segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Numa Noite Escura (One Dark Night, EUA, 1982)


Uma jovem estudante é obrigada a passar uma noite num mausoléu repleto de cadáveres que não querem ficar em seus caixões

Numa Noite Escura” (One Dark Night, 1982) é mais um daqueles filmes divertidos e claramente datados, associado aos anos 80 do século passado, com direção do então estreante Thomas McLoughlin, que alguns anos depois faria “Sexta-Feira 13 – Parte 6 – Jason Vive” (1986).
A estudante Julie Wells (Meg Tilly) aceita se submeter a um processo de iniciação numa irmandade escolar liderada por Carol Mason (Robin Evans), além de Kitty (Leslie Speights), que tem a mania de ficar mastigando uma escova de dente, e Leslie Winslow (Elizabeth Daily). O desafio é dormir uma noite inteira dentro de um enorme mausoléu num cemitério, cercada de dezenas de caixões armazenados em suas respectivas gavetas mortuárias, guardando cadáveres.
Porém, para agravar a situação que já é bizarra e sinistra, chega ao mausoléu um morto diferente. Ele foi o cientista Dr. Karl Raymarseivich, um estudioso da bioenergia, a força eletromagnética de todas as coisas vivas, e que após muitas experiências descobriu possuir poderes telecinéticos para movimentar objetos e pessoas à distância. Ele tornou-se obcecado no assunto e com técnicas de vampirismo psíquico, adquiriu um poder maligno, drenando a energia vital das pessoas e colecionando vítimas.
Uma vez o cadáver do cientista encarcerado no mausoléu, seus poderes de telecinese vem à tona e ele revive os mortos, que saem de seus caixões e vagueiam pelos corredores do lugar, ameaçando a vida da jovem Julie, em seu desafio de passar uma noite, e também das amigas que pretendiam assustá-la com brincadeiras. Para tentar resgatá-la, seu namorado Steve (David Mason Daniels) vai ao mausoléu, assim como a filha do cientista, Olivia McKenna (Melissa Newman), que tem poderes de premonição e foi ao encontro de Julie, entrando em confronto com seu pai, distorcido pela maldade.
O filme tem uma história facilmente classificada como ingênua e clichê, com pouco sangue e violência na maior parte de sua duração, ao mostrar de forma meio arrastada o desafio pessoal da estudante Julie em provar sua coragem às amigas, dormindo uma noite trancada num mausoléu cheio de mortos. Também cansa um pouco acompanharmos a história do cientista que estuda ocultismo e desenvolve poderes de telecinese, apresentada por um escritor de artigos sobre ocultismo, Samuel Dockstader (Donald Hotton).
Mas, a compensação pela espera do horror veio no ato final, onde os cadáveres em putrefação saem de seus repousos nos caixões e povoam os corredores do mausoléu, espalhando o caos para os vivos que por infortúnio estavam em seu caminho. E com o uso dos divertidos efeitos especiais da época, com bonecos toscos simulando cadáveres podres gosmentos, cheios de melecas pingando e com vermes caminhando nos órgãos internos, num trabalho de maquiagem que não apelava para a ajuda de programas de computadores que tornam tudo exageradamente falso. Um tempo onde não existia a artificialidade do CGI, característica do cinema moderno. É verdade que os efeitos bagaceiros dos mortos nos remetiam àqueles bonecos macabros dos trens fantasmas de parques de diversões, mas é inegável que justamente isso é que proporciona o entretenimento.    
Entre as várias curiosidades, o eterno Batman da série pastelão de TV dos anos 1960, Adam West, faz parte do elenco interpretando Allan McKenna, o marido de Olivia, a filha vidente do cientista do mal. Martin Nosseck fez uma rápida participação como o zelador do cemitério em seu único trabalho no cinema, e faleceu dois dias após as filmagens. Inicialmente, o filme iria se chamar “Rest in Peace” (“Descanse em Paz”). Tem uma cena onde estudantes jogam um vídeo game da época, e que hoje, passados mais de 35 anos, parece extremamente bizarro pela simplicidade.
(Juvenatrix – 26/02/18)

sábado, 24 de fevereiro de 2018

A Casca da Serpente

A Casca da Serpente, José J. Veiga. Capa: Felipe Taborda. 155 páginas. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989.

