domingo, 29 de novembro de 2020

Memória da Água

Memória da Água (Teemestarin Kirja – original finlandês; Memory of Water – da tradução em inglês para a edição brasileira), Emmi Itäranta. Tradução de Liliana Negrello e Christian Schwartz. Capa de Túlio Cerquize. 286 páginas. Rio de Janeiro: Galera/Record, 2015. Lançamento original de 2012.

 

Em um futuro não definido, mas aparentemente não muito distante, o aquecimento global provocou o colapso da civilização como a conhecemos. O aumento da temperatura derreteu os polos, os oceanos e mares invadiram as superfícies, mudando toda a geografia do planeta.

A água se tornou o bem mais valioso e disputado. Por pessoas, comunidades e países. Restaram pouquíssimas fontes de água potável e a maior parte do que é consumido ocorre por meio de enormes usinas de dessalinização da água dos oceanos.

Em consequência deste novo contexto guerras são travadas há décadas em busca de fontes de energia – houve, inclusive, uma “guerra do petróleo” –, e a China invadiu e governa o que restou da Europa. O território da Escandinávia passou a ser chamado de Novo Qian, vivendo sob uma rígida ditadura militar.

Mas a esta conjuntura política não é dada grande profundidade. Mas sim a uma família peculiar que preserva a arte milenar do ritual do chá. Nela, o velho mestre ensina seus saberes à sua única filha, Noria, a quem se espera levar adiante a tradição da família. É uma arte quase perdida e valorizada por poucos, especialmente os chineses e seus descendentes. Para preparar o ritual e servir o melhor chá, os mestres retiram a água de nascentes naturais. Assim era, e como Noria descobrirá, seu pai detém o segredo de uma nascente oculta.

Após a morte dele, Noria se torna a nova mestre do chá, mas não será fácil manter as aparências e o segredo, ainda mais com a chegada de um novo comandante ao local, que passa a investigar sistematicamente todas as famílias – punindo algumas com a sombria inscrição de um círculo azul na porta de suas casas. Sinal para todos de que cometeram o crime de conseguir água de forma ilegal, e serão punidos com a morte.

Memória da Água é um romance inusitado e interessante. Nos apresenta a cultura do cultivo e preparo do chá, de forma detalhada e respeitosa. Soube mesmo de leitores que se interessaram pelo livro por esse aspecto, mais do que ao contexto distópico em si. O vínculo com a FC ocorre pela história se passar no futuro e extrapolar de forma dramática problemas já graves que vivemos hoje, com respeito às alterações climáticas no planeta.

Mas a força dramática da narrativa se dá no plano mais pessoal em meio a este contexto desfavorável. Faz todo o sentido, portanto, a conexão entre a excelência do chá e um mundo carente de água. E, afinal, é colocado para a própria Noria: até que ponto é ético ter água em abundância para manter o seu negócio enquanto a população passa necessidade?

A autora é muito hábil e sensível também na analogia que traça entre a água como elemento da natureza que nos traz a vida e, quando se esvai, nos leva à morte. Assim, a arte do preparo do chá está morrendo, a civilização também e, finalmente, cada uma das pessoas, pela ausência dramática da água no mundo. Neste sentido, o título faz a sutil alusão à memória da água enquanto o ritual do chá continuar existindo. Assim, Noria toma a consciência do legado do seu pai, de manter a nascente em segredo como forma de preservar não o chá em si, mas o vínculo com o que o mundo foi um dia e, eventualmente, possa vir a ser de novo. Mas, como disse, ela enfrentará problemas concretos que a levarão a ser pressionada a rever tal simbologia.

