domingo, 22 de dezembro de 2019

Dicionário de línguas imaginárias, Olavo Amaral

Dicionário de línguas imaginárias, Olavo Amaral. 128 páginas. Editora Companhia das Letras, selo Alfaguara, São Paulo, 2017.

Ainda que seja conceito comum entre os críticos da literatura brasileira que ela seja uma arte estagnada, recorrente em seus temas, quase sempre ligados à marginália, à pobreza e à violência, repetindo personagens e tramas que tornam a leitura previsível – e isso pode ser mesmo verdade – sempre houve uma corrente que fluiu em outras direções. De Machado de Assis a Guimarães Rosa, de Murilo Rubião a Ignácio de Loyola Brandão, de Monteiro Lobato a José J. Veiga, há dezenas de autores que escapam dessa análise superficial, que levam temas e tramas da literatura brasileira muito além da fronteira. Histórias de horror quase sempre, fantasia e ficção científica eventualmente, aparecem em todas as épocas, desde que foi permitido que os brasileiros publicassem o que escreviam.
Hoje temos um real movimento em busca desses horizontes, iniciado antes de tudo pelos leitores fãs de ficção científica que, na dificuldade de encontrar o que queriam, passaram a compor suas próprias histórias em fanzines, a princípio, e em blogues, mais recentemente. Esse movimento pré-fabricado nos anos 1960 e 1980, cresceu muito na era da internet e eclipsou aquele fluxo natural que continua lá, contudo.
Há quem diga que as obras de autores ligados ao realismo fantástico não são parte desse movimento. E não são mesmo. São autores mais incorporados ao mainstream, nunca identificados como "fãs", que emprestam para si a estética e os mecanismos de uma tradição latinoamericana que vem de muito mais longe. As histórias tem textura de weird fiction (referência à revista americana Weird Tales, publicada entre 1923 e 1954), em que os contornos da literatura de gênero não são claros e seus preciosos protocolos não são respeitados.
Este é o caso dos dez contos que formam esta coletânea de Olavo Amaral, portoalegrense nascido em 1979, médico, neurocientista,  cineasta e autor premiado, que tem em sua bibliografia as coletâneas Estática (2006) e Correnteza e escombros (2012), também relacionadas ao fantástico e ambas disponíveis para leitura na internet.
Dicionário de línguas imaginárias é o primeiro livro do autor pela Companhia das Letras e guarda tributo à Jorge Luis Borges, especialmente por conta do tema. Mas, enquanto Borges tinha no livro o seu objeto de especulação, Amaral volta sua atenção para a oralidade, a língua, e assim sustenta a mesma metalinguagem borgeana.
O conto que abre a seleta é "Uok phlau", estruturado na forma de um artigo sobre o trabalho de campo de um antropólogo junto a tribo nativa dos yualapeng, em cuja língua não existe a noção de "ir" e "vir".
"Travessia" é uma história mais convencional, sobre quatro homens que não falam a mesma língua e, por algum motivo não explicitado, estão presos em um contêiner, e os desdobramentos do estresse, medo e preconceito que surgem entre eles.
"Mixtape" é uma história sincopada, de tons eróticos, sobre um homem obcecado por um vídeo pornográfico.
"Quarto a beira d'água" retoma o estilo fantástico ao contar a tragédia de um casal depois que surge uma poça de água no meio de seu quarto de dormir.
"Iceberg" é uma fantasia com laivos de ficção científica. Um antropólogo passa o inverno observando à distância uma tribo de homens primitivos que vivem próximos ao litoral. O relato não deixa claro o que realmente está acontecendo, mas vamos sentir o estranhamento quando chega o verão.
"Choeung ek" apresenta uma sociedade que tem no turismo uma grande atividade comercial. Ali, os viajantes são encaminhados às "atrações" locais, que contam uma história tétrica e antiga de violência e crueldade, tudo muito profissional, é claro. Mas há um passeio especial, exclusivo para os turistas mais curiosos.
"O ano em que nos tornamos ciborgues" é uma ficção científica distópica, sobre uma revolução proletária fracassada que dá lugar a uma sociedade de coalizão. Sobreviventes mutilados pelo conflito são submetidos a um tratamento a base de implantes, mas ainda há muito com que se revoltar.
Em "Esquecendo Valdéz", o autor se achega ao modelo borgeano ao contar a história de um homem que forjou um intelectual inexistente a partir da produção de um livro no qual baseou seu trabalho acadêmico.
"Última balsa" tem um que de A estrada, de Cormac McCarthy. Conta o drama de um homem e um menino autista tentando sobreviver em uma ilha deserta após um naufrágio.
"Estepe" mostra o drama de um homem que tem uma doença incurável que avança tanto mais rápido quanto ele fala. O jeito é parar de falar e, para isso, ele vai viver com uma tribo nômade nas congeladas estepes russas, que não por acaso é o povo que menos fala no mundo.
Um livro curioso e perturbador, que sustenta a tradição do realismo fantástico brasileiro e latinoamericano com qualidades inegáveis, ótimas ideias e texto fluente. Leitura altamente recomendável que mostra que, ao contrário do que se pensa, há inteligência fora do fandom.
Cesar Silva