A Guerra de Canudos (1896-1897) foi um dos acontecimentos de maior repercussão na história brasileira. Nos primeiros anos do surgimento da República dos bacharéis e latifundiários foi criada uma comunidade popular no interior profundo do país. Cresceu em número, em torno de 25 mil pessoas, unidas na sua miséria e desprezo pelas autoridades, mas o que de fato incomodou foi o aspecto social e religioso do movimento. De caráter messiânico e politicamente regressista, defendia a volta da Monarquia e baseava suas atividades numa prática católica fundamentalista, e rejeitando tudo o que a República representava: laicismo e os costumes burgueses típicos do capitalismo. Assim, para a elite oligárquica era preciso fazer alguma coisa, pois ameaçava a autoridade da Igreja, os interesses econômicos e políticos dos coronéis do Nordeste, e a reputação do governo federal.
Canudos calou tão fundo na realidade brasileira que é, possivelmente, o acontecimento mais retratado na literatura. A começar pelo romance Os Jagunços (1898), de Afonso Arinos; Canudos: História em Versos (1898), de Manuel Pedro das Dores Bombinho; Descrição de uma Viagem a Canudos (1899), de Alvim Martins Gorcades, Libelo Republicano (189), de Wolsey; O Rei dos Jagunços (1899), de Manoel Benício; A Guerra de Canudos (1902), de Henrique Duque-Estrada Macedo Soares. E só então a obra máxima, Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha. Mas mesmo no exterior rendeu algumas obras, e pelo menos, um grande livro, A Guerra do Fim do Mundo (1980), do prêmio Nobel peruano Mario Vargas Llosa.
Mas todas estas obras têm em comum um forte tom realista, algumas com recorte jornalístico, documental, como que a retratar e dissecar o que foi a comunidade de Canudos e a reação extremamente violenta do governo brasileiro. Pois é justamente no contraponto deste contexto de um realismo, ora laudatório dos vencedores, ora defensor dos oprimidos, que José J. Veiga inova ao apresentar uma nova e surpreendente perspectiva.
Mas não através de sua característica mais conhecida: a de um mestre do fantástico. Aquele que se insinua de forma insuspeita no cotidiano e o transforma completamente através de eventos inusitados, improváveis, absurdistas. Se Veiga usa este recurso para, na verdade, construir uma metáfora do autoritarismo político e desigualdade social no Brasil – como pode ser visto em seus clássicos A Hora dos Ruminantes (1966) e Sombra dos Reis Barbudos (1972) –, em A Casca da Serpente esta verve política permanece, mas sem o elemento fantástico. Mas onde esta a inovação então?
Na sua história de Canudos Veiga envereda pela seara da história alternativa. A premissa é fascinante: o que teria acontecido se o líder Antônio Conselheiro (1830-1897) não tivesse morrido? Se pensarmos bem, até que não era uma grande impossibilidade. Ele poderia ter sido protegido das seguidas investidas do Exército e até um corpo ter sido usado para se fazer passar por ele, e enganar as autoridades. Como sabemos isso não ocorreu e, de fato, ele pereceu. Mas Veiga nos conta como Conselheiro sobreviveu e, mais importante, o que sucedeu a partir daí.
O romance começa nos momentos finais do conflito, quando a quarta expedição do Exército finalmente destrói os insurgentes, depois de sofrer três derrotas humilhantes. Todas as construções foram queimadas e milhares de combatentes mortos de ambos os lados. Os poucos sobreviventes enganam os soldados mostrando um corpo que seria o de Conselheiro. Dá certo, o corpo é levado, degolado e a cabeça exibida como um troféu nas capitais nordestinas. Mas o verdadeiro líder sobrevive, para sua própria surpresa, pois nada havia sido programado.
Antonio Vicente Mendes Maciel, o líder apelidado de Conselheiro, exerceu um profundo carisma junto aos desesperançados do sertão nordestino, assolados pela miséria extrema, a seca, a falta de terra para o cultivo e o desprezo dos governos e da Igreja católica, sempre tão próxima dos poderosos de ocasião. Conselheiro liderou por organizar uma comunidade em torno de valores católicos rígidos, trabalho coletivo e a esperança de salvação num mundo melhor.
Depois da destruição de Canudos os poucos sobreviventes fogem para uma região montanhosa, a fictícia Itatimundé. No início hesitantes sobre o que fazer, se irmanaram na presença carismática de Conselheiro. Pois eles não só se mantiveram unidos como, aos poucos, outros humildes foram chegando. Mas alguma coisa estava diferente. O líder não era mais o mesmo, embora continuasse a receber um respeito quase temeroso por parte do povo.
Conselheiro considerou a sua sobrevivência uma espécie de milagre, e a chance de recomeçar uma vida nova. Não que se arrependesse da experiência de Canudos, mas achava que se ela fora derrotada pelo reino do demônio (a República), era porque Deus não havia visto nela a perfeição que se acreditava.
O líder muda, e reduz as orações constantes, o tratamento reverente, suas vestimentas e até o seu nome. Volta ao seu nome de batismo, admitindo ser chamado apenas de Tio Antonio. De início desconcertados, aos poucos seus seguidores aprendem a viver com este líder mais humilde e parceiro nas tarefas e decisões. Esta nova comunidade, rebatizada de Conferência de Itatimundé, baseou-se em outros princípios e valores, mais igualitários e mesmo anárquicos, embora sempre tendo como referência moral a figura de Conselheiro.
Ainda que não de maneira proposital o fato é que este novo contexto atraiu a presença de figuras diferentes dos desvalidos de então. Visitantes estrangeiros, como os irmãos irlandeses, que permaneceram na nova comunidade e ajudaram-na a se desenvolver; um fotógrafo de prestígio que havia chegado tarde para fotografar a guerra de Canudos; uma cantora chamada Chiquinha, referência à pianista e compositora Chiquinha Gonzaga (1847-1935); um intelectual estrangeiro que, aos poucos, incute em Conselheiro sólidas ideias de teor anarquista, mudando completamente a feição de uma comunidade nascida anteriormente pelo messianismo e fanatismo cristão.
Veiga imagina, assim, a possibilidade de se construir uma comunidade livre no grotão mais miserável do país, com uma nova forma se sociabilidade, marcada pela organização coletiva descentralizada, democratização nas decisões e abolição de hierarquias e autoridades. Sem dúvida, seria um experimento surpreendente e interessante, libertando também o povo miserável da esperança no porvir para construir um mundo viável e justo em nossa própria realidade.
Em termos de enredo, contudo, A Casca da Serpente, carece de dramaticidade, ou mesmo de problematização da nova ordem estabelecida, pois certamente não seria simples construí-la sem que houvesse contestações, ainda mais de um povo que havia vivido uma experiência comunitária tão radicalmente diferente em Canudos. Mas tudo flui com certa tranquilidade, como se, no fundo, qualquer palavra ou iniciativa de Conselheiro valesse por si mesma devido à continuidade do seu carisma, mais forte do que as novas ideias que ele propôs e passou a praticar.
Esta tentativa de edificação de uma comunidade autônoma com valores anarquistas não foi estranha à história brasileira, e também no mesmo período histórico de passagem do século XIX para o XX. Isso porque algumas destas comunidades foram de fato estabelecidas, as mais conhecidas delas, a da Colônia de Guararema (1888) – no interior de São Paulo –, e a Colônia Cecília (1890), no litoral paranaense. Ambas foram criadas por imigrantes italianos, liderados por líderes anarquistas vindos da Itália. Duraram alguns anos, com relativo êxito, antes dos problemas sociais e econômicos prevalecerem, levando às suas dissoluções.
Talvez Veiga tenha se inspirado nelas, mas foi ainda mais ousado, pois a Conferência de Itatimundé, no romance durou décadas, formou-se a partir de um líder religioso que muda radicalmente seus valores, sem grande conhecimento teórico, e em torno de pessoas simples, e de valores religiosos profundamente arraigados, mas dispostos a viver algo novo, pois nada tem a perder. Propõe assim uma experiência social e política muito mais radical e libertadora, sem a dependência de uma crença no além e a exploração do capital. Nesse sentido, A Casca da Serpente nos mostra uma comunidade brasileira extremamente improvável, mas não impossível, desde que se acredite verdadeiramente em relações humanas mais igualitárias, justas e solidárias. Quiçá surja alguma em tempos futuros.