Noria é uma garota de dezessete anos e, a despeito da grande responsabilidade que lhe foi transferida pelo pai, também sonha em escapar desta realidade, e procurar água potável com sua amiga de infância Sanja. Principalmente depois delas descobrirem algumas fitas VHS num lixão abandonado. Depois de descobrirem o que eram as fitas, conseguem reproduzir ao menos o áudio das gravações. E, chocadas, ficam sabendo que décadas antes, um grupo de cientistas dissidentes descobriu uma região à leste da Finlândia, chamada de Terras Perdidas, onde haveria água potável em boa quantidade. O que elas deduzem é que, a maior parte da água é consumida pela elite dirigente, e através da censura, repressão e controle do acesso à água, a população vive na ignorância sobre a situação concreta.

Elas, então, organizam uma expedição, mas acabam surpreendidas com o cerco dos militares e os problemas das pessoas do vilarejo, cada mais sedentas de água e comida. Noria e Sanja, assim, tem não só seus objetivos e descobertas alterados, mas seus próprios destinos.

Este é o primeiro romance da escritora finlandesa Emmi Itäranta, jornalista que se tornou crítica de teatro, e daí passou para a literatura. Traduzido para vários idiomas, na versão em inglês foi indicado a dois dos principais prêmios da FC: o Arthur C. Clarke Award (para o melhor romance publicado no Reino Unido no ano) e o norte-americano Philip K. Dick Award (para o melhor romance publicado nos EUA no ano em formato popular). Além disso, recebeu “menção honrosa” no James Tiptree Jr Award, conferido ao melhor romance de FC escrito por uma mulher no ano em língua inglesa. Ela escreveu um segundo romance em 2015, também num futuro indefinido e distópico, e com a mesma boa recepção de crítica e público, em especial na Finlândia. Foi traduzido para os EUA e Canadá como The Weaver e no Reino Unido como The City of Woven Streets.

Além da qualidade de uma prosa limpa e fluente, e da originalidade da história, chama a atenção a força da voz feminina neste cenário multicultural em que se transformou a FC no século XXI. Cada vez mais obras de culturas espalhadas pelo mundo tem se tornado relevantes, diversificando e enriquecendo o próprio gênero. E a perspectiva feminina é uma das que mais têm ganhado relevo neste contexto.

Pois em Memória da Água a condição feminina ilustra tanto a condição sensível à preservação dos saberes do chá, quanto a do seu próprio gênero: mais oprimido e secundário num mundo regido por regras estritamente masculinas. Ainda mais se governado por uma cultura política e filosófica tradicionalmente machista e de desvalorização da condição da mulher.

O romance, portanto, pode ser interpretado em diferentes níveis: o das consequências desastrosas de um mundo em guerra, da disputa desesperada por um bem que hoje ainda dispomos em quantidade razoável – a água –, e de como um de seus simbolismos – o cultivo e preparo ritualístico do chá –  pode nos conduzir entre uma linha que vai da fartura à escassez, da vida à morte, até, finalmente, no plano de visão destes temas, a partir da perspectiva mais sensível da mulher. E, talvez por isso, o primeiro romance da autora priorize o intimismo em meio ao contexto macro (masculino), que, via de regra, se apresenta como organizador e, neste caso, extremamente opressor. Um belo livro de uma autora que merece ser acompanhada.

– Marcello Simão Branco

 

sábado, 7 de novembro de 2020

Tudo é Eventual

 

Tudo é Eventual (Everything is Eventual), Stephen King. Tradução de Myriam Campello. 467 páginas. Rio de Janeiro: Editora Objetiva/Suma de Letras, 2003. Lançamento original em 2002.



Apesar de ter se notabilizado principalmente por seus volumosos romances, King nunca abandonou a forma original com a qual iniciou sua carreira: o conto. Assim é que, no prefácio “Em Busca da Arte (Quase) Perdida”, ele faz uma reflexão sobre esta forma narrativa. Com a exceção do romance, outras manifestações como o conto, a poesia, o modelo teatral shakespeareano e as peças de rádio, estariam todas em processo de extinção. O momento seria de transição para outras formas narrativas, mais visuais e mesmo virtuais, como ele mesmo experimentou com histórias publicadas na internet há alguns anos, como The Plant – um romance publicado em e-book, de 2000 – e “Andando na Bala” – esta última presente neste livro.

