sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Na eternidade sempre é domingo, Santiago Santos

Na eternidade sempre é domingo, Santiago Santos, 144 páginas. Ilustrações de Jean Fhilippe. Editora Carlini & Caniato, Cuiabá, 2016.

O escritor matogrossense Santiago Santos apareceu há poucos anos nas redes sociais com um trabalho a conta gotas apoiado em minicontos surpreendentes, mas logo chamou a atenção por suas tramas envolventes e bizarras. Essas pequenas narrativas, que podem ser vistas no blogue Flash Fiction, revelam um autor maduro e repleto de recursos, que não se embaraça seja no mainstream, seja nos gêneros, que desenvolve sem padrões e protocolos. Cada texto é uma experiência diferente e, muitas vezes, depois dos poucos minutos dedicado à degustação do mesmo, o leitor fica com a vontade de mais.
Na eternidade sempre é domingo vem atender ao desejo desses leitores. Trata-se do que, na tradição anglófona, se convencionou chamar de fix-up, um romance construído a partir de narrativas menores independentes entre si mas que, quando reunidas assim, formam um todo coerente. Os vinte pequenos contos publicados neste livro parecem prometer satisfazer o anseio do leitor, mas, no fim das contas, fiquei querendo mais do mesmo jeito.
O romance, o primeiro do autor, é um relato de um mochilão pelos Andes peruano e boliviano, viagem que Santiago realmente empreendeu em 2014. No primeiro conto, ainda no Brasil, o autor é confrontado por uma entidade mágica que se apresenta como Nipi, um espírito ancestral que, a cada trecho da viagem, revela os segredos fantásticos que diversos personagens escondem em sua aparência cotidiana. Assim, uma senhora insuspeita se revela uma antiga modelista da corte incaica, dois meninos de rua são os filhos imortais de Atahuallpa e Huáscar, e até animais domésticos se elevam a categoria de semidivindades. Todo isso para que a história e a cultura andinas sejam levadas ao mundo e nunca esquecidas.
A jornada nos leva a Cusco, La Paz e diversos vilarejos e pontos turísticos da região, como o Lago Titicaca e Machu-Picchu, com descrições vívidas de suas paisagens e costumes. Cada conto/capítulo é aberto por uma fotografia tirada pelo autor, que ilustra os personagens que irão ali se apresentar.
O autor revela ter feito uma longa e minuciosa pesquisa para escrever os relatos, de forma que a ficção se mistura à realidade e não sabemos exatamente onde termina uma e começa a outra. Para auxilar o entendimento dos muitos termos quíchua que dão título aos contos e surgem a todo tempo em meio à narrativa, há oportunas notas de rodapé e vários apêndices, que também dão aos contos uma sólida consistência histórica.
Mas o que isso tem a ver com nós, brasileiros, que aparentemente não somos em nada participantes dessa cultura? Em tempos de governo golpista que vira as costas para a América Latina, pode mesmo parecer inútil, mas nos faz pensar no porquê disso, que é uma questão que paira sem resposta desde os primeiros tempos do fandom brasileiro de fc&f. Por que não temos um intercâmbio com a produção dos nossos vizinhos? Por que não valorizamos a cultura do subcontinente no qual nos incluímos, desprezando até mesmo nossa própria tradição em favor de modelos de terras muito mais distantes e ainda mais incompreensíveis?
Santiago Santos mostra que é possível construir ficção relevante sem tributar às metrópoles e que a América Latina é um mistério ainda por ser descoberto pelos brasileiros. Porque, afinal, as fronteiras são apenas limitações políticas: a América Latina também está em nós.
A aventura termina como todas as peregrinações: numa última viagem de ônibus de volta para casa. Nipi se despede mas, por certo, continua a espera dos peregrinos, para mostrar outros segredos da rica magia andina.
O trabalho de Santiago Santos é muito expressivo e, não raro, contundente. Um autor a ser acompanhado com atenção.