– Marcello Simão Branco

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

A Sombra de Innsmouth


A Sombra de Innsmouth (The Shadow Over Innsmouth), H.P. Lovevraft. Organização e tradução de Guilherme da Silva Braga. Editora Hedra, São Paulo, 2010, 136 páginas.

Esta novela, escrita originalmente nos meses de novembro e dezembro de 1931, pertence ao ciclo principal do universo ficcional do autor, o dos “Mitos de Cthulhu”. É um dos seus trabalhos mais longos e que mais dificuldade encontrou em ser publicado nas pulp magazines, que publicaram a totalidade de sua obra, principalmente a Weird Tales. A alegação era de que era uma história muito longa e arrastada com relação aos acontecimentos, o que não se encaixava no perfil da revista, de histórias mais curtas e com ritmo mais movimentado. De fato, A Sombra de Innsmouth está entre seus textos mais longos, inferior apenas ao seu único romance, O Caso de Charles Dexter Ward (1927).
Como nos informa o tradutor do livro, Guilherme da Silva Braga na introdução da obra, Lovecraft já havia recebido outras recusas do editor de Weird Tales por causa destas características já vistas em outras histórias, e resolveu escrever esta novela sem nenhuma preocupação em vê-la algum dia publicada, mas apenas pelo prazer da criação. Desta forma ela só apareceu pela primeira vez em abril de 1936 como título próprio, num livreto que circulou no ambiente dos fãs, editado pela Visionary Publishing Company. A Weird Tales, finalmente a acabou publicando na edição de janeiro de 1942, quase cinco anos depois de sua morte.
Em todo caso, A Sombra de Innsmouth não traz grandes novidades com relação à maneira dele contar uma história. Está lá a narrativa introspectiva em primeira pessoa, a generosa adjetivação de situações, a construção de uma atmosfera de suspense absolutamente contagiante, tanto no impacto emocional, como na necessidade quase imperativa de virar a página, quase que sem possibilidade de abandonar a leitura de uma história contada de maneira fascinante, embora o conteúdo também seja dos mais instigantes.
Acompanhamos a história do narrador, um estudante que resolve fazer uma excursão de um dia na velha, decadente e sombria cidadezinha portuária de Innsmouth. Em tempos idos tinha sido uma próspera região comercial de pescados, mas depois da Guerra Civil (1861-1865), entrou num processo crescente de decadência econômica. O que inculca a cabeça do visitante e dos moradores das cidades vizinhas a ponto de lhes causar um misto de repugnância e pavor, foram alguns supostos acontecimentos inexplicáveis que teriam ocorrido anos depois. Um estranho culto, chamado de “Ordem Esotérica de Dagon” – uma referência a um outro conto do autor, chamado “Dagon” (1917) – teria sido criado em resposta a uma estranha comunhão entre os habitantes do vilarejo e inomináveis seres submarinos de aspectos monstruosos, que emergiriam do chamado Recife do Diabo, uma rocha próxima a uma das praias da cidade. Em troca do sacrifício de jovens, os habitantes de Innsmouth conheceram uma súbita prosperidade anos depois. O tempo passou, alguns eventos igualmente estranhos teriam levado a prosperidade embora, e ficaram apenas as histórias e lendas sobre o que teria realmente acontecido a Innsmouth e seus habitantes.
O estudante chega a Innsmouth e mistura a constatação da visível decadência socioeconômica com suas próprias noções de civilidade, com uma clara demonstração de preconceito e racismo a todos os que não são brancos e falantes da língua inglesa. Transparece aqui as próprias opiniões do autor, reconhecidamente xenófobo com relação a estrangeiros de todos os lugares que não o do seu mundo anglo-saxão.
Lá pelas tantas o estudante conhece um simpático e perturbado senhor de 96 anos que movido a aguardente, lhe conta em detalhes todas as supostas histórias horripilantes entre os habitantes de Innsmouth e os seres antigos, – pertencentes ao panteão de Cthulhu, os Grandes Antigos, que teriam vivido muito antes na Terra e caído em desgraça por praticar sinistros rituais pagãos, e que aguardavam o momento propício de retomar a posse do planeta e exterminar a humanidade. Ainda mais impressionado depois do relato, o estudante fica preso à noite na cidade, pois o ônibus subitamente para de funcionar. E daí em diante, num misto de sensações apavorantes, entre o real e o imaginário, o estudante procura fugir de perseguidores que não queriam que ele revelasse para o mundo exterior os segredos de Innsmouth.
A força da história é calcada na subjetividade e fatalidade dos eventos, no clima de suspense e num limite de terror sempre à espreita criado pelo autor. Contudo, o final da história é surpreendente, mesmo para aquele que já tem certa intimidade com as histórias do autor.
A primeira publicação de A Sombra de Innsmouth no país foi em 2000, como título próprio, na coleção da editora Campanário. A partir daí tornou-se presente em várias coletâneas em língua portuguesa. No Brasil: Dagon (Iluminuras, 2001), O Mundo Fantástico de H.P. Lovecraft (Clock Tower, 2013), Os Melhores Contos de H.P. Lovecraft (Hedra, 2014), Grandes Contos (Martin Claret, 2016), O Medo à Espreita e Outras Histórias (L&PM, 2016). Em Portugal: O Intruso (Fio da Navalha, 2004) e Os Melhores Contos de Howard Phillips Lovecraft (Saída de Emergência, 2005).
Esta edição da Hedra que resenhamos se destaca pelo artigo introdutório e tradução de boa qualidade, além do acréscimo interessante de uma carta de H.P. Lovecraft, “A Narração de Histórias, Uma Carta”, explicando seu método de criação, e uma curiosa árvore genealógica do estudante, explicando um pouco os fatos perturbadores do seu desfecho.
No contexto do ciclo de Cthulhu, A Sombra de Innsmouth é uma obra de boa qualidade ao lado de, entre outros, “O Chamado de Cthulhu” (1926), “A Cor que Caiu do Céu” (1927), “Um Sussurro nas Trevas” (1930) e “Nas Montanhas da Loucura” (1931). Apresenta todos os elementos característicos para se conhecer a prosa e o estilo único de H.P. Lovecraft, ao mesmo tempo, tão polêmico e influente.