Para King o conto ainda não é uma arte perdida, mas com o encolhimento do mercado editorial para esta forma narrativa, sua sobrevivência estaria ameaçada. Revistas populares voltadas à forma curta e a baixa vendagem de coletâneas e antologias, justificariam, do ponto de vista econômico, a presença cada vez mais esparsa do conto na produção de escritores importantes.

O irônico é que por gerações a principal porta de entrada de escritores iniciantes para a carreira literária foi o conto. O próprio King é um destes casos. E retomar a forma curta e até usar de seu prestígio para publicar é uma maneira de manter a arte viva. Além de, antes de mais nada, mantê-la viva no seu próprio ofício. Pois para o autor de O Cemitério (1983):

Se alguém quer escrever contos, não basta pensar em escrevê-los. Não é como andar de bicicleta. É mais como exercitar-se numa academia: a opção é usar o corpo ou perdê-lo. (...) [Pois] continuei a escrever contos ao longo dos anos em parte porque as ideias ainda me ocorrem de tempos em tempos e, em parte, porque é o modo de confirmar, ao menos para mim mesmo, que não me ‘vendi’, pouco importa o que pensem os críticos menos amáveis”.

Temos, então, dois motivos para o exercício do conto, por parte de Stephen King. 1) O prazer de escrevê-los e, desta forma, manter viva sua própria capacidade de executá-los, e 2) Uma espécie de intenção militante, em busca de um ideal para que esta forma narrativa continue viva.

E o que se pode dizer após a leitura desta enorme coletânea, é que King não perdeu o viço e continua a produzir algumas histórias absolutamente arrebatadoras, tanto pela história em si, como por ser criada dentro da forma específica do conto, que procura combinar de forma virtuosa, drama e síntese.

O livro contém 14 histórias, todas com algum elemento de horror, seja mais explícito ou de cunho psicológico. Embora King tenha escrito um prefácio contundente em defesa do exercício e publicação do conto e um livro com histórias curtas, se formos rigorosos, há muitos poucos contos no livro. A maioria das histórias são noveletas, um conto longo demais para a forma curta e curto demais para uma novela. Talvez, no fim, King tenha mesmo perdido um pouco da arte de sintetizar ideias ou ações dramáticas em uma forma eminentemente curta. Em todo caso, o que vale mesmo é o conteúdo, o que podemos tirar de prazer da leitura das histórias, independentemente de sua classificação formal ou editorial.

A história de abertura é “Sala de Autópsia 4”, no qual um homem dado como morto está prestes a ser autopsiado, após sofrer uma picada de uma cobra venenosa. Por mais da metade do texto, acompanhamos os preparativos para uma operação post mortem. Tanto do ponto de vista dos procedimentos médicos, como do próprio comportamento dos profissionais. Isso soa de uma forma muito crua, realista. Chega a incomodar, mas a intenção é provocar este efeito mesmo. Só que as coisas não são exatamente como pareciam no início, dando uma completa reviravolta no desenrolar da trama.1

Se a primeira história é boa, a segunda é das melhores do livro. “O Homem de Terno Preto” é narrado por um velho, que conta um fato que lhe ocorreu na infância e jamais o abandonou. É uma história simples e muito pessoal, que poderia perfeitamente ter acontecido com qualquer pessoa. A não ser pelo elemento sobrenatural inserido com maestria pelo autor e que provoca arrepio e angústia com o desfecho da história. King disse que o conto é uma espécie de homenagem a um semelhante, de Nathaniel Hawtorne. Neste e no de King, para sermos claros, estamos falando da presença súbita e terrível do Diabo. Que surge, se mostra simpático e depois, de forma dissimulada, procura cercar e destruir sua vítima. No fundo, o que marca esta noveleta é a discussão subjacente de alguns daqueles medos que temos na infância. Crescemos, viramos adultos. Mas no fundo de nossa intimidade, estes mesmos medos não nos abandonaram. King cria uma atmosfera de terror no velho-menino absolutamente convincente e, por isso mesmo, apavorante.

