terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Almanaque Entrevista



Nelson de Oliveira fala sobre o livro Fractais Tropicais e a ficção científica brasileira

por Marcello Simão Branco


Já pelo final de 2018 foi lançada a antologia de contos Fractais Tropicais: O Melhor da Ficção Científica Brasileira, pela Sesi-SP Editora, com organização de Nelson de Oliveira. Não é um volume de contos qualquer, pois reúne 30 contos dos mais representativos da história da ficção científica brasileira. Além disso, pela primeira vez, um livro publica autores das três ondas históricas do gênero no país, tornando-se, desde já, uma referência indispensável para quem quer conhecer e pesquisar sobre a ficção científica brasileira.
O responsável pelo projeto é Nelson de Oliveira (e seu pseudônimo Luiz Bras), um autor com carreira prévia consolidada no mainstream, que tem sido um dos mais atuantes e provocadores nomes do gênero no país neste século XXI, na condição de crítico, blogueiro, editor, antologista e escritor. Escolhido “Personalidade do Ano de 2010” pelo Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, já inclui, ao menos um livro seminal em nossa FC, a coletânea Paraíso Líquido (Editora Terracota, 2010). Na entrevista a seguir ele fala sobre os detalhes da edição da antologia, da condição favorável da ficção científica brasileira atual e suas perspectivas, de seu fascínio pelo gênero, e de uma nova antologia já em gestação que abordará, na mesma perspectiva de Fractais Tropicais, o fantástico brasileiro.

“Fractais Tropicais” é a mais abrangente antologia de ficção científica brasileira já organizada, pois reúne contos das três ondas do gênero. Nos fale da ideia do projeto e o que espera com ele.



A antologia nasceu de minha paixão pela ficção científica brasileira e do desejo de contaminar outros leitores com o vírus dessa paixão. O volume ficou mais abrangente porque tive a sorte de encontrar na equipe da Sesi-SP Editora a parceira ideal. Quando apresentei a ideia, eram apenas quinze autores. Quem propôs fazermos uma antologia mais ampla foi o pessoal da editora. A ficção científica brasileira está voltando a viver um ótimo momento. Eu realmente gostaria que o leitor brasileiro começasse a prestigiar mais os autores brasucas de FC. Espero que essa antologia desperte o interesse principalmente dos jovens leitores que até pouco tempo atrás nem sabiam que nós também escrevemos e publicamos ótima ficção científica. Gostaria que Fractais Tropicais se tornasse um best-seller e abrisse caminho pra outras antologias, provando que nossa FC também pode ser um empreendimento comercialmente viável.

A divisão dos contos por ondas em “Fractais Tropicais” é um tanto quanto desigual. Por que alguns autores importantes da segunda onda (como Henrique Flory, Roberto Schima, Simone Saueressig, José dos Santos Fernandes) e, sobretudo, da primeira onda (Levy Menezes, Nilson Martelo, Domingos Carvalho da Silva) ficaram de fora?

A historiografia da ficção científica brasileira é longa. Já passou quase um século e meio desde que O Doutor Benignus, de Augusto Emílio Zaluar, foi publicado, em 1875. Não daria pra fazer justiça a essa historiografia apenas com uma antologia de trinta autores. Seriam precisos mais um ou dois volumes. Minha proposta aos leitores é que Fractais Tropicais seja considerada junto com “Os melhores contos brasileiros de ficção científica”, Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica: Fronteiras e As Melhores Novelas Brasileiras de Ficção Científica, antologias organizadas por Roberto de Sousa Causo para a editora Devir, e Páginas do Futuro, antologia organizada por Braulio Tavares para a editora Casa da Palavra. Tanto a pesquisa historiográfica quanto a produção literária desses dois autores-organizadores me inspiraram bastante, durante a elaboração da Fractais Tropicais. Gosto de pensar que todas as antologias disponíveis somam forças, em vez de competirem entre si. Todas convergem em nome de uma causa comum.