– Marcello Simão Branco

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Uma Noite de Horror (Monster Dog, EUA / Espanha / Porto Rico, 1984)


(OBS.: Texto datado e descompromissado, publicado originalmente dentro do editorial do fanzine “Juvenatrix” # 53, de Agosto de 2001, e reproduzido sem atualização, servindo como um registro de quase duas décadas atrás, e que pode até ser considerado como uma breve resenha do filme.)

Vale registrar um comentário sobre um filme de horror obscuro que assisti pela primeira vez em vídeo VHS em 1988 com o manjado nome de “Uma Noite de Horror” (Monster Dog, 1984), e que não dei muita importância na época. Depois e mais recentemente, vi novamente o filme no Cine Sinistro da TV Bandeirantes em 16/06/01 com um novo título nacional, igualmente ridículo, “A Matilha da Maldição” (sou da opinião que certos títulos originais deveriam ser mantidos principalmente quando a tradução literal soa estranho, e nesse caso poderia ficar simplesmente como “Monster Dog”).
Esse filme não tem nada de diferente, muito pelo contrário, é uma história óbvia no estilo “lobisomem”, repleta de clichês e falhas no roteiro, com atores ruins e totalmente desconhecidos e com efeitos especiais tão fracos que beiram à paródia. A direção e roteiro são do italiano Claudio Fragasso, utilizando o pseudônimo Clyde Anderson. A única novidade é a presença do cantor de rock Alice Cooper como o protagonista, interpretando um personagem idêntico à sua vida real, um astro do rock que vai junto com sua equipe de produção até a velha mansão abandonada e isolada de sua família numa pequena cidade americana, gravar um vídeo clipe. A história do local é repleta de lendas sobre lobisomens e com participação direta dos descendentes do cantor. Fica fácil imaginar o destino fatal dos membros da equipe de produção e do próprio astro de rock, amaldiçoado pelas lendas locais.
“Monster Dog” serve como um veículo de promoção do cantor Alice Cooper, um filme de horror que mostra um astro do rock envolvido com um lobisomem, numa clara referência à proximidade entre o horror e o rock. É uma fita igual a dezenas de outras convencionais produzidas no mesmo período como “Noite dos Arrepios” (Night of the Creeps, 1986, sobre zumbis), “A Noite das Brincadeiras Mortais” (April Fool’s Day, 1986, sobre psicopata), “Visão do Terror” (Terrorvision, 1986, sobre alienígena), “A Noite do Medo” (The Being, 1983, sobre monstro de lixo tóxico), “O Monstro Canibal” (Cellar Dweller, 1987, sobre criatura sobrenatural), só para citar alguns poucos entre tantos.
Mas é curioso que na época em que foram produzidos, estes filmes eram comuns e raramente despertavam algum interesse adicional, porém agora já passados quase duas décadas, eles acabaram tornando-se uma referência de um período que tem suas características próprias, e de certa forma despertam um interesse, principalmente por ser uma fonte de comparação com o cinema atual. E no caso de “Monster Dog”, com produção de baixo orçamento e ruim de forma não proposital, que poderia ser classificada como “trash”, acaba despertando um interesse mesmo que por curiosidade. Foi exatamente isso que ocorreu quando vi esse filme pela segunda vez em junho de 2001. Talvez também por isso, os filmes “ruins” exercem tanto fascínio no público. Resumindo, todo e qualquer filme, seja um clássico, uma mega produção com fantásticos efeitos especiais, ou mesmo uma produção paupérrima, todos tem seu espaço e interesse, e principalmente sua parcela de participação na construção da história do gênero fantástico.
(Juvenatrix – Agosto 2001)

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Alienator - A Exterminadora Indestrutível (Alienator, EUA, 1990)


“Em um canto longínquo da galáxia, um batalhão rebelde bem armado monta uma emboscada para os exércitos do Grande Tirano, Baal. Um massacre se segue. Milhares de inocentes morrem, e o líder da revolução Kol é capturado e sentenciado à morte. Hoje num escuro planeta prisão de onde ninguém jamais escapou, o Comandante Executor se prepara para mandar seu prisioneiro direto para o inferno.” – Introdução.

Com um título nacional sonoro e sensacionalista (e talvez até com um “spoiler” na palavra “indestrutível”), “Alienator – A Exterminadora Indestrutível” (1990) é outro exemplo do cinema fantástico bagaceiro do diretor veterano Fred Olen Ray, o mesmo responsável por diversas tranqueiras, citando apenas algumas dos anos 80 do século passado como “Vale da Morte” (1985), “Confusão nas Estrelas” (1986), “A Maldição da Tumba” (1986), “Cyclone – A Máquina Fantástica” (1987), “Hollywood Chainsaw Hookers” (1988), “Alien – O Terror do Espaço” (1988), “Guardiões do Futuro” (1988) e “A Maldição dos Espíritos” (1990).
Kol (Ross Hagen), o líder dos rebeldes conforme descrito na introdução, encontra-se preso e no corredor da morte. A penitenciária é controlada com rigor pelo Comandante Executor (Jan-Michael Vincent), que tem seus momentos galanteadores com a secretária Tara (P. J. Soles). Depois que a prisão recebe uma visita de inspeção do General Delegado Lund (Robert Clarke), que tem ideias pacifistas, Kol aproveita uma oportunidade e consegue escapar numa pequena nave, indo em direção à Terra.
Lá, numa estrada no meio da floresta de uma cidadezinha do interior americano, ele encontra um grupo de adolescentes acéfalos formado por dois casais de namorados, Rick (Richard Wiley) e Caroline (Dawn Wildsmith), e Benny (Jesse Dabson) e Orrie (Dyana Ortelli). Os jovens pedem ajuda para um policial florestal, Ward Armstrong (John Phillip Law), e todos juntos precisam enfrentar o ataque de uma androide alienígena exterminadora “indestrutível” conhecida como “Alienator” (interpretada por Teagan Clive), que foi enviada para eliminar o prisioneiro fugitivo Kol. Para auxiliá-los no confronto com a máquina de guerra de outro mundo, eles se unem ao veterano Coronel Coburn (Leo Gordon), um ex-militar com experiência em batalhas e que vive numa cabana na floresta.

“Aqui é a privada do sistema penal interplanetário e nosso trabalho é dar a descarga.” – Comandante Executor

O filme é uma bagaceira proposital, com diálogos e situações hilárias, cujo roteiro simples é um imenso clichê, mostrando a manjada história de uma criatura cibernética exterminadora vinda do espaço para rastrear um prisioneiro que se escondia em nosso planeta. A sala de comando da prisão espacial está repleta de painéis imensos, com botões e interruptores, e os demais ambientes simulam celas com corredores e salas típicas de uma fábrica com escadas, válvulas e tubulações externas para todos os lados. A nave espacial é uma maquete tosca e a exterminadora do título tem uma aparência exagerada, com pouca roupa, sangue amarelo, portando armas futuristas de raio laser e evidenciando o corpo musculoso de Teagan Clive, que também é fisiculturista. Aliás, ela só aparece em cena após quase quarenta minutos de filme, então é fácil deduzir que o diretor Fred Olen Ray procurou enrolar bastante a história com futilidades.  
Curiosamente, temos no elenco a presença de vários veteranos cujos rostos são reconhecidos, como Leo Gordon (1992 / 2000), Robert Clarke (1920 / 2005) e Robert Quarry (1925 / 2009).
Leo Gordon esteve em dezenas de filmes de western e “O Castelo Assombrado” (1963). Robert Clarke esteve em “O Homem do Planeta X” (1951) e “The Astounding She-Monster” (1957), filme que inspirou a história de “Alienator”, além de “The Incredible Petrified World” (1959) e “Além da Barreira do Tempo” (1960). Já Robert Quarry foi um vampiro em “Conde Yorga, Vampiro” (1970) e a continuação “A Volta do Conde Yorga” (1971), e esteve em outras pérolas como “A Câmara de Horrores do Abominável Dr. Phibes” (1972), “A Vingança dos Mortos” (1974) e “A Casa do Terror” (1974). Em “Alienator”, ele fez o papel de um médico alcoólatra, Dr. Burnside, numa participação rápida.
Vale também citar a presença da bela atriz alemã P. J. Soles, que esteve em “Carrie: A Estranha” (1976) e no clássico de John Carpenter, “Halloween: A Noite do Terror” (1978), o primeiro filme do psicopata mascarado Michael Myers.
Após o término do filme tem uma citação dedicatória para o ator Fox Harris (1936 / 1988), que fez o atrapalhado caçador Burt e que faleceu logo após as filmagens.
(Juvenatrix – 06/02/18)

