sexta-feira, 28 de agosto de 2020

O Núcleo - Missão ao Centro da Terra (The Core, EUA, 2003)

 


(Texto escrito em Maio de 2003 e publicado originalmente no fanzine Juvenatrix # 74)

O que seria de nosso planeta Terra se não existissem os americanos? No cinema eles novamente foram os heróis salvadores de nosso mundo em “O Núcleo – Missão ao Centro da Terra” (The Core), uma aventura de ficção científica que estreou no Brasil em 04/04/03, com direção de Jon Amiel, a partir de um roteiro de Cooper Layne e John Rogers e elenco formado por astros como Hilary Swank e Stanley Tucci.

Uma força inicialmente desconhecida (na verdade mais uma conspiração governamental num projeto secreto militar) causou uma terrível consequência ao planeta, paralizando a movimentação de rotação interna do magma fundido em volta do núcleo, a qual mantém o campo eletromagnético responsável por proteger o planeta dos raios solares e por garantir a estabilidade climática do mundo. Como resultado desse incidente, uma série de eventos catastróficos tem início ao redor do mundo, rumando de forma inevitável para um apocalipse final.

Inicialmente, os distúrbios misteriosos ocorrem com a morte intantânea de dezenas de pessoas que vivem com aparelhos de marca-passo no coração em Boston, causando diversos transtornos como acidentes de trânsito; depois com um ataque desorientado de milhares de pombas em Londres, que ao perderem seus reflexos de vôo passaram a se chocarem violentamente contra pessoas, carros e janelas dos prédios, causando um enorme tumulto na cidade (lembrando o clássico “Os Pássaros”/1963, de Alfred Hitchcock); passando também por mudanças radicais no visual do céu com a formação de uma estranha aurora boreal permanente; e culminando com um acidente aéreo envolvendo um ônibus espacial que desviou sua trajetória de aterrissagem tendo que descer de forma improvisada em Los Angeles, num vôo rasante por um estádio de baseball e pousando no leito de concreto de um rio urbano. (Essa cena gerou grande polêmica nos Estados Unidos por causa de um acidente trágico e real na época de lançamento do filme, com um ônibus espacial que explodiu ao entrar na atmosfera em sua viagem de retorno, matando todos seus tripulantes. O trailer promocional chegou a ser retirado dos cinemas e quase que a sequência do acidente foi censurada do filme. Essas atitudes são equivocadas, pois a vida real é bem diferente das histórias felizes do cinema, que são apenas diversão, e o público deve aprender a lidar com ambas as situações. A dura realidade da vida deve ser encarada com determinação e o cinema deve ser tratado apenas como um mundo de ilusão e entretenimento.)

Preocupado com os diversos incidentes estranhos, o governo americano recruta os serviços de um talentoso professor de faculdade, o geofísico Josh Keyes (Aaron Eckhart), juntamente com seu amigo especialista em armas atômicas, o francês Sergei Laveque (Tchéky Karyo), para estudarem os confusos acontecimentos. (Outro fato curioso: com a guerra no Iraque e a invasão imperialista dos Estados Unidos, e tendo a França na liderança da Europa como oposição a esse conflito de interesses econômicos, parece bem inviável na atualidade do mundo real a união ocorrida no filme entre americanos e franceses, mesmo que por um objetivo comum de salvar o mundo.)

Após uma série de estudos e cálculos, o professor Keyes chega à conclusão que o núcleo da Terra parou de girar e que como consequência ocorrerão uma infinidade de eventos climáticos que destruirão o planeta num curto prazo de um ano. Ao informar o laudo para uma cúpula do alto escalão do exército americano, e com a confirmação do cientista do governo, o arrogante Dr. Conrad Zimsky (Stanley Tucci), eles decidem criar um projeto secreto para tentar reativar a rotação do núcleo do planeta através da detonação de bombas atômicas em seu interior.

Para chegar ao núcleo eles constróem em tempo recorde de apenas três meses um veículo especialmente projetado pelo Dr. Edward Brazleton (Delroy Lindo), um antigo desafeto do Dr. Zimsky, um aparelho capaz de perfurar a crosta terrestre e viajar em alta velocidade por ambientes de temperaturas super elevadas. Para pilotar a incrível máquina, foram chamados os astronautas do ônibus espacial acidentado, a Major Rebecca “Beck” Childs (Hilary Swank) e o Coronel Robert Iverson (Bruce Greenwood), e o time de especialistas da missão ao centro da Terra foi concluído com os outros tripulantes, o professor Keyes, seu amigo Sergei, e os cientistas Dr. Brazleton e Dr. Zimsky. Além de um excêntrico hacker que ficaria no centro de operações do projeto, com a função de controlar o fluxo de informações e boatos pela internet sobre a missão, conhecido como “Rat” (D. J. Qualls).

A missão tem início e a equipe de “terranautas” enfrenta todo tipo de perigos e aventuras rumo ao centro do planeta para detonar um grupo de ogivas nucleares que numa reação em cadeia poderiam reativar o “motor” interior, novamente acionando a rotação das rochas fundidas ao redor do núcleo, e assim poder salvar o mundo de sua iminente destruição.      

 “O Núcleo – Missão ao Centro da Terra” tem um enorme subtítulo nacional totalmente desnecessário, confirmando mais uma vez a equivocada tendência de nomear os filmes que chegam ