sexta-feira, 26 de março de 2021

Viajantes no Tempo

Viajantes no Tempo (Voyagers in Time), Robert Silverberg, org. Capa de Luís Campos. Tradução de Eduardo Saló. 193 páginas. Portugal, Alfragide (Damaia): Editorial Panorama, Coleção Antecipação/Antologia no. 2, sem data. Lançamento original em 1967.

Durante alguns anos esta foi, provavelmente, a mais importante antologia de contos sobre viagem no tempo publicada em língua portuguesa. Embora o tema seja dos mais populares no gênero, não foram muitos os volumes de contos publicados no Brasil e em Portugal especificamente sobre o assunto. Em 2016 saiu em nosso país pela Editora Jangada As Melhores Histórias de Viagens no Tempo: Os Contos dos Autores Mais Consagrados da Ficção Científica, organizada por Harry Turtledove e Martin H. Greenberg – ver a resenha aqui. O livro, portentoso em tamanho e variadade temática, buscou realizar uma síntese do que de melhor o subgênero publicou no século XX. Mas, a despeito de ser realmente representativa, curiosamente, não incluiu nenhum dos contos publicados na precursora Viajantes no Tempo.

Em princípio isso poderia sugerir que esta antologia não seja tão boa assim. Mas não. Estamos diante de uma seleta de histórias excepcional e, na média, com qualidade superior à antologia mais recente. Talvez questões como preferências dos organizadores ou dificuldadades de negociação de direitos autorais podem explicar a discrepância.

Viajantes no Tempo foi organizado por Robert Silverberg que, além de ser um dos grandes autores do gênero, é também um reconhecido antologista e colaborador importante no subgênero, tanto em romances como, por exemplo, “Estação dos Exilados” (“Hawksbill Station”) (1967) – primeiro publicado como novela também em 1967 –, como nas duas histórias publicadas em ambas as antologias. Nesta com “Absolutamente Inflexível” (“Absolutely Inflexible”) (1956) e na outra com “Rumo a Bizâncio” (“Sailing to Byzantium”) (1985).

Silverberg escolheu onze histórias entre as décadas de 1930 e 1960 e para concluir o livro um excerto dos dois capítulos finais do clássico A Máquina do Tempo (The Time Machine) (1895), de H. G. Wells (1866-1946), quando o viajante do tempo acelera a máquina em direção a um futuro longinquo, num dos momentos mais inspirados de toda a ficção científica. Puro sense of wonder.

Mas a história que abre a antologia também é das melhores. Trata-se de “As Areias do Tempo” (“The Sands of Time”) (1937), de P. Schuyler Miller (1912-1974), um autor muito promissor, mas que terminou por se destacar como crítico do gênero nos anos 1950 e 1960. Um físico mostra a um paleontólogo provas de que viajou 60 milhões de anos, no período Cretácio, e esteve com dinossauros. Cético a princípio, o paleontólogo descobre que Donovan, o físico, tem uma máquina do tempo – em forma de ovo – e pretende voltar novamente. Mas desta viagem acontecimentos fantásticos surgem. Donovan encontra seres humanoides, provavelmente de outro planeta, altamente avançados mas que, devido ao fato dele se recusar a se juntar a eles e se afeiçoar à mulher do grupo, passa a ser perseguido com ela. Só um pode embarcar na máquina, estabelecendo um dilema de difícil solução. É uma novela de extraordinária inventividade e força narrativa, com muitos detalhes sobre os dinossauros e os humanoides que encontra num passado remotíssimo. De certa forma lembra o romance A Descronização de Sam Magruder (The Dechronization of Sam Magruder, Science Fiction Roman), do palentólogo George G. Simpson (1902-1984) – embora menos fatalista – e está entre as melhores histórias de viagem no tempo envolvendo dinossauros.

O próximo conto já entrega o tema no título: “Encontro Consigo Próprio” (“… And It Comes Out Here”) (1950), de Lester del Rey (1915-1993). Há uma exploração minuciosa sobre o paradoxo do viajante no tempo que volta ao passado e encontra com seu eu 30 anos mais jovem, para depois voltar ao futuro e de novo ao passado. Como questiona o próprio personagem: “Quem construiu a máquina do tempo?”. Seu eu do passado ou o que veio do futuro? Conto interessante, bem no espírito da Golden Age, de priorizar a ação e o conceito, ao invés de um possível drama existencial sobre a condição do personagem.