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Essencial 2014 - Autores estrangeiros

No que se refere a livros de autores estrangeiros, a fantasia ainda é o gênero mais publicado, mas 2014 fica marcado pelo crescimento significativo dos títulos de ficção científica, enquanto a fantasia e o horror estiveram mais ou menos estáveis em relação a 2013. Esse crescimento particular da fc se reveste de importância ainda maior por conta da representatividade dos títulos publicados.
Na fantasia, o destaque vai para Elric de Melniboné: A traição ao imperador (Elric of Melniboné), do escritor britânico Michael Moorcock, publicado no Brasil pela Editora Évora no selo Generale. Trata-se do resgate oportuno de uma obra importante da fantasia mundial, originalmente publicada em 1972, de um dos mais expressivos autores do gênero, que andava esquecido pelas editoras brasileiras: o único livro do autor publicado aqui até então era A espada diabólica (Stormbringer), oitavo e último livro da mesma série, traduzido pela Francisco Alves nos anos 1970. Elric segue a linha da fantasia heroica que fez grande sucesso com Conan, de Robert E. Howard, embora os personagens sejam diametralmente opostos.
Contudo, as similaridades entre os dois universos são tantas que, nos quadrinhos, Elric chegou a contracenar com o bárbaro cimério. Stormbringer, a espada viva de Elric, é provavelmente a mais conhecida arma da literatura fantástica, ao lado de Excalibur. Também vale registrar a publicação de Discworld: Pequenos deuses (Small gods), de Terry Pratchett (1948-2015), pela Editora Bertrand Brasil, 13º volume dessa série de romances cômicos que é bastante conhecida dos leitores brasileiros.
Como já foi dito, 2014 foi o ano do ressurgimento ficção científica no Brasil, e a relação de livros essenciais é grande, a começar do megarromance Graça infinita (Infinite jest), de David Foster Wallace (1962-2008), publicado pela Companhia das Letras, ficção científica de contornos políticos e sociais considerada pela crítica como "o último grande romance do século 20" (ele é de 1996). Sua leitura é uma verdadeira maratona de mais de mil páginas, sem contar as 136 páginas do apêndice de notas, que é uma atração em si.
Graça infinita se insere na estética pós-moderna New Weird, assim como A cidade e a cidade (The city & the city), de China Miéville, que também chegou ao Brasil em 2014 pela Editora Boitempo, outro título reconhecido tanto pela crítica mainstream quanto pela especializada.
Battle royale, de Koushun Takami, pela Globo Livros, é outra publicação surpreendente. Primeiro porque é um dos raros exemplos da ficção científica japonesa traduzida no Brasil, segundo porque trata-se de um trabalho razoavelmente recente (o livro é de 1999) e extremamente violento, ao ponto de ter se tornado polêmico no país de origem. Apesar do brutalismo ser um estilo popular entre os autores brasileiros, o nível da violência em Battle royale extrapola todos os limites dos protocolos do gênero. Apesar disso – ou talvez por isso mesmo –, o romance fez uma bem sucedida carreira, com adaptações para os quadrinhos e para o cinema.
Mais ao gosto do leitor ocidental, a editora Intrínseca trouxe ao país, com tradução de Braulio Tavares, o romance Aniquilação (Annihilation), de Jeff VanderMeer, autor da moderna fc norte americana, publicado aqui meses antes de ganhar o prestigioso Prêmio Nebula. Trata-se do primeiro volume da trilogia Comando Sul, cuja segunda parte, Autoridade (Authority), já foi publicada em 2015 pela mesma editora. A história, repleta de mistérios, remete ao clássico Stalker, dos escritores russos Arkadi e Boris Strugastski, e é igualmente perturbadora.
Também surpreendeu a publicação de O círculo (The circle), de Dave Eggers pela Companhia das Letras, ficção científica na fronteira do mainstream, que discute com incômodo vigor a presença cada vez maior da vigilância tecnológica na sociedade moderna, sugerindo que os extremos denunciados por George Orwell em 1984 talvez não estejam tão longe de se tornarem realidade, se é que já não estão bem diante dos nossos narizes.
Dois clássicos inéditos no país marcaram presença nas livrarias em 2014: A nebulosa de Andrômeda (Andromeda nebula), livro de 1957 do escritor russo Ivan Efremov (1908-1972), pela pequena editora Polo Books, e a coletânea O salmão da dúvida (The salmon of doubt), trabalho póstumo e inacabado do britânico Douglas Adams (1952-2001), pela Arqueiro.
Para quem conhece estes autores, não há necessidade de maiores explicações: são leituras mais que obrigatórias.
No campo do horror, os destaques são pesos pesados: Doutor Sono (Doctor Sleep), de Stephen King – sequência ao clássico absoluto O iluminado (The shinning) –, pela Suma das Letras, e Outros reinos (Other kingdoms), um dos últimos trabalhos do sempre relevante Richard Matheson (1926-2013), pela Civilização Brasileira.
Este ano, um fato incomum revelou que há uma grande tempestade ao longe que pode mudar radicalmente o panorama da publicação de fc&f no Brasil. Nada menos que três editoras publicaram, simultaneamente, a coletânea The king in yellow, de Robert W. Chambers (1865-1933), influente clássico da literatura gótica publicado em 1895.
Pela Intrínseca e pela Clock Tower, o volume levou o nome de O rei de amarelo, e pela Arte & Letra, O sí­mbolo amarelo e outros contos. Isso aconteceu porque a obra de Chambers entrou em domínio público e as atentas editoras logo aproveitaram a oportunidade. Curioso é que todos os editores tenham escolhido justamente o mesmo título, sendo que Chambers, que foi um autor produtivo, tem muito mais para ser aproveitado. O fato é que todos estão esperando ansiosamente pelos grandes títulos estrangeiros caiam em domínio público, enquanto clássicos da ficção especulativa nacional seguem esquecidos. Decerto que há alguma lição para ser aprendida nisso tudo.
Cesar Silva

