” e “O Decreto”.

No primeiro, devido à crise econômica e escassez de alimentos, o governo baixa uma lei que delimita o tempo de vida de cada pessoa em cada mês. O critério é o da relevância da profissão de cada um. Claro, tudo muito arbitrário. Assim, tem gente que vai viver 5 dias, outros 10, e alguns o mês inteiro. Nos dias faltantes as pessoas ‘morrem’, ou seja, literalmente evaporam, para reaparecer no mês seguinte. Na história, acompanhamos as desventuras de um professor que teve sua vida reduzida à metade por mês. Embora não haja explicação de como tal situação seja possível – o que afasta o conto da FC e o vincula ao fantástico –, lembra o romance O Mundo de um Só Dia (Dayworld; 1985), de Philip José Farmer (1918-2009). Neste livro, o problema da superpopulação é contornado, ao se fazer cada pessoa viver só um dia por semana. Nos outros dias, ela fica em animação suspensa.

Já no conto “O Decreto”, a situação temporal que se manifesta é o do avanço dos anos. De novo, é o governo que baixa uma medida que adiante em 17 anos o calendário. Ou seja, de 1942 salta-se para 1959. Ação esdrúxula e sem efeito, não? Não, porque após a mudança, as pessoas despertam, efetivamente, mais velhas e com suas vidas alteradas, para melhor ou pior a depender de cada um. O mais insólito, contudo, é o que passa um funcionário público ao visitar um amigo que vive numa chácara, nos arrabaldes de Paris. Após uma forte chuva ele se perde e se depara com a presença de soldados alemães. Incrédulo no início, fica chocado ao descobrir que seu país está novamente invadido. Mas não: ele voltou a 1942. Tenta achar o caminho de volta para Paris, mas mesmo lá constata que os nazistas governam o país. Ele mesmo se pergunta se voltou mesmo à sua época ou se este seria um universo paralelo em que a guerra não terminou, apesar dele voltar a ser jovem novamente. É a melhor narrativa da coletânea e no que, Aymè, que escreveu estes contos durante a ocupação nazista, elocubra de forma instigante e angustiada uma saída para a humilhação e o pesadelo.

O conto que conclui a coletânea é “Esperando” e destoa dos outros. Isso porque mostra que a Segunda Guerra durou até 1972, e o povo passava por doenças e fome. Numa fila para receber pão, várias pessoas contam sua história triste e como suas vidas se tornaram miseráveis e sem esperança por causa do conflito. É uma história bem triste e mostra que, no fim das contas, Aymè se rendeu ao pessimismo pelo qual vivia a França no início dos anos 1940.

Afora esta ótima coletânea, o autor publicou muito durante as décadas de 1940 a 1960, quando faleceu. Muitos romances, contos, peças de teatro e roteiros para cinema, no qual o elemento fantástico vez por outra se tornava um meio de exploração da narrativa. No Brasil, além de O Passa-Paredes, teve publicado os infanto-juvenis A Égua Verde (Le jument verte; 1933), pela Record em 1968; Histórias do Gato Sentado (1972), pela Ediouro, e Os Bois (sem data), pela Anhambi, também sem data. E o romance O Sobrado (La maison basse; 1935), pela editora Pontes, em 2004.

Aymé mostra nesta coletânea que uma virtude da arte de escrever e contar histórias é, por meio de uma prosa simples e despojada, envolver o leitor e o fazer refletir sobre questões sensíveis e próximas a cada um de nós. E com o adicional, neste livro ao menos, de usar o recurso do fantástico e do sobrenatural para acentuar os problemas e contradições da condição humana e social. Um autor que merece mais atenção. No campo do fantástico e em geral.

Marcello Simão Branco