De certa forma esta abordagem mais intimista está presente em “Projeto Brooklyn” (“Brooklyn Project”) (1948), de William Tenn (1920-2010). Numa época indefinida um experimento ultra-secreto de um governo envia, ao mesmo tempo, uma esfera metálica ao passado e outra ao futuro. Após uma primeira tentativa descobriu-se que a Terceira Lei de Newton (para a massa em movimento) também se aplica à viagem no tempo. Ou seja, ao enviar algo, por exemplo, ao passado, o local da experiência é arremessado a um futuro equivalente! Agora, os cientistas, ao que parece, organizaram a experiência – com fins militares – para evitar possíveis danos e efeitos inesperados. Estipulam que as esferas viajarão em 25 períodos do passado e seus respectivos futuros. Contudo, a cada retorno das esferas a realidade do presente é modificada, inclusive na constituição física e orgânica dos cientistas e jornalistas presentes! Ótimo conto, em que o autor explora mais uma vertente possível dos eventuais efeitos minúsculos que a presença de matéria em outras épocas poderia desencadear, modificando radicalmente o presente. E, ainda por cima, com uma boa dose de humor, que lhe é característico, tornando a narrativa ainda mais saborosa.

A história a seguir é uma das que mais estranhei a ausência na antologia citada acima, que se propõe a ser um cânone do subgênero, pois é das mais antologizadas. E ao contrário do que sugere o título “Os Assassinos de Maomé” (“The Men who Murdered Mohammed”) (1964), de Alfred Bester (1913-1987), não estamos diante de eventuais modificações na História em consequência da morte do criador do islamismo. Ele é apenas um dentre outros personagens históricos que são mortos para aplacar a fúria de um cientista ao ver sua esposa nos braços de outro homem. Isso porque ao matar inicialmente o avô da mulher, ele constata que nada mudou. Ela continua aos beijos com seu amante. Desesperado, procede então aos assassinatos de figuras conhecidas da História.

Em tom jocoso e irônico, Bester especula que cada indivíduo tem sua própria história particular, não adiantando interferir na linha temporal, em tese, comum a todos. De certo modo é como se cada ser vivente habitasse num espaço-tempo próprio, um universo só seu, mas que compartilharia as diversas experiências particulares com outros indivíduos. Que ideia desconcertante! Imagine se for possível uma realidade como esta. E em certo sentido não sabemos pois, afinal, ninguém voltou no tempo e nos contou como foi.

Já a próxima história aborda o tema da criogenia e é curioso, pois não estamos diante de uma história de viagem no tempo convencional, mas de um renascimento num futuro indefinido. É o que nos conta Poul Anderson (1926-2001) em “O Tempo Cura” (“Time Heals”) (1949). O período para despertar é quando a medicina tenha evoluído para a cura da doença, no caso o câncer. Em seus estágio finais da enfermidade Hart se submete à experiência. Entra num casulo hermeticamente fechado, é congelado e quase instantâneamente desperta. É informado pelo médico do futuro que está no ano 2941, novecentos anos à frente! Mas seu entusiamo aos poucos é desestimulado. Sim, é curado, mas após passar por uma série de exames e testes psicológicos, ele percebe que a sociedade desta época não sabe como integrá-lo socialmente. Não há mais liberdade individual, o controle é a norma. Vem menos do Estado – que formalmente não existe mais – mas do conceito de grupos sociais com as mesmas afinidades e aptidões. Tudo gira em torno do pertencimento a grupos que são quase auto-suficientes, pois não há mais família e formas de expressar a iniciativa e a consciência própria. Hart teve curada a sua doença orgânica, mas não tendo mais como se adaptar a um novo mundo, percebeu que, talvez, seu sonho tenha sido uma quimera. Excelente história de FC, em que o tom de crítica social sobre a identidade e as diferenças de valores chega a questionar até o nosso limite para que continuemos a nos considerar humanos.