Essencial 2014 - Autores brasileiros

Até 2013, a fc&f no Brasil foi acompanhada de pertinho pelo Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica. Essa missão está agora disseminada num grande número de iniciativas de fãs e acadêmicos, de forma que há muitas interpretações e análises circulando, especialmente na internet. Contudo, minha análise pessoal ainda pode ter algum valor para aqueles que gostam de discutir os lançamentos mais expressivos da literatura especulativa no Brasil. Assim sendo, vou exercitar aqui a minha opinião baseada na lista do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2014 - Lançamentos, recentemente publicado aqui.
Começando pelos autores brasileiros, o gênero da fantasia segue firme e forte como o preferido de autores, editores e leitores, tomando pelo menos metade dos lançamentos de ficção fantástica. É claro que caberia discutir os limites de cada gênero e até mesmo questionar se um determinado título faz parte ou não do rol das obras especulativas – há muitas definições e algumas delas são diametralmente opostas – mas tomo a liberdade de usar a minha: se não é claramente fc ou terror, é fantasia. E entram na definição as histórias de realismo mágico e fantástico.
Dessa forma, destaco, na fantasia, os livros A cabeça do santo, de Socorro Acioli, publicado pela Companhia das Letras, e Os sóis da América, de Simone Saueressig, publicado pela autora em quatro volumes ao longo de 2013 e 2014. Ambas são autoras experientes no gênero, com diversos títulos publicados por grandes editoras. Socorro investiu num romance regionalista moderno que trata de costumes e tradições bem brasileiras, enquanto Simone fez um romance de alta fantasia em um continente americano povoado por seres mitológicos inspirados nas culturas de diversos povos, entre os quais os brasileiros, embora estes não sejam predominantes.
Também destaco o segundo volume da coletânea Hiperconexões: Realidade expandida, organizada por Luiz para a editora Patuá. Trata-se de uma proposta que, se não é de toda original, é bastante rara: uma seleta de poemas de ficção científica de diversos autores, todos explorando o tema do pós-humanismo. O primeiro volume foi publicado em 2013, pela editora Terracota.

Na ficção científica, Luiz Bras também sustentou uma boa posição com Distrito Federal, publicado pela Patuá, romance que o autor prefere chamar de rapsódia, uma fantasia tecnológica sobre a corrupção e suas consequências.
Também vale destacar A lição de anatomia do temível Dr. Louison, de Enéias Tavares, publicação da LeYa Brasil/Casa da Palavra.
O romance foi vencedor da primeira edição do Prêmio Fantasy e inaugurou a coleção Brasiliana Steampunk.
Trata-se de uma ficção alternativa que reúne, numa mesma aventura, diversos personagens da literatura fantástica brasileira.
Entre as coletâneas, é impossível não voltar a Luiz Bras e sua Pequena coleção de grandes horrores, pela editora Circuito, um conjunto de narrativas muito curtas que brincam com ícones da cultura pop e dialogam com várias obras do gênero.

No horror, vale a pena buscar por As máscaras do pavor, do veterano escritor e roteirista R. F. Lucchetti, uma das maiores personalidades do gênero no país, muito conhecido por suas parcerias como o ilustrador Nico Rosso, nos quadrinhos, e com José Mojica Marins, no cinema. O romance é o primeiro de uma coleção do autor – conhecido como o homem dos mil livros – numa parceria das editoras Devaneio e Corvo.
Entre as coletâneas, vale registrar Flores mortais, de Giulia Moon, pela Giz Editorial e Sete monstros brasileiros, de Braulio Tavares, pela Casa da Palavra. A primeira reúne contos com as vampiras criadas pela autora, que é uma das melhores escritoras da Terceira Onda da ficção fantástica brasileira. A segunda é mais uma contribuição valiosa do experiente escritor paraibano Braulio Tavares, desta feita navegando no ainda pouco explorado panteão de criaturas assustadoras da mitologia nacional. 
Alguns dos títulos citados neste artigo dispõe de resenhas neste blogue, é só buscar pelos autores no índice de tags.
Cesar Silva

Dois anos, oito meses e 28 noites, Salman Rushdie

Dois anos, oito meses e 28 noites (Two years eight months and twenty-eight nights), Salman Rushdie. Tradução de Donaldson Garschagen. 336 páginas. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2016.