O livro tem recebido uma boa divulgação, com resenhas nos dois principais jornais de São Paulo, algo raro em se tratando de FC brasileira, se é que já ocorreu. Você atribui isso ao fato da antologia ter sido organizada por você – um autor e antologista de prestígio – ou também porque, aos poucos, podemos dizer que a FCB está saindo de sua invisibilidade, com mais reconhecimento junto ao mainstream literário e o jornalismo cultural?

Podemos afirmar, com segurança, que a ficção científica brasileira está saindo de sua proverbial invisibilidade. A boa recepção da antologia, pela grande imprensa, talvez seja o coroamento de uma equação virtuosa envolvendo muitas variáveis. Quando a Netflix estreou a primeira temporada da série 3% (2015) eu percebi que a ficção científica brasileira estava começando a viver outro ótimo momento. Mas eu sinto que a FC brasuca precisa chegar às camadas mais altas do mercado editorial e conquistar as grandes instâncias legitimadoras: os prêmios e as feiras importantes, as grandes editoras, o prestígio acadêmico. Ainda estamos longe do cenário que eu considero o cenário ideal para os livros de FCB. Ainda não vi, por exemplo, a reedição de dois dos melhores romances do último quartel do século 20: Piscina Livre e Amorquia, de André Carneiro. Ainda não vi obras de FCB vencendo os principais prêmios literários: Jabuti, Oceanos, São Paulo, Biblioteca Nacional. Ainda não vi os autores de FCB participando dos principais eventos cult: Flip, Jornada Nacional de Passo Fundo, Flima, Flipoços, Flop. Ainda não vi os autores de FCB participando do Conversa com Bial ou protagonizando uma matéria do Fantástico.

Gostaria que você explicasse um pouco qual foi o critério de escolha dos contos selecionados. Foi sua preferência como organizador, ou foi levando em conta também o interesse do autor selecionado? Isso porque, em minha opinião, contos muito bons de alguns autores ficaram de fora. Procurou-se levar em conta também a diversidade temática ou textos mais recentes, talvez no intuito de divulgar o que certos autores vêm escrevendo?

O critério de escolha obedeceu a uma diretriz histórica (a divisão em três ondas) e uma diretriz puramente afetiva (meu autores e ficções prediletos). É por isso que a Primeira Onda tem menos textos do que a Segunda e a Terceira. Confesso que eu respeito, mas não sou muito fã da obra dos pioneiros de nossa ficção científica. Aprecio bastante os livros do André Carneiro, e um ou outro conto da Dinah Silveira de Queiroz, do Fausto Cunha, do Jeronymo Monteiro e do Rubens Teixeira Scavone. Mas gosto muito mais dos livros dos ficcionistas contemporâneos. Outro detalhe importante: tendo em vista a convergência de antologias, eu preferi não repetir contos já incluídos nas antologias do Causo e do Braulio. A exceção foi o conto do Ademir Assunção, porque esse autor do mainstream até hoje só escreveu um conto de ficção científica. O conto “Quinze Minutos”, do Ademir, também aparece na antologia Páginas do Futuro.

Fractais Tropicais é importante também pela grande representatividade de temas que apresenta, mostrando que a FCB já abordou quase todos os temas importantes do gênero. Contudo, chamou a atenção a ausência de dois temas: histórias de fim do mundo e de histórias alternativas, sendo que há ótimos contos sobre ambos os assuntos. Alguma razão para isso?

Podemos classificar essas ausências na categoria “contingência inevitável”. Foram contemplados catorze subgêneros da ficção científica. Mas a antologia teria resultado mais didática se realmente todos os ramos da FC tivessem sido contemplados com um conto. O problema é que existem muito mais de trinta ramos e eu não consegui evitar repetições. Por exemplo, um dos ramos mais importantes do momento, ausente da Fractais Tropicais, é o afrofuturismo. Também faltaram: império galáctico e mundo perdido. Prometo incluir esses subgêneros numa próxima antologia.

Ao final do livro, no texto “Sobre o Organizador” é informado que Luiz Bras deverá organizar uma antologia equivalente sobre o fantástico no Brasil. Como está o projeto? Terá o mesmo recorte histórico e temático mostrado em Fractais Tropicais?