Larry Niven é o autor da próxima história “Rua de Sentido Único” (“Wrong-Way Street”) (1965). Em 1985 foi descoberta uma base alienígena na Lua, permitindo a colonização. Atuando em pesquisas por lá, o físico Myke Capoferri aciona de forma acidental uma máquina e some, para descobrir que voltou ao passado. É um conto de teor fatalista, pois o personagem não sabe como voltar, já que não conhece como o artefato funciona. Mas a história ainda reserva uma revelação sobre os alienígenas. De certa forma, houve uma certa indefinição sobre o eixo principal, se é a viagem no tempo ou a civilização extraterrestre, o que enfraqueceu o conto.

A história seginte ocorre num contexto político bastante sombrio. É “Fluxo” (“Flux”) (1963), de Michael Moorcock. Num futuro próximo a Europa enfrenta uma crise econômica grave em decorrência da superpopulação. Um cientista é, então, enviado numa máquina do tempo para dez anos à frente, com o objetivo de trazer respostas ao problema que ameaça o Velho Mundo numa guerra civil. Ao chegar ao seu destino Max File encontra o continente sob as ruínas de uma guerra que queria evitar. Ao tentar regressar, o aparelho aparentemente acelera, pois File vai encontrar a Terra habitada por lagartos falantes e uma atmosfera tóxica. Contudo, não era bem isso, pois o tempo não segue um fluxo contínuo, mas sim aleatório, com vários caminhos e realidades possíveis. É uma ótima história, que dialoga com a de Alfred Bester, e talvez pudesse render mais se desenvolvida no tamanho de um romance, tais são as possibilidades abertas com premissa tão perturbadora.

Na sequência vem o conto “Alarme na Bolsa” (“Dominoes”) (1953), de Cyril M. Kornbluth (1923-1958). Um dos maiores financistas de Nova York encomenda a um cientista a construção de uma máquina do tempo. Não pretende subsidiar o conhecimento científico, tem um interesse puramente financeiro. Will Born, então, viaja dois anos no futuro para conhecer que ações estariam mais valorizadas e lucrar com isso em sua época. Mas os efeitos se revelam surpreendentes para os seus lucros e os negócios de toda a bolsa de valores. É um conto bem narrado sobre a velha máxima: “cuidado com o que você deseja, pois você pode conseguir”. Mas no caso em questão, os resultados não são compensadores.

O que de certa forma também ocorre com os resultados da experiência revelada no conto “Boletim do Conselho de Administração do Instituto de Pesquisas Avançadas, em Marmouth, Massachusets” (“A Bulletin from the Trustees of the Institute for the Advanced Research at Marmouth, Mass.”) (1964), de Wilma Shore (1913-2006). O conto se refere a uma gravação achada nos arquivos de um instituto de pesquisa, com uma entrevista realizada por um dos seus cientistas – recentemente falecido – com um homem do futuro. Então, por meio dela, os demais pesquisadores ficam a saber da experiência. Mas, assim como o Dr. Gerber – o cientista que fez a pesquisa – pouco se descobre sobre o futuro em 2061, porque o viajante trazido ao passado mostra-se estranhamente evasivo e alheio sobre as perguntas a respeito dos mais diferentes assuntos de sua época.

Depois destas histórias mais curiosas do que propriamente instigantes, o nível volta a subir com o conto “O Repouso do Viajante” (“Traveler´s Rest’), de David I. Masson (1915-2007). Um planeta vive sob uma guerra intensa há muitos anos. O soldado H é ferido numa batalha e recebe baixa. Recomeça a vida como civil, casa, tem filhos, abre um pequeno negócio bem-sucedido mas, anos depois, é reconvocado. Contado assim não sugere uma história de viagem no tempo, mas o caso é que o planeta existe com faixas variadas de tempo, de acordo com a latitude. Pode-se ir ou voltar, sentir contagens de tempo diferentes, mas, ao que parece, o caos é, de alguma forma, sublimado por causa da intensidade da guerra. Como o próprio protagonista vai intuir após voltar ao serviço ativo nem se sabe ao certo quem é o inimigo. Será mesmo que existe um? O conto tem muitas sutilezas – entre elas, a mudança do nome do personagem a cada mudança no curso do tempo –, que só lendo com atenção se apreende. Uma história notável, não por acaso incluída também na antologia World´s Best Science Fiction 1966, editada por Terry Carr e Donald A. Wolheim.

Robert Silverberg, o organizador do livro, comparece com “Absolutamente Inflexível” (“Absolutely Inflexible”) (1956). Eu já havia resenhado este conto quando escrevi o livro Os Mundos Abertos de Robert Silverberg (Edições Hiperespaço, 2004), e nesta nova leitura minha impressão não difere da primeira experiência. Assim sendo, reproduzo aqui o que escrevi na época.