A seguir, somos apresentados a um representante comercial em profunda depressão. Está em um motel de beira de estrada no interior dos Estados Unidos, prestes a cometer suicídio. “Tudo o que Você Ama lhe será Arrebatado”, é uma história daquelas cotidianas, que acontecem todos os dias e depois lemos nas páginas da seção cotidiana do jornal. Alfie era um cara relativamente bem-sucedido, casado e com filhos. Mas chegando à meia-idade, sem perspectiva de mudança em sua vida. Intui-se que este quadro seja o motivador da ação, mas o mais curioso é que não ficamos sabendo exatamente a razão de Alfie querer dar cabo de sua própria vida. E o final acentua ainda mais a dúvida, pois King deixa em aberto o destino do infortunado personagem.

O conto seguinte é “A Morte de Jack Hamilton”, e King escreve um segundo conto no estilo de homenagem. Aqui não a um autor em especial, mas às histórias policiais pulps dos anos 1930, recheadas de foras-da-lei muito carismáticos e bem mais interessantes que os comportados homens-da-lei. Este conto mostra a fuga da gangue de Jack Hamilton, num texto que consegue ir um pouco além da mera homenagem, devido as qualidades de King, principalmente com relação à construção de personagens. Algo que ele sabe melhor do que a maioria dos escritores.

Já a “Câmara da Morte” é uma história curiosa: uma narrativa política situada em algum lugar do Caribe. Um opositor é preso e torturado em um país que vive em uma ditadura. Isso não é familiar? Na maior parte do conto somos expostos ao interrogatório e às torturas em si. Ou seja: não é propriamente agradável embora, infelizmente, bastante familiar a qualquer brasileiro acima dos 50 anos. Mas, o texto apela para uma solução absolutamente inverossímil para o destino do prisioneiro. Mas King assume isso, quando diz no comentário que fez ao final do conto que,

Em tais histórias, o interrogado geralmente termina cuspindo tudo e depois sendo morto (ou) enlouquecendo). Quis escrever uma com final feliz, por mais irreal que fosse. E aí está.”

Pois é. Mas não convence. Se quisesse mesmo uma solução deste tipo – que é totalmente legítima –, deveria se esforçar mais, criar situações mais convincentes e não forçadas só para chegar ao seu desejo intencional.

A história seguinte volta a elevar muito a qualidade do livro. Refiro-me a “As Irmãzinhas de Eluria”. É uma espécie de variação sobre um tema, no caso o universo ficcional de A Torre Negra. Isso porque esta história foi escrita fora cronologia da série, por encomenda a uma antologia de fantasia. King resolveu, então, explorar um aspecto particular da série, no caso uma passagem da vida de um dos protagonistas, Roland. E o melhor é que não é necessário um conhecimento prévio da série. Esta história vale por si mesma. É das coisas de terror mais intensas que acompanhei nos últimos anos. Em um mundo desolado, o viajante solitário Roland chega a uma cidade deserta, abandonada, fantasma. E é surpreendido por uns mutantes estranhos, esverdeados. Ele é capturado e levado até um hospital onde é cuidado por enfermeiras. Até aí, nada de muito aterrador. Mas o fato é que os doentes lá hospedados somem misteriosamente, um a um. E Roland percebe do que se trata o lugar, e que na verdade estas enfermeiras são malignas, cruéis, enfermeiras da morte.

Morte também está presente na próxima história, a que dá título ao livro, “Tudo é Eventual”. Um rapaz descobre, meio por acaso, que tem poderes especiais. Tem a capacidade de influir na vida alheia, seja de uma pessoa ou de um animal. Basta que mentalize ou realize alguma tarefa indireta para que seu desejo se cumpra por completo ou em parte. Também de forma misteriosa ele, sem saber ao certo, é recrutado por uma organização secreta. Reúne ‘talentos’ com maneiras incomuns de influir na vida alheia, em benefício de um grupo oculto que os sustenta financeiramente.