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Além do Planeta Silencioso

Além do Planeta Silencioso (Out of the Silent Planet), C. S. Lewis. Tradução de Waldéa Barcellos. 220 páginas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. Lançamento original em 1938.

Há alguns meses vi na livraria do Terminal Rodoviário Tietê, em São Paulo, os três volumes da Trilogia Cósmica, ou Trilogia de Ransom, de C.S. Lewis: Além do Planeta Silencioso (1938), Perelandra (1943) e Aquela Força Medonha (1945). Lançamento de 2019, em edições bonitas, com capa dura, da editora de livros cristãos Thomas Nelson. Mas os preços estavam proibitivos.
O primeiro livro eu li quando tinha 19 anos, numa edição portuguesa da coleção Europa-América, no. 80, com título levemente diferente: Para Além do Planeta Silencioso, e seu impacto nunca de desfez. Assim, pensei: será que tantos anos depois valeria a pena ler de novo, agora incluindo os dois livros seguintes? É que tive um certo receio de não macular a memória afetiva do período da minha vida em que o li pela primeira vez. Mas, como disse, o livro me impressionou antes e, portanto, pela sua qualidade resolvi arriscar uma nova leitura. Por sorte, a editora Martins Fontes já havia publicado os três livros antes, entre 2010 e 2011, e os consegui por preços bem mais acessíveis.
Além do Planeta Silencioso é uma história de FC do subgênero planetary romance, em que acompanhamos a incrível aventura do linguista Elwin Ransom. Ele é raptado por dois cientistas e levado a Marte, com o intuito de ser oferecido a alienígenas em troca de ouro, abundante no planeta. Mas o livro revela-se muito mais do que este pobre pretexto. Ransom consegue fugir dos seus captores e perambula pelo planeta em busca de ajuda e sobrevivência. Com isso se depara com um mundo fantástico e desconcertante, em suas multicores, vegetação exuberante, seus rios e mares, planícies e montanhas. Por si só as descrições do mundo alienígena de Lewis valem a leitura e estão entre as mais belas e criativas de toda a ficção científica.
Ransom trava contato com uma civilização inteligente, os hrossa – semelhantes a focas –, que o abriga e inicia nos seus costumes e filosofia de vida poética e integrada à natureza. É um povo que extrai por meio da harmonia e simplicidade, uma postura tranquila e pacífica. Mas Ransom descobre que Marte – chamado de Malacandra por seus nativos –, inclui ainda mais duas espécies inteligentes: os sorns e os pfilfltriggi. Os sorns, grandes e semelhantes a pássaros, e os pfilfltriggi, os menores e parecidos com rãs. Linguista, Ransom aprende a se comunicar com as três espécies, aprendendo a língua dos hrossa que é comum a todos (apenas entre eles os sorns e os pfilfltriggi adotam linguagens próprias), e percebe que eles compõem o que chamam de hnau, os seres inteligentes que se respeitam e se complementam com estilos de vida e habilidade próprias. Os sorns mais empreendedores e os pfilfltriggi muito hábeis em construções e serviços manuais. Todos vivem em conexão íntima com o ecossistema do planeta, sem predação justificada por motivos políticos ou econômicos.
Os hanais dizem a Ransom que ele vem de Thulcandra, o planeta silencioso, e que deve ir ao encontro de Oyarsa, o governante e líder espiritual do planeta, que pertence a uma outra espécie, os eldil. Difíceis de serem descritos, por vezes se materializam, por vezes se manifestam com vozes ou sinais indiretos, numa indicação de serem seres etéreos ou sobrenaturais. Alguma semelhança com anjos não é coincidência.