Cesar Silva

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Revista Ficções


Ficções – Revista de Contos. Organização e edição de Dorva Rezende. Ano VIII, número 15, julho de 2006, 112 páginas. Rio de Janeiro: Editora Sete Letras, 2006.

De tempos em tempos a ficção científica brasileira deixa a sua tradicional invisibilidade. Ganha algum destaque na grande imprensa, por meio de uma ou outra editora que publica alguma obra relevante ou ainda em uma publicação especializada do mainstream, com uma crítica positiva ou um volume de contos. Pois este último caso é o desta bem-vinda edição da revista Ficções, da editora carioca Sete Letras, que dedicou um número inteiro sobre a ficção científica brasileira, no penúltimo número da revista. Descontinuada pouco depois como todas as da história do mercado editorial brasileiro, foi um acontecimento que surpreendeu não só a comunidade brasileira voltada ao gênero, como o próprio leitor que habitualmente comprava esta revista, ou seja, do mainstream. Com pouco ou nenhum conhecimento sobre a ficção científica escrita no Brasil.
Mas a edição é meritória não apenas por sua intenção. É principalmente pelo conteúdo do volume. É que o jornalista Dorva Rezende, organizou uma verdadeira antologia do gênero no país. E das melhores já montadas.
Ficções reúne sete dos mais representativos autores brasileiros da Segunda Onda (1982 a 2004), a maioria deles em momentos especialmente felizes de suas obras. Como em toda coleção de histórias curtas de autores diferentes, há narrativas melhores e outras piores. Mas chama a atenção a média elevada de trabalhos de boa qualidade. Talvez para isso tenha contribuído a quantidade pequena de histórias o que, em tese, diminui a possibilidade de mais irregularidade entre os trabalhos. Mas também é possível afirmar que o equilíbrio virtuoso seja consequência da boa escolha de autores, todos já com uma carreira com trabalhos profissionais publicados.
A revista abre com um bom artigo do próprio editor, discutindo as razões pelas quais o gênero praticado no país continua pouco considerado por boa parte da comunidade literária. Aponta uma invisibilidade que teima em se fazer aparecer e fornece alguns exemplos históricos de bons autores que o gênero já tem no país. Mesmo usando uma linguagem um pouco afetada, com uma verborragia excessiva em termos de referências eruditas – talvez devido ao público alvo preferencial do volume, ou seja, não leitores de ficção científica –, o texto é inteligente e serve para instigar a leitura dos contos a seguir.
O primeiro dos contos publicados é também o melhor da edição e provavelmente a melhor história brasileira de 2006. Estou me referindo ao texto “A propósito da difração quântica nas regiões periféricas da consciência”, de Braulio Tavares. É uma história surpreendente e sofisticada, que mostra como seria um ser humano com a visão de outros universos paralelos, embasados na concepção quântica do princípio da incerteza. A ideia básica é simples, mas provocadora: para existir é preciso ser visto. Como se nota, estamos diante de uma premissa fascinante e polêmica, pois abre outras maneiras de enxergar a realidade, relativizando-a, abrindo a mente e a postura para outras experiências não convencionais da vida.
O recurso do personagem estar sob efeito de uma droga, só acentua o possível nexo causal que pode existir entre o cérebro e as estruturas físicas que compõem a Natureza. Como se houvesse uma oportunidade de atravessar àquela ao qual estamos ‘presos’ em direção a concepções mentais e físicas outras. É Braulio Tavares novamente em um momento brilhante.
Na sequência vem “Um dia perfeito para um piquenique”, de Simone Saueressig. Uma boa escolha, pois a autora gaúcha é talentosa e mantém o nível do conto precedente. E também não deixa de ser uma surpresa agradável constatar que uma autora mais voltada à fantasia e ao horror, escreve uma história de ficção científica tradicional com competência.