Esta é uma narrativa com uma premissa interessante, sombria, que me provocou duas sensações: 1) um desconforto pelo personagem principal, que não me empolgou, e 2) fiquei com a impressão que a história terminou de forma precipitada, pois as situações ficaram abertas, não há uma conclusão clara. E o tal ‘tudo é eventual’, passa aqui como uma ironia. Que trágicas ‘ironias’, ou eventualidades marcam coisas ruins, estúpidas, inexplicáveis na vida de pessoas (ou animais) – geralmente aquelas que consideramos como boas. Enfim, King nos coloca diante de uma explicação nada eventual sobre a razão de coisas absurdas e más acontecerem o tempo todo. Há uma explicação mas, curiosamente, procura desconstruir exatamente a noção de que ‘tudo é eventual’, como se houvesse um conserto oculto, maligno, conspiratório permeando a vida de cada um. Sinistro, sim, mas sem grande sustentação racional, mesmo para os parâmetros obviamente fantasiosos que a história postula. E de qualquer forma, a sucessão de que tudo é eventual, sem qualquer conotação oculta ou fantástica, é a mais desconcertante e perturbadora. A que provavelmente rege o universo em que vivemos.

Na próxima história somos confrontados novamente sobre porque algumas coisas horríveis acontecem. Em “A Teoria de L.T. sobre Animais de Estimação”, uma mulher abandona o marido e leva junto o cachorro de estimação. O cara passa boa parte da história remoendo a razão do abandono e sai à sua procura. É uma noveleta de emoções e surpresas, pois ela começa em um tom cômico e vai, gradativamente, mudando em direção ao terror e à tristeza.

O relato seguinte é batido no horror como um todo, e recorrente também na carreira de King. O tema do quadro que muda, a cada nova olhada de um observador. Neste “O Vírus da Estrada vai para o Norte”, contudo, o autor está inspirado e somos levados a acompanhar a história de um escritor que ao voltar de uma conferência literária, depara com um quadro de aspecto estranho, em uma daquelas liquidações, família vende tudo. Aqui nota-se outra recorrência de King: o terror que ronda a atividade de um escritor, já visto em vários contos e romances como, por exemplo, Angústia (1987), A Metade Negra (1989) e “Janela Secreta, Secreto Jardim” (1989). A sucessão de mudanças no quadro é muito bem narrada. King imprime um ritmo forte e convincente. Espera-se que, no fim das contas, tudo seja alguma paranoia ou algum truque. Mas só posso adiantar que a intensidade da solução assusta pelo seu vigor.

O que já não é o caso de “Almoço no Café Gotham”. Um casal em litígio marca um almoço num restaurante, no qual acertam, na presença dos seus respectivos advogados, um processo de separação amigável, depois do abandono da mulher. Aqui temos a segunda abordagem de King neste livro sobre este assunto. Contudo, o que surpreende é a presença de um mâitre psicótico, que começa a cortar e matar sem piedade com uma grande faca – sem motivo aparente – os fregueses do local. E o casal é surpreendido e tem de procurar se defender para poder sobreviver à sangrenta loucura estabelecida.

em “Você só Pode Dizer o Nome daquela Sensação em Francês”, estamos falando no deja vù. Quando ao vivenciarmos um fato, temos a nítida impressão de já o termos vivenciado, mas sem saber como nem porquê. O conto é ainda narrado de uma maneira estranha, ao transmitir a sensação de que os acontecimentos não são claramente percebidos, não parecem reais. Mas eles se insinuam e, mais que isso, se repetem, condenando o casal da história a fazer a mesma coisa de forma repetida. Como se presos a um inferno, como define o próprio King, em seus comentários sobre o conto. Um dos grandes momentos do livro.