No século XVIII os viajantes que sempre vem do passado são detidos e enviados para uma prisão perpétua na Lua. E a razão é que eles podem contaminar a população desta época, visto que há 200 anos todas as doenças acabaram eliminando a imunidade das pessoas. A narrativa se centra em Mahler, a figura responsável por encaminhar os viajantes. Até que aparece um deles que diz ter viajado numa máquina bidirecional, que viaja para o o futuro e o passado. A máquina fica em mãos de Mahler que resolve comprovar a veracidade do artefato. É o tipo de conto com boa premissa, mas que logo é percebida por um leitor mais atento, que advinha o que acontecerá com a história. Isso enfraquece o efeito, ainda que o desfecho seja dos mais instigantes.

Viajantes no Tempo foi o segundo volume publicado numa coleção voltada apenas a antologias, que a Editorial Panorama procurou publicar em paralelo com a coleção tradicional, Antecipação – esta com 67 edições. O número um foi Terrestres e Estranhos (Earthmen and Strangers), originalmente organizada também por Robert Silverberg, mas acrescida de contos de autores portugueses sob a organização de Lima Rodrigues, uma terceira, Obras-Primas da Ficção Científica (Masterpieces of Science Fition) organizada em dois volumes por Sam Moskowitz.1

Após a leitura destas histórias fica claro que o tema da viagem no tempo é quase que inesgotável em suas possibilidades de comentário social e exploração dos seus paradoxos. Talvez seja por estas razões que o subgênero seja tão popular entre os leitores e dos mais praticados entre os escritores. E neste livro em particular a seleção das histórias deixa isso muito claro. Pode ser difícil de achar em sebos, mas se o leitor ficou interessado vale a pena procurar. Terá em mãos uma amostra de alta qualidade sobre um tema tão fascinante

Marcello Simão Branco

1 Segundo Caio Luiz Cardoso Sampaio em sua coluna “Colecionando”, do fanzine Somnium, no. 36, dezembro de 1988, teriam sido publicadas mais quatro edições, mas sem confirmação. Mesmo uma pesquisa na internet não solucionou a dúvida.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Degelo em 2157

Degelo em 2157 (La Peur Géante), Stefan Wul. Tradução de André Varga. Capa de Lima de Freitas. 155 páginas. Lisboa: Edição Livros do Brasil, Coleção Argonauta, no. 76, 1963. Lançado originalmente em 1957.


   Em 2157 um estranho fenômeno físico aparece. A água não congela mais a zero grau centígrado, mas cada vez a temperaturas mais negativas.

Bruno Daix, um engenheiro, é designado pelo chefe de uma empresa de refrigeradores em que trabalha, para ir até Paris investigar o caso com um eminente cientista. Mas este fenômeno foi apenas um prenúncio para a catástrofe que se seguiu. Toda a superfície da Terra foi invadida por maremotos gigantescos, provocados pelo derretimento súbito das calotas polares. Em especial o hemisfério norte ficou quase todo abaixo dos oceanos que subiram em ondas de quilômetros de altura.

Contudo, no século XXII, parte importante da afluência econômica se situa na África, principalmente do centro para o norte. É nesta região que se situa Afrança, um dos países mais poderosos, que é de onde Bruno Daix partiu, mais precisamente da capital In Salah.

No romance anterior de Wul, Missão em Sidar (Rayouns por Sidar) – resenhado aqui –, já havia sido mostrado que o personagem principal, Lorrain, também era um afrancês. E isso em 2023, quando a história acontece. Mas Wul não deu nenhuma explicação do que significava este prefixo junto à nacionalidade francesa. Pois bem. Afrança é a extensão do território francês pelo continente africano, tomando todo o Magreb e o Sahara, a partir da presença do país em sua colônia original, a Argélia. Wul sugere, então, que a presença imperialista francesa não apenas iria permanecer, mas se expandir, transformando a região numa das mais prósperas do planeta, em que triunfaria a francofonia. Assim, ao longo do livro, Wul expõe com detalhes este novo país de 500 milhões de habitantes, com cerca de dez vezes mais a população francesa dos anos 1950. Pelo exposto, portanto, Wul teria sido um defensor da manutenção da ocupação de seu país na Argélia, que tinha na época um vigoroso processo de resistência que, por fim, permitiu sua emancipação em 1962.

