quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Fronteiras da Eternidade

 

Fronteiras da Eternidade (The Edge of Forever), Chad Oliver. Tradução: José Sanz. Capa: Myriam Graber. Introdução: William F. Nolan. 280 páginas. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1973. Publicado originalmente em 1971.

 


Esta coletânea publica algumas das principais histórias curtas do autor surgidas no início de sua carreira, na década de 1950. Como ele mesmo afirma no posfácio que escreveu a este livro, são narrativas dele quando jovem, com menos de 30 anos, no começo de sua carreira acadêmica, como professor de Antropologia.

Chad Oliver, na verdade, é o nome artístico de Symmes Chadwick Oliver (1928-1993), um ávido leitor e fã de FC na adolescência. Como informa William F. Nolan (1928-2021) na ótima introdução “Os Mundos de Chad Oliver”, ele conheceu a FC por causa de uma febre reumática, que o fez ficar de cama por muito tempo. Bem aproveitado, ao menos, lendo diversas pulp magazines. Na verdade, ele não apenas as lia, mas se tornou um dos maiores missivistas dos anos 1940.

Em quase todas as histórias desta coletânea, temos personagens antropólogos. “Talvez mais que o desejável”, como ele refletiu, anos depois. Mas compreensível, pelo fato de as duas atividades estarem em formação e desenvolvimento, a de escritor de FC e a de antropólogo. Assim, Oliver é normalmente classificado como um escritor de FC soft e não está incorreto. É um nome importante, pioneiro mesmo, ao incluir na ficção científica uma abordagem culturalmente crítica e embasada por pesquisas em antropologia. Como ressaltou o crítico da revista Locus Gary K. Wolfe, “Oliver foi o responsável por introduzir de forma consistente temas antropológicos na FC norte-americana a partir dos anos 1950, tendo uma importância comparável à de Ursula K. Le Guin neste particular.” (Megalon n. 30, maio 1994). Isso não é pouca coisa, embora, nos dias de hoje, seu nome esteja relativamente esquecido.

Fronteiras da Eternidade – belo título, aliás –, contém seis histórias abordando o impacto sobre os seres humanos de contatos com outras formas de vida e cultura, além dos significados sociais do desbravamento do espaço sideral e, principalmente, algumas experiências de desenvolvimento de novas culturas. Processos de manipulação que, como se verá e o próprio autor reconhece em seu posfácio, muito polêmicos.

A primeira história é “Transfusão” (“Transfusion”), primeiramente publicada em Astounding Science Fiction, junho de 1959. Um antropólogo viaja no tempo e descobre, para seu espanto, que os hominídeos de 25 mil anos atrás desapareceram sem deixar rastros. É como se toda a linha evolutiva da humanidade tivesse sido abortada, e não houvesse um início da presença humana na Terra. Mas Ben Hazard e um colega planejam e executam várias missões de retorno a períodos ainda mais distantes. E descobrem uma resposta chocante, quando testemunham 50 casais de humanos sendo deixados na Terra por uma gigantesca astronave, conduzida por humanoides. É uma história fascinante, embora um pouco rocambolesca, em que surge a tese de que a humanidade teria origem alienígena e fruto de uma experiência. Adeptos de teorias da conspiração e ufologia deverão gostar.

A noveleta seguinte também lida com experiências de manipulações culturais. Em “Um Amigo para o Homem” (“A Friend to Man”), primeiro vista na edição de março de 1954 de Universe Science Fiction, dois casais vivem no interior de uma cúpula em Ganimedes. Fazem parte de uma experiência para verificar como se dá a rotina e os possíveis efeitos psicológicos de viver em isolamento num ambiente alienígena. Eles têm todo o conforto material, mas, aos poucos, passam a sofrer efeitos psicológicos. Dizem ter visões de efeitos naturais da Terra, tornam-se deprimidos uns, paranoicos outros. E a ansiedade só aumenta por saberem que passarão muito tempo antes de chegar uma nave da Terra para levá-los de volta. Até que, recebem uma visita inesperada de um viajante espacial. Mas até que ponto é verdade ou não passa de imaginação?

A novela seguinte seja, talvez, a mais controversa em termos de interferência e mudança no destino de pessoas. “Trabalho de Campo” (“Field Expedient”), foi primeiro publicada em janeiro de 1955 de Astounding Science Fiction. No século XXII a Terra vive, finalmente, sob um governo mundial. E, de certa forma, a utopia hegeliana do ´fim da História´, tal qual atualizada por Francis Fukuyama em 1989, se tornou realidade. O mundo inteiro se ocidentalizou. Com o mesmo governo e sistema econômico. Além de mesmos padrões culturais. Mas esta estabilidade trouxe certa acomodação em algumas áreas, como por exemplo, o abandono da exploração do espaço. Neste contexto, um velho multibilionário excêntrico resolve financiar um projeto secreto de colonização de uma nova sociedade em Vênus. Muito questionável, porém, já que tal sociedade é composta por crianças, cedidas pelos pais a uma certa Fundação. Não sem certa pressão psicológica e omissão dos poderes públicos. Mas qual será o resultado do intento: Que tipo de sociedade emergirá? Conseguirá tirar a Terra de sua decadência? Embora interessante, é uma história inverossímil e que poderia ser melhor desenvolvida.