A ideia é essa mesmo: reunir trinta dos melhores contos de nossa ficção fantástica, de autores modernos e contemporâneos. De um lado: André Carneiro, Aníbal Machado, Edla van Steen, Jamil Snege, José J. Veiga, Lygia Fagundes Telles, Moacyr Scliar, Murilo Rubião, Rosário Fusco, Victor Giudice… Do outro: Alex Xavier, Carlos Emílio Corrêa Lima, Fábio Fernandes, Flávio Moreira da Costa, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Carlos Regina, João Paulo Parisio, Lygia Bojunga, Maria Helena Bandeira, Modesto Carone, Paulo Sandrini, Romy Schinzare, Santiago Santos, Veronica Stigger… Ainda estou lendo e selecionando os contos. É importante lembrar que, no excêntrico mundo de Luiz Bras & Nelson de Oliveira, a ficção fantástica − às vezes chamada, na América Latina, de “realismo mágico” − é diferente da ficção sobrenatural, geralmente sobre feiticeiros, vampiros, lobisomens, fantasmas, zumbis etc. Pra maiores explicações sobre minha definição particular de ficção científica, ficção fantástica e ficção sobrenatural, eu recomendo a leitura do manifesto “Convite à Convergência”, publicado recentemente no jornal Rascunho. Num de seus parágrafos o autor escreve:

§

O que mais me agrada na ficção fantástica e na ficção científica é a subversão das leis da natureza.
Num conto ou num romance, adoro quando a causalidade, a força da gravidade, a biologia, a geologia, a atmosfera, enfim, o tempo, o movimento planetário, os minerais, as plantas e os animais, as pessoas e as estações do ano passam a funcionar de maneira diferente da nossa familiar realidade.
Isso acontece também na ficção sobrenatural.
Na ficção sobrenatural, as pessoas se metamorfoseiam, ficam invisíveis, interagem com os mortos, trocam de corpo, viajam no tempo ou enfrentam criaturas impossíveis por meio de feitiços, maldições e encantamentos, ou seja, graças à magia.
Na ficção científica, as pessoas fazem as mesmas coisas por meio da engenharia genética, da mecânica quântica, da inteligência artificial etc., ou seja, graças à ciência e à tecnologia.
Na ficção fantástica, ao contrário, as pessoas fazem as mesmas coisas extraordinárias graças a nada e ninguém. Não há feitiços ou máquinas, feiticeiros ou cientistas, por trás dos fenômenos insólitos. Apenas as leis da natureza são diferentes.


sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O Teorema das Letras


O Teorema das Letras, André Carneiro. Capa: Claudio Takita. Posfácio de Ramiro Giroldo. 166 páginas. São Paulo: Devir, Coleção Pulsar, 2016.