Em uma missão brasileira em Marte, um astronauta descobre uma fenda no solo que dá em um túnel subterrâneo. Em sua missão ele está à procura do Porto 31 que, acredita-se, seja uma estrutura metálica sob a superfície. De fato, ela se confirma. Mas o astronauta jamais poderia imaginar que era sua própria nave há milhares de anos. Embora seja possível descobrir o rumo da história no início, a autora narra com segurança, mantendo o suspense e o interesse em sabermos o que acontecerá com o desafortunado astronauta. 
A terceira história é de Jorge Luiz Calife, o autor símbolo da ficção científica hard brasileira. O seu “Mergulho nas Bahamas” apresenta Patrícia, uma jovem fotógrafa da vida selvagem. Ela está em missão nas águas do Caribe, quando é surpreendida por uma lula gigante. O animal a leva para a escuridão do fundo do oceano. E ela desperta a 680 anos-luz da Terra, em um planeta oceânico, mantido como um zoológico de espécies marítimas raras por uma civilização extraterrestre. Pois ela foi confundida com uma sereia, que os alienígenas julgam existir, seguindo as lendas terrestres que encontraram.
Obviamente um engano e Patrícia procura se utilizar da crença alienígena para tentar voltar à Terra. A maneira como ela os convence pode parecer pouco crível, mas é divertido e faz sentido, pois se os aliens acreditam mesmo que ela seja uma sereia, nada mais lógico que continuassem ingenuamente em seu engano. O conto é uma variação das lendas sobre os misteriosos desaparecimentos nesta região do planeta, narrado com desprendimento e segurança, com as conhecidas belas imagens da natureza, uma marca do autor. Uma história bem-vinda, pois foge da mesmice de seu universo ficcional de “Padrões de Contato”, mostrando que o autor pode escrever contos interessantes como este. Por fim, é de se perguntar por que esta história não foi publicada na sua coletânea As Sereias do Espaço (2001). Teria sido uma das melhores do livro. A não ser que tenha sido escrita mais recentemente.
“Bárbaros nos portões” é a contribuição de Gerson Lodi-Ribeiro à antologia. Como já é comum em sua obra, esta é mais uma história de especulação política sobre o futuro próximo do Brasil. Em 2043 o contexto internacional vive uma nova Guerra Fria, desta vez entre a Aliança Ocidental – liderada pelos Estados Unidos – e a União Sulina – que inclui o Brasil. Ao que parece o conflito não é mais Leste-Oeste, mas Norte-Sul.
São construídas cidadelas subterrâneas para abrigar as autoridades no caso de uma guerra nuclear. Floresta é uma delas, próxima a Brasília. Na iminência da guerra, os políticos e militares correm para os portões da cidadela. Só que os residentes, cientistas em sua maioria, não deixam que os ‘bárbaros’ entrem. Isso porque parte da população fixa teria de ser retirada para dar lugar às autoridades. A guerra ocorre e Floresta torna-se líder no mundo, entre as poucas que sobrevivem. A história é interessante, mas a parte final diminui o impacto, quando o autor resolve explicar o que veio depois do conflito. Sai a narrativa e entra o documento. Perde uma força dramática bem conseguida até então.
Questionável também o argumento de considerar os políticos como bárbaros e corruptos e os cientistas como virtuosos e idealistas. Será que é um desabafo com os escândalos recentes na política brasileira? Ademais, como é que as cidadelas não estavam preparadas para receber as autoridades, na eventualidade de um conflito?
Sobre a dicotomia em si, ela não faz sentido em um Estado que, pelo que é sugerido, é democrático. No fundo, os bárbaros são os que impedem a entrada dos governantes, representantes do povo. Impedidos de entrar em uma instituição que é pública e não dos que nela residem. Um autêntico golpe de Estado!
O texto é curioso também pelas referências a personalidades do fandom por meio de personagens, como Silvio Gonçalves (tradutor), Fábio Fernandes (escritor) e um certo general Souza Castro, uma referência indireta ao escritor Roberto de Sousa Causo.