Assim como a história seguinte, o aterrador “1.408”. Segundo King, a sua versão de uma ‘sala fantasma em um hotel’. Um escritor quer passar uma noite em um hotel de Nova York que está fechado há décadas por ter fama de mal assombrado. Pessoas teriam sido queimadas, outras enlouquecido, e cometido suicídio e assassinato no tal quarto 1.408. O gerente do hotel tenta de todas as formas possíveis, dissuadir o escritor a levar à frente seu intento. Mas ele é irredutível e terá a sua noite no 1.408. É uma história excelente de cômodo assombrado. Lembra o clássico O Iluminado (1977), na relação do hotel com o escritor Jack Torrance. E é bom lembrar que aqui King retoma a questão sob o prisma dos escritores. Talvez para extravasar seus próprios sentimentos ao lidar com temas tão incomuns e perturbadores, como o desta história puramente de horror.2

Andando na Bala” vem a seguir. A badalada história que teve sucesso comercial ao ser publicada na internet, e fez King virar capa da Time. No prefácio ele se disse desapontado, porque tanto a revista como a maioria das pessoas só lhe perguntavam o quanto estava ganhando com a história. Não lhe contavam o que tinham achado da história. Talvez porque não a tenham lido. Ou porque tenham lido e não gostado. Ou então porque a história, embora muito boa, toque em um tema muito sensível, ao qual as pessoas não gostam de falar: a morte de entes queridos. Fico com a primeira hipótese. Mas “Andando na Bala” é uma história de emoções muito fortes e humanas. Se insere no terreno de sua autobiografia, conforme ele mesmo anuncia no pequeno prefácio que escreve à história. Temos aqui King em seu melhor momento, equilibrando de forma virtuosa, os mistérios da realidade e da imaginação. Ao final deste relato tocante, dá para entender porque King ficou tão contrariado por só elogiarem o êxito financeiro da história. Ele estava contando uma história dele, muito íntima. Quando nos expomos desta maneira, queremos, de uma forma ou de outra, alguma espécie de solidariedade.

Depois destas três histórias de alto nível, o livro termina de forma meio sem graça, com um conto que poderia ter sido limado. Refiro-me à “A Moeda da Sorte”. Uma variação sobre a tentação perigosa e gananciosa do jogo. Nada mais do que uma fantasia simpática – porque, afinal, a intenção da mãe era louvável, pois tinha um filho doente –, mas com um desfecho um tanto moralista, o que acaba por destoar do ambiente geral do livro.

Reza a sabedoria convencional que numa coletânea – ou antologia – temos histórias boas e ruins. Não é possível agradar a todos. O que dizer deste Tudo é Eventual? Tudo bem, há histórias menos boas sim, mas temos algumas excepcionais, o que perfaz um conjunto altamente positivo e encorajador. Stephen King mostra que, embora esteja escrevendo romances cada vez mais volumosos, não perdeu o jeito para textos mais curtos – embora não muito curtos, como já frisado –, uma preocupação que ele mesmo demonstrava em seu prefácio. Pois como ele afirma em certa passagem do livro, ao comentar uma das histórias, os “contos são como artefatos: não coisas feitas, criadas por nós (e pelas quais possamos receber créditos), mas objetos preexistentes que desencavamos”. Esta declaração até pode ser verdadeira do ponto de vista dele. E para, alguns de seus pares escritores. Mas o fato é que nem todos tem essa capacidade ‘preexistente’, um tipo de, digamos, instinto natural. Não só para conceber uma ideia mas, principalmente, torná-la interessante, fazê-la ganhar vida como uma história bem contada. Talento que King desenvolve como poucos.

Marcello Simão Branco

1 A noveleta me lembrou do conto “G.C.P.A.” (1920), de Gastão Cruls, em que o clima de uma sala de autópsia chega a ser nauseante. Foi publicado na antologia O Conto Trágico, organizada por Jeronymo Monteiro para a Civilização Brasileira, em 1960.

2Ganhou uma boa versão para o cinema em 2007, com o mesmo título.