Este é o quinto livro de contos publicado pelo autor, o único de forma póstuma, já que ele faleceu em novembro de 2014.
Assim, a coletânea reúne a parte final dos seus escritos em prosa, o que mostra a vitalidade e longevidade de sua criação literária, iniciada em 1949 com o volume de poesias Ângulo e Face. Também em termos de ficção científica é o autor brasileiro que escreveu por mais tempo, já que seu primeiro livro do gênero, a coletânea Diário da Nave Perdida, é de 1963.
Mas O Teorema das Letras é mais do que o encerramento de uma carreira longa e reconhecida no campo da FC – no Brasil e no exterior –, e na poesia. Suas cinco histórias exploram de forma arrojada, surpreendente e mesmo incômoda questões relativas à sempre problemática condição humana: sua solidão, dificuldade de conexão com o outro, necessidade de expressar a liberdade como forma de afirmação de uma humanidade mais autêntica. Ainda mais se confrontada com súbitas e desnorteadoras mudanças sociais a partir de inovações tecnológicas ou a partir de regimes políticos não democráticos. Esta última questão particularmente aguda na vida de Carneiro, um libertário humanista em meio a uma sociedade tão conservadora como a brasileira.
Como bem observa Ramiro Giroldo no posfácio, O Teorema das Letras segue a tendência de seu livro anterior, a enorme coletânea de 27 contos Confissões do Inexplicável (2007), “com contos onde se intensificam a indefinição entre o real e o imaginário e a incerteza quanto ao narrado. A narrativa pode se reconstruir e se fazer outra de um momento a outro, abalando a certeza que a mera observação dos fatos possa levar à compreensão deles – os próprios sentidos a decodificar o mundo ao redor são indignos de confiança (...) estamos em um terreno de incertezas e paradoxos.”
Que fique claro, portanto, de que não estamos diante de uma prosa que prime pela convencionalidade e respostas facilitadas para o leitor. Quem conhece André Carneiro de outras obras já parte deste princípio, mas mesmo assim ele não deixa de soar algo insólito nas nuances que vão se insinuando a cada frase de seus contos. Assim, exige-se do leitor uma postura aberta ao novo e improvável, uma expectativa de estranhamento sempre à postos. Mas longe de tornar a leitura difícil é um estímulo, um desafio intelectual frente às situações incertas e ambíguas apresentadas, muitas vezes, em cada história.
Os dois primeiros contos “Alice e Roberval” e “Zinska” são os menores e servem como uma espécie de prólogo a esta complexidade temática que se assume como mais desenvolta nas três noveletas posteriores.
“Alice e Roberval” mostra um futuro em que é possível fazer predições sobre o futuro através dos cálculos de um computador. Mas ao contrário da psicohistória de Isaac Asimov (1920-1992), vista em sua série Fundação, em que a estatística está a serviço de predizer o comportamento coletivo de grandes populações, aqui se antevê o que poderá acontecer com a vida individual do consulente. É como se a matemática desnaturalizasse o esoterismo místico ao racionalizar o porvir, das dúvidas e ansiedades no rumo de sociedades ou na vida de pessoas.
Em “Zinska” temos a mesma toada da materialização tecnológica a tentar responder necessidades humanas. Estamos diante da construção de uma androide com capacidades telepáticas e seu relacionamento com os cientistas da empresa onde foi criada. Neste ambiente supostamente racional e asséptico se sobressai a inveja, a intriga e o ciúme em torno de Zinska e de liderança na empresa. No limite, homens lutando por atenção sexual e disputa de poder. Nada mais primevo, e humano.