E é exatamente de Causo a próxima história. Coincidência ou não, outra história de futuro próximo com o Brasil em guerra. “Brasa 2000” foi primeiramente publicada no fanzine Somnium no. 79, mas esta nova versão é modificada. O conflito é com a Argentina. São Paulo é severamente bombardeada, sobrando pouco mais do que ruínas do Centro da cidade. O drama enfoca o soldado Exequiel, único sobrevivente de seu grupo. Ele tenta se desvencilhar de drones altamente sensíveis e mortíferos, quando encontra um velho civil ferido em escombros. Procura ajudá-lo e uma curta e estranha relação ocorre entre os dois, sem que o soldado compreenda o significado. O velho fala por parábolas existencialistas. Demais para um soldado, ou qualquer pessoa numa situação vital, que quer apenas sobreviver.
Causo imprime uma boa dramaticidade, além de – como já lhe é habitual –, narrar de maneira convincente os detalhes das batalhas, mesmo sem perder o cacoete – ainda mais recorrente – , de descrever com detalhes os armamentos e como funcionam. Se no conjunto é um bom conto, principalmente por causa da sensação iminente de morte dos personagens, por outro soa incompleto. Como se fosse o fragmento intenso de uma história maior, o que deixa uma sensação de certo desconforto ao final. De uma narrativa que poderia render mais.
A próxima história é de Carlos Orsi Martinho, com o seu “O Colosso de Bering”. Um sujeito morre e vai parar em outro universo, no fim do século XIX bem no meio de uma guerra entre russos e japoneses. É verdade que esta guerra existiu em nosso universo. A diferença é que são estes dois países as potências dominantes da época. Pois da mesma forma que lá foi parar ele retorna ao que acredita ser o ‘seu’ mundo. Procura um amigo, que se tornou escritor de mistérios para lhe ajudar a decifrar o seu próprio.
Resumido desta forma, talvez o leitor não ache muito interessante. Mas o que vale é ler a história, contada com bom ritmo e um suspense intrigante. Um conto que prende a leitura até o desfecho que, por sinal, ainda consegue ser provocador.
A última história é de Fábio Fernandes. Para exemplificar, permitam-me uma indiscrição. Na dedicatória que o autor escreveu ao meu exemplar ele afirma que “Às vezes escrevo hoje em dia, mas quando escrevo é ficção científica”. Parece que de lá para cá a situação não mudou.
“Charlotte Sometimes” não é um conto facilmente digerível – o que, aliás, é comum no autor –, mas é sutil em suas consequências. Explicá-lo é um pouco difícil, pois perde-se as suas nuances e seu jogo de aparências, sempre volvendo, como se no próximo parágrafo uma nova e diferente sentença se apresentasse. Toda esta estrutura subjetiva se dá na experiência onírica de um sujeito que não sabe mais o limite entre o sonho e a realidade. Até ser confrontado com duas descobertas: Sua finitude e sua vivência através de alguém que lhe perdeu.
Após os contos ainda há um bônus, com uma boa entrevista com Braulio Tavares, realizada por Dorva Rezende e Manoel Ricardo de Lima. Ele fala sobre as razões de não mais escrever ficção – na época –, das dificuldades do gênero crescer no Brasil, de Guimarães Rosa e Jorge Luís Borges, além de citar algumas obras da ficção científica brasileira que considera dignas de serem conhecidas.
Esta edição número 15 da revista Ficções merece alguns reparos, contudo, pois faltou uma boa revisão, além do fato das biografias da maioria dos autores estarem com dados incorretos. É curioso também que esta revista tenha uma distribuição precária, encontrada para compra apenas na própria editora (!), conforme me revelou uma de suas publishers. É irônico que uma publicação que visa a divulgar a ficção científica brasileira seja ela também de acesso difícil.
Mas estes problemas são laterais. O principal é que os leitores do mainstream e do próprio gênero que conseguirem comprar a edição serão brindados com um momento feliz da ficção científica brasileira. Isso não é pouca coisa, principalmente para a comunidade que se dedica ao gênero, pois sugere boas perspectivas para seu reconhecimento no país.

Marcello Simão Branco