O romance flui de forma leve, apesar de eivado de muitos simbolismos de ordem cristã. Há mesmo um frescor pulp na narrativa em geral – talvez efeito do tipo de ficção que se escrevia nos EUA na época –, o que só o torna mais atraente e prazeroso.
Ransom e seus dois captores descobrirão por que a Terra (Thulcandra) é chamado de o planeta silencioso, isolado de uma espécie de comunidade cósmica que interage pelos céus (e não pelo espaço em si), em busca de uma convivência mais virtuosa e cheia de confiança mútua.
Embora não seja explícita, a alegoria de Lewis é perceptível, no sentido de que a humanidade é uma espécie que decaiu em seus valores e costumes, perdeu-se no egoísmo, inveja, maldade e ganância, sendo mesmo orientada, sub-repticiamente, pelo Torto, como chamado por Oyarsa – um eldil que se bandeou para o mal. A alusão implícita aqui é com Lúcifer.
Além do Planeta Silencioso é um livro interessante e elegante, tanto em sua narrativa, que mistura aventura com descrições inspiradas da natureza, como na filosofia que prega, que longe de ser proselitista, se aproxima mais do que poderíamos chamar de uma visão de mundo pautada por uma ética humanista e cristã.
Em mais um aspecto de interesse o livro se revela metalinguístico, surgindo como um relato fictício de uma experiência verdadeira, através do qual Ransom – também um nome inventado –, achou mais adequado revelar à humanidade sua experiência e descobertas. Não dá para deixar de pensar que Ransom é um alter ego do próprio Lewis – que, depois de ateu na juventude, se tornou reverendo e professor de Literatura Medieval e Renascentista em Cambridge.
E esta literatura de ficção especulativa baseada em alegorias cristãs prosseguiu anos depois quando Lewis concebeu sua série As Crônicas de Nárnia (The Chronicles of Narnia), composta por sete livros, publicados entre 1950 e 1956. Também aqui, e de forma leve e implícita, as aventuras, agora de alta fantasia, são protagonizadas por crianças e animais falantes no Reino de Nárnia.
Aqui no Brasil o livro tem uma importância editorial histórica, pois inaugurou a mais importante coleção da ficção científica brasileira, a FC GRD, editada pelo editor Gumercindo Rocha Dorea, em 1958 - veja a capa acima à direita. A escolha do livro não foi um acaso, pois uniu a paixão de Dorea pela FC e sua vinculação estreita com o catolicismo. O livro ainda seria republicado em meados dos anos 1970, como Longe do Planeta Silencioso – tenho a segunda edição, de 1979 –, pela editora cristã Livros Co-Lab, de Umuarama, Paraná, numa tradução do Reverendo Amantino Adorno Vassão. Depois os três volumes foram publicados na coleção Europa-América, de Portugal, o já citado no. 80 (em 1984), Perelandra Viagem a Vênus, no. 179 (em 1991), e Aquela Força Medonha, nos. 185 e 186 (também em 1991). E voltou a ser publicado no Brasil em 2010 com a edição que usei para esta resenha, seguido em 2011 com a publicação inédita das duas sequências, todos pela WMF Martins Fontes, até a edição mais recente da editora Thomas Nelson, em 2019.
Escrito em 1938 é um livro que também discutiu a sua época, às vésperas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), como uma espécie de alegoria sobre a condição crítica da humanidade, à beira da barbárie absoluta. Mas seu interesse perene nos anos posteriores, inclusive aqui no Brasil, confirma o seu status de clássico, por equilibrar com rara elegância discussões filosóficas profundas e um sense of wonder dos mais belos.


Marcello Simão Branco