A noveleta seguinte é a mais desconcertante do livro. “From Veronika Volpato” apresenta uma narrativa misteriosa sobre um casal que recebe algumas missões previamente desconhecidas por eles. Supõe-se trabalharem para alguma organização secreta ou clandestina a lutar contra um regime político opressor. Mas isso não fica propriamente claro. Lugares, pessoas e fatos se sucedem, e ainda mais enigmáticos com as mudanças de nomes do casal – uma peculiaridade recorrente em sua obra fruto de sua própria experiência pessoal durante a ditadura militar.
Para ilustrar como as impressões se desfazem mais adiante sai (ou perde importância) a possibilidade de atuarem junto a uma organização com fins políticos, para participarem da experiência de criação de um novo mundo. Uma nova realidade a ser vivida por seres humanos emancipados, mutantes. É uma história fascinante, tanto pelo suspense onipresente, pela sensação de estar sempre a faltar algo à espera de uma explicação, que nunca vem plenamente. Foi uma história que li e reli, me abrindo a cada leitura novas interpretações sobre o transcurso e o desdobramento final.
E o que dizer de “Sonho Lúcido”? Rodolfo anda triste e sem muito prazer nas coisas da vida. Para escapar, sonha. Faz do sonho uma atividade ansiada, talvez para explicar os seus problemas existenciais. Anota os sonhos logo que acorda, lê livros sobre psicanálise para entender mais sobre o assunto e a si mesmo. E é quando surge Ruth, uma mulher misteriosa por quem se apaixona. Vem não se sabe de onde, nem o que faz, nem para onde vai na sua ausência. Pois ela passa a dominar sua vida, com resultados perturbadores. Mais uma história incomum e aberta a muitas interpretações.
A última história é “O Bairro dos Tatus”. Um rapaz se muda para o tal bairro. Na verdade se refere aos tatuadores e não ao animal rastejador, como ingenuamente ele chegou a pensar.
Depois de fazer uma tatuagem de um pterodáptilo logo abaixo do umbigo, ele passou a ser desejado por várias mulheres – que homem não gostaria disso? –, pondo à prova seu relacionamento com Nissa, sua namorada. Mas também em relação à sua própria vida, depois dela sofrer um acidente automobilístico grave. Uma narrativa forte e triste, que procura refletir sobre as consequências voluntárias e involuntárias de nossos atos.
Como já disse o livro se encerra com o pósfácio de Ramiro Giroldo, professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Em “André Carneiro entre os Quânticos da Incerteza”, ele, que também defendeu um mestrado sobre a a distopia na obra de Carneiro,[1] na verdade é bem mais do que um texto de encerramento do livro. Fazendo um balanço cronológico e, por meio, dele, dos temas e características da obra de Carneiro, realiza um trabalho de análise literária não menos que notável. Pelo conhecimento, pela sutileza de suas análises e contextualização da condição do autor frente à ficção científica, à poesia e à literatura brasileira. É, desde já, um dos trabalhos mais completos sobre um autor de ficção científica escrito em língua portuguesa, uma referência para quem for estudar, principalmente, a vida e a obra de André Carneiro e, por extensão, a ficção científica brasileira.
Sabe-se que na última década de sua vida Carneiro sofreu com problemas de saúde, especialmente a visão. Com glaucoma, tinha apenas 10% restante e, mesmo assim, e por meio de aparelhos que amplificavam sua leitura, não esmoreceu. Continuou escrevendo e com qualidade e uma liberdade temática talvez ainda mais ousada. Isso só valoriza ainda mais O Teorema das Letras, uma obra que inspira e desafia, como poucas em nossa FC, a inteligência e a imaginação do leitor.
– Marcello Simão Branco