“A Formiga e o Olho” (“The Ant and Eye”), apareceu primeiro em outra edição de Astounding Science Fiction, abril de 1953. Aqui o tema é assumidamente político e, digamos, menos culturalista. Mas o que chama a atenção é a maneira estranha como é contada. Não do ponto de vista do estilo, por sinal, sempre limpo e agradável, mas pelo tom de conspiração. Muito questionável ou não bem desenvolvido no argumento. Em 2034, um antropólogo que faz pesquisas em Meran, um planeta que orbita a estrela de Procion, recebe um chamado urgente para voltar à Terra. Robert Quinton trabalha para uma agência da ONU, oficialmente voltada ao comércio internacional e interestelar. Mas que tem uma atividade secreta que estuda, com computação estatística, possíveis cenários de crises para a humanidade. Quinton deverá liderar uma missão para arruinar a carreira política de um certo Donald Weston. Isso porque, segundo o resultado de um relatório elaborado por supercomputadores com 90% de risco de acerto, este homem poderá levar à extinção da humanidade. Não é dito como, mas se intui que se tornaria presidente dos Estados Unidos e provocaria uma guerra nuclear. Mas com que direito uma agência pública, pra começar oculta, toma decisões sobre atividades políticas legitimadas eleitoralmente? Além disso, devemos seguir inquestionavelmente decisões tomadas por máquinas? É certo que se o risco for tão grave, algo deve ser feito, mas resta saber como, de maneira a não conspurcar decisões coletivas de base democrática. De fato, uma questão difícil, em outra história em que o tema da manipulação se faz presente.

Assim como em “O Primeiro nas Estrelas” (“First to the Stars”), a história mais antiga do livro, publicada em julho de 1952 em Astounding Science Fiction, com o título de “Stardust”. É uma novela empolgante sobre uma nave de gerações, dada como perdida a 200 anos e aparentemente sem vida a bordo, que é reencontrada por uma nave estelar. As ações das duas naves se alternam e os da Viking, a nave descoberta, só vão se tornando clara aos poucos, deixando uma sensação de estranhamento efetiva no leitor. Isso porque, após a nave ter sofrido um acidente e perder o rumo de seu destino, vaga sem rumo habitada por sobreviventes, descendentes dos tripulantes originais. Não há luz, em boa parte não há gravidade artificial, e a comida é racionada. Vive-se, assim, num ambiente perigoso e sem comando definido, com comunidades lutando entre si, quase como numa guerra. Assim, quando os tripulantes da Wilson Langford a descobrem, enviam uma missão para, primeiro descobrir se há vida, e em caso positivo o que fazer com ela? Resgatar os tripulantes da nave avariada, trazendo, com isso, um problema de desorientação cultural, já que eles jamais viveram outra realidade que a de um vaso espacial sem luz? Ou, deve-se tentar consertar a nave para que possa retomar seu destino original, de estabelecer uma colônia num planeta semelhante à Terra, que orbita a estrela de Capella, a 42 anos-luz de nosso planeta? É a melhor história do livro, excelente exemplar no tema dos problemas que podem surgir numa viagem espacial.

“Didn´t He Ramble” é o título de uma canção de Louis Armstrong, que concluí a coletânea. Foi publicada originalmente em abril de 1957 de The Magazine of Fantasy and Science Fiction. Um outro multibilionário idoso e entediado contrata o serviço de uma empresa que simula realidades artificiais. Theodore Pearsall deixa sua esposa e sua fortuna na Terra, e parte para viver seu sonho final num pequeno asteroide, transformado na Nova Orleans do início do século XX. Isso porque, Pearsall é uma grande fã de jazz e deseja ver e sentir como surgiram alguns dos seus ídolos como, por exemplo, Armstrong. É uma história bonita e melancólica, que destoa do contexto mais ativo e algo otimista das anteriores.

Fronteiras da Eternidade apareceu numa coleção de FC da editora Expressão e Cultura, sob a organização do célebre fã e editor José Sanz (1915-1987), que marcou a cena cultural brasileira nos anos 1960 e 1970, e nota-se o capricho da tradução, o cuidado com as referências bibliográficas, a bela capa – veja acima –, enfim, a diferença quando estamos diante de um livro publicado por alguém que amou o gênero. Não sei se Chad Oliver chegou a receber um exemplar – é bem possível que sim – e, se for o caso, deve ter gostado. Outros livros do autor foram publicados no Brasil, três romances: Os Senhores do Sonho (Unearthly Neighbors; 1960) (Edições GRD, 1964) e mais dois sob os cuidados de Sanz: No Limiar de Novos Mundos (The Shores of Another Sea; 1971) (Expressão e Cultura, 1971) e Vultos sobre o Sol (Shadows in the Sun; 1954) (Expressão e Cultura, 1974). Assim, para os poucos interessados em descobrir um novo autor, entre os muitos talentos esquecidos da FC, vale a pena conhecer este.  E em especial Fronteiras da Eternidade, pois é muito representativa não só da primeira fase de Oliver na FC, mas de suas contribuições pioneiras ao gênero. Pois explora de forma instigante as relações sobre alteridade, reconhecimento e relativismo cultural, tão caros a um gênero especulativo como a FC, e que tem se tornado cada vez mais relevantes neste século XXI.

 

Marcello Simão Branco