De volta a 2157 – aliás o título da Argonauta é bem melhor que o original, em português “medo gigante” –, em meio à catástrofe marítima Afrança se torna a nação que irá liderar um processo de recuperação econômica e militar, pois eis que surge no céu, logo após os tsunamis, dezenas de discos voadores ao redor do mundo.

Com isso, sai de cena a primeira hipótese de um colapso climático. A Terra teria sofrido uma invasão extraterrestre? Rapidamente se descobre que não, pois as naves vem, na verdade, do fundo dos mares. Sim, uma civilização aquática inteligente resolveu provocar a subida das águas para ocupar e dominar por inteiro o planeta, como reação radical à super exploração dos oceanos e redução dos habitats das espécies marinhas, pela caça, seca progressiva e poluição generalizada. De certa forma, há ecos do clássico A Guerra das Salamandras (War with the Newts) (1937), de Karel Capek.

Bruno Daix irá fazer parte dos esforços de reação militar – na condição de engenheiro e campeão de natação na juventude – adentrando num exército multinacional, que irá tentar revidar o ataque desfechado pelos torpedos, os seres aquáticos inteligentes, semelhantes às arraias.

Boa parte da história se move, então, nos preparativos para a reação bélica aos torpedos. Neste processo, alguns são capturados vivos e alguns linguistas são convocados para tentar decifrar alguma forma de comunicação com eles. Mas é Ki-Sien Tchei, a namorada de Daix, uma jornalista chinesa poliglota que descobrirá que os torpedos se comunicam por meio de impulsos magnéticos. Aqui é uma pena que o autor não desenvolveu mais a questão, pois não é feita nenhuma tentativa de diálogo com os seres.

Após o contato com os torpedos é mostrada uma cidade submarina, aos olhos de Bruno Daix, mas já com os torpedos mortos, pois a forma encontrada para derrotá-los não foi por meio de ações militares convencionais, mas sim pela criação de um vírus que foi inserido nas algas com as quais os inimigos se alimentavam.

Do conflito não se partiu para alguma forma de entendimento, ou troca de conhecimentos, uma perda para a humanidade e para a própria história, pois, como Wul mostra de forma superficial, os torpedos tinham uma tecnologia tão ou mais avançada que a espécie inteligente da superfície terrestre, com sua capacidade de mudar as características físicas da água, sua agricultura submarina cidades no fundo do mar e os próprios discos voadores. Mas a ênfase de Wul não se centrou nos detalhes de uma nova civilização, quase que tratando os torpedos como monstros marinhos.

De certa forma, esta opção mais superficial não surpreende, já que Wul se caracteriza por ser um escritor voltado essencialmente à imaginação e ao entretenimento. E, nesse sentido, sempre surpreende. Numa cena em que estão reunidos cientistas de todo o mundo para tentar entender o que são os torpedos, um deles diz que os colegas não deveriam estar tão surpresos porque há apenas alguns anos, haviam sido descobertos diplodocos nas florestas do Mato Grosso! Quando li isso, parei a leitura, pasmo com tal informação. Este é o Wul, que pode desconcertar o leitor a qualquer momento.

De qualquer forma há sim, embutida de forma indireta, uma crítica de Wul às consequências do estilo tecnológico e materialista, ao menos da sociedade ocidental, como já visto em livros anteriores como O Mundo dos Draags (Omns em Série) – resenha aqui – e Pré-História do Futuro (Niourk) – resenha aqui. No primeiro sobre a escravização dos humanos por uma espécie alienígena, e no segundo por causa de uma aniquilação nuclear. Em ambos, e também neste romance, a humanidade reage, como que para recuperar suas energias e valores vitais, que fizeram dela uma civilização, em algum momento, bem sucedida.

Degelo em 2157 é o quarto romance de Stefan Wul, o terceiro publicado na clássica coleção francesa de FC Fleuve Noir e o sexto a sair na coleção Argonauta, de Portugal. Ilustra mais um exemplo da prosa colorida e poderosa do mais pulp dos autores franceses e quicá, europeus, sem receio de apresentar ideias ousadas e desenvolvê-las com muita imaginação.

Marcello Simão Branco