[1] Publicado como Ditadura do Prazer: Sobre Ficção Científica e Utopia, pela Editora UFMS, 2013.

domingo, 6 de janeiro de 2019

A Bandeira do Elefante e da Arara, Christopher Kastensmidt

A Bandeira do Elefante e da Arara (The elephant and macaw banner), Christopher Kastensmidt. 330 páginas. Tradução de Roberto de Sousa Causo e Christopher Kastensmidt. Editora Devir Livraria, São Paulo, 2016.

Este é mais um dos casos incomuns em que não é possível definir com precisão se estamos diante de uma obra nacional ou estrangeira. Isso porque ambas as origens concorrem neste romance. O autor, Christopher Kastensmidt, é texano e está radicado no Brasil desde 2001. Sua origem norte-americana não é nenhum segredo, mas é preciso que ele o diga para que a gente descubra, porque fala português com fluência perfeita, sem esquecer que compôs praticamente toda sua obra literária em solo tupiniquim. Por outro lado, o texto foi originalmente redigido em inglês e precisou ser traduzido, trabalho brilhantemente desenvolvido pelo escritor Roberto de Sousa Causo, com a supervisão do próprio autor. Isso porque Kastensmidt não se sente suficientemente à vontade com o português para escrever diretamente na Flor do Lácio, que é considerada por muitos linguistas como um dos idiomas mais difíceis do planeta. Mas a pendenga não para aí: o tema do romance não poderia ser mais brasileiro, pois toda a história se passa nas selvas de um Brasil colonial mítico, em que seres fantásticos têm existência real e palpável, para desespero dos colonos portugueses.
O modelo não é inédito, autores nativos já se aventuram por esse tema espinhoso com ótimos resultados, como Ivanir Calado (A mãe do sonho) Simone Saueressig (aurum Domini: O ouro das missões), Felipe Castilho (Ouro, fogo e magabytes), Tabajara Ruas (O fascínio), e o já citado Roberto de Sousa Causo (A sombra dos homens). Contudo, essa não é a regra. Entre os autores brasileiros de fantasia e ficção científica, ainda domina o preconceito em relação a nossa própria cultura e história, bem como dificuldades com a pesquisa, e a insegurança em desrespeitar a tradição folclórica, o que até se justifica em alguns casos. Talvez tenha sido justamente por não ser brasileiro e não compartilhar dessas amarras, que o autor de A Bandeira do Elefante e da Arara ousou embrenhar nesse ambiente difícil.
O resultado é favorável: não há nada a reprovar em A Bandeira do Elefante e da Arara. A história é movimentada e com muita ação, os personagens são redondos e sem cacoetes, os seres mitológicos são fiéis aos originais e há um tratamento responsável e respeitoso com relação a todos os protagonistas e suas origens, sem preconceitos ou estereótipos.
O romance é o que se chama, nos EUA, de fix-up, ou seja, a reunião de textos independentes que formam um todo coerente. Tanto é que os três primeiros capítulos, "O encontro fortuito de Gerad van Oost e Oludara", "A batalha temerária contra o capelobo" e "O desconveniente casamento de Oludara e Arani" tiveram anteriormente, de fato, edições independentes na coleção Duplo Fantasia Heroica, publicada pela mesma Devir Livraria, e já comentados aqui.
Kastensmidt explora com habilidade a construção do ambiente selvagem brasileiro. A abertura de cada capítulo apresenta um animal típico de nossa fauna, que também é lembrado no final. Para um brasileiro pode parecer pouco relevante, mas imagino a sensação que as descrições precisas e coloridas causam nos leitores estrangeiros, que nunca viram animais como esses. Não é por acaso que o primeiro capítulo, "O encontro fortuito de Gerad van Oost e Oludara", foi indicado ao prestigioso Prêmio Nebula em 2011.
Nas primeiras histórias, somos apresentados aos protagonistas, Gerad e Oludara, bem como ao seu nêmesis, o bandeirante Antônio Dias Caldas, que vai aparecer em diversos momentos da trama.   Acompanhamos como o aventureiro holandês Gerad conhece o príncipe africano escravizado Oludara e, juntos, fundam a sua bandeira de dois homens, o primeiro encontro com o Saci Pererê, a feroz luta contra o Capelobo, o confronto com o Curupira e seu gigantesco porco do mato, além da tribo dos Tupinambás, a segunda casa dos protagonistas, onde Oludara conhece, se apaixona e casa com a nativa Arani.
Em seguida, temos outras sete noveletas, cujos títulos, além de toda pompa e circunstância, são por si bastante reveladores: "O impropício retorno de Antônio Dias Caldas", "Uma série inconcebível de capturas e calamidades", "Uma tumultuosa convergência de desajustados, monstros e franceses", "A ameaçante aparição da Mula sem Cabeça", "O doloroso nascimento de Tainá", "Um caso audacioso em Olinda" e o impactante "O catastrófico final das façanhas brasileiras de Gerard e Oludara", que fecha o romance com um grande clímax onde não falta destruição, lutas e surpresas que vão colocar em cheque a boa relação entre os heróis. Nessas histórias, vamos também conhecer versões assustadoras dos mitos brasileiros, que não deixam de fora nem mesmo a Cuca e o beligerante Pai do Mato; mas percebe-se que ficaram muitos outros monstros de reserva para o futuro. Por certo que Kastensmidt não contou tudo de propósito. Além das adaptações para os quadrinhos – cujo primeiro volume foi publicado pela Devir Livraria em 2014 –, foi lançado pela mesma editora um jogo de tabuleiro no universo do livro que, tudo indica, é fato inédito no Brasil. Mais informações sobre isso podem ser obtidas no saite oficial do romance, aqui.
Por tudo isso é que A Bandeira do Elefante e da Arara é um livro obrigatório não só para os que gostam de boas aventuras, mas também para que autores e editores descubram que não há nada de errado com a mitologia brasileira. Assim como os nomes dos personagens em português, que ainda é tabu para alguns autores brasileiros, a cultura, os cenários, a história e a mitologia nacionais são ambientes ricos e interessantes, que devem e precisam ser melhor aproveitados.
Longa vida a A Bandeira do Elefante e da Arara!
Cesar Silva