No século 12, tempo em que os mouros dominavam a península ibérica, viveu em Córdoba um filósofo chamado Ibn Rushd, que tinha ideias um tanto perturbadoras para uma sociedade teocrática dominada pelos conceitos de outro filósofo, o já falecido Gazhali de Tus. As ideias transgressoras de Rushd o levam ao exílio e à proibição de lecionar sua filosofia. Destituído de sua autoridade, o sábio passa a viver de pequenos negócios. É quando conhece uma bela jovenzinha chamada Dunia que bate a sua porta em busca de abrigo, e acaba por tornar-se sua amante e mãe de uma legião de filhos. Ocorre que essa jovem não era exatamente uma mulher, mas sim um djin, mais exatamente uma djínia (djin feminino) que, em períodos específicos, pode vir ao mundo dos homens.  Dunia se encantou com o amor e tudo faz para experimentá-lo, apesar de sua condição de djin, em que o amor não tem lugar. Sua dedicação ao sábio caído torna-se uma ternura que irá atravessar os séculos e perdurar muito além de sua morte.
Oitocentos anos depois, os descendentes de Dunia e Rushd estão espalhados pelo mundo. A única característica que os identifica é a falta do lóbulo na orelha, coisa que quase ninguém percebe e é ignorada inclusive por eles mesmos. Mas, como sempre acontece nas história em que dois mundos se chocam, mais uma vez as brechas entre o Peristão – o mundo dos djins –  e mundo dos homens voltam a se abrir, e coisas bizarras começam a acontecer por toda parte. A mais importante delas para o relato em questão é o que acontece com o já idoso jardineiro Geronimo Manezes que, depois de uma tempestade de três dias arrasar a cidade, percebe que seus pés não tocam mais o chão e, a cada dia, a distância entre eles e o solo aumenta um pouco mais. Mas não só: um bebê abandonado na sala da prefeita demonstra ter o poder de revelar a corrupção naqueles que a tocam, surgem uma infinidade de moléstias desconhecidas, pessoas desenvolvem superpoderes, outras ainda morrem esmagadas por um súbito aumento da força da gravidade sobre elas, e o mundo torna-se uma confusão ainda maior quando quatro poderosos djins das trevas, que causam perturbações até no Peristão, vêm ao mundo dos homens para exercitar suas maldades. Estas poderosas entidades não odeiam os humanos, na verdade não têm nenhum sentimento especial por nós além do desprezo, mas pretendem divertir-se um pouco por aqui. É quando Dunia retorna para despertar seus descendentes, cujos poderes adormecidos podem ajudar a salvar ambos os mundos da sanha dos gênios do mal. Quando encontra Geronimo, que é de fato um de seus descendentes, Dunia reconhece nele a mesma aparência do velho Ibn Rushd, por ele se apaixona e o leva para o Peristão, onde vai despertar sua natureza djin para a luta que seguirá.
Salman Rushdie é um prestigiado escritor indiano, nascido em 1947 em Bombaim e radicado na Inglaterra desde a adolescência. Formou-se em História em Cambridge, trabalhou como ator e tornou-se escritor em período integral em 1971. Ganhou prêmios importantes como o Booker Prize, o Booker of Booker e o Best of the Booker com o romance fantástico Os filhos da meia-noite (Midnight's children), que guarda muitas similaridades com Dois anos, oito meses e 28 noites. Mas seu romance mais conhecido é Os versos satânicos (The satanic verses), que lhe legou o prêmio Whitbread e uma sentença de morte pelo então líder espiritual do Irã, aiatolá Khomeini.
Dois anos, oito meses e 28 noites é uma fábula filosófica sobre o conflito das forças que regem o mundo, o embate das visões místico-religiosa e acadêmico-científica. O longo título faz referência ao clássico As mil e uma noites (que somam exatamente dois anos, oito meses e 28 noites) que, na mitologia do romance, é um período cíclico de transformações em que o véu que separa os dois mundos se rompe e a magia se manifesta também no mundo dos homens.
O texto de Rushdie é leve e contemporâneo, e sua formação multicultural dá à narrativa um colorido ímpar nas letras britânicas, com referências à várias culturas, especialmente da Índia, seu país da nascença, mas também às de outras regiões, incluindo a África e até o Brasil, que é citado algumas vezes no romance.
Ainda que haja condições para uma leitura aventuresca para esta história de amor e fúria, na maior parte do tempo, o autor trabalha questões profundas, não apenas sobre o conflito filosófico que fundamenta a narrativa, mas muitas outras como, por exemplo, sobre a polêmica que surgiu há alguns meses no ambiente literário, quando Kazui Ishiguro, também ele um escritor britânico, fez comentários aparentemente preconceituosos sobre o gênero da fantasia.  Diz Rushdie na página 245:

"... contar uma coisa ocorrida antigamente é falar do presente. Narrar contos imaginários, fantasias, é também uma forma de contar uma história sobre a atualidade. Se isso não fosse verdade, contar histórias seria inútil, e em nossa vida cotidiana procuramos, ao máximo possível, evitar inutilidades. A pergunta que nos fazemos ao narrar nossa história é a seguinte: como foi que chegamos aqui, vindo de lá?". 

Apesar da aparente similaridade, Dunia não é Jeanie (personagem de um popular seriado de tv dos anos 1960, interpretada por Barbara Eden). Apesar de igualmente apaixonada, Dunia não é serva de ninguém, ela é senhora, protagonista que define os rumos de sua própria história. Uma ideia bastante atual num mundo ainda dominado pelo machismo, que vê as mulheres como um acessório pouco mais que decorativo. Neste romance, as condições se invertem e a mulher enfrenta com ousadia os desafios da condição feminina, mesmo sendo uma djínia pois, também no mundo dos djins, as coisas não são muito diferentes no fim das contas.
Cesar Silva