Boris Strugatsky (1933-2012)

No dia 20 de novembro de 2012, o mundo perdeu mais um grande nome da literatura especulativa: Boris Strugatsky, escritor russo que, ao lado do irmão mais velho Arkady Strugatsky (1925-1991), construiu uma sólida bibliografia no gênero da ficção científica, extremamente popular entre os soviéticos e reconhecida internacionalmente como clássica do gênero, sendo traduzida em mais de 30 idiomas.
Nascido em 14 de abril de 1933, Boris Natanovich Strugatsky passou sua infância em Leningrado e lá estava quando a cidade foi sitiada pelo exército nazista. Em 1955, formou-se em astronomia pela Universidade de Leningrado (atual São Petersburgo) e trabalhou como matemático no Observatório de Pulkov.
Os primeiros trabalhos da dupla eram profundamente influenciados por outro grande nome da ficção russa, Ivan Efremov (1908-1972), com uma visão positivista e ingênua da ciência, mas com o passar do tempo, os textos ficaram mais críticos e satíricos. O romance de estreia foi From beyond (Извне), publicado em 1958, e o primeiro grande sucesso editorial veio em 1962, com a publicação de Meio-dia: Século 22 (Полдень, XXII век), romance fix-up formado por várias histórias curtas interligadas.
A enorme aceitação dos leitores russos permitiu que, a partir de 1966, os irmãos Strugatsky se dedicassem à escrita em tempo integral. No total, a dupla publicou cerca de 30 romances e dezenas de contos e novelas.
Muitos de seus livros estão disponíveis em língua portuguesa, especialmente em edições lusitanas, tais como Prisioneiros do poder (Обитаемый остров, 1969), Que difícil é ser deus (Трудно быть богом, 1964) e Um besouro no formigueiro (Жук в муравейнике, 1980), entre outros.
Contudo, quase nada foi publicado no Brasil. Além do conto "O cone branco de Alaíde" ("Белый конус Алаида", 1959), visto nas antologias Rotas para o amanhã (s/d, Editora Bruguera) e 5 novelas de antecipação soviéticas (1964, Editora Estúdios Cor), somente dois romance foram traduzidos: Certamente, talvez (За миллиард лет до конца света, 1977), publicado em 1980 pela editora Civilização Brasileira – que explora um polêmico conceito científico sobre a ação da própria natureza para equilibrar o Universo no caso de descobertas científicas ameaçarem estabelecer paradoxos irreversíveis –, e o maior sucesso da dupla, o romance Piquenique na estrada (Пикник на обочине, 1972), publicado em 2017 pela editora Aleph, sobre exploradores ilegais que entram em um território perigoso e proibido com o intuito de resgatar artefatos abandonados por alienígenas em parada temporária, para vendê-los num ávido mercado negro. A história inspirou um longa-metragem Stalker, dirigido pelo respeitado cineasta Andrey Tarkovsky em 1979.
Diversos outros romances dos Strugatsky chegaram a telona, entre os quais Certamente, talvez, filmado por Alexander Sukorov cujo título americano é Days of eclipse; Prisioneiros do poder, dirigido por Feodor Bondarchuk sob o título The inhabited island, e Que difícil é ser deus, filmado por Peter Fleishmann com o nome de Hard to be a god.
Após a morte de Arkady, em 1991, Boris publicou mais dois romances assinados como S. Vititsky: Busca da predestinação ou o 27º teorema da ética (Поиск предназначения, или Двадцать седьмая теорема этики, 1994) e Os incapazes deste mundo (Бессильные мира сего, 2003).
Boris Strugatsky morreu em São Petersburgo, aos 79 anos, de causa incerta, provavelmente de problemas cardíacos, dos quais o escritor já sofria há algum tempo.
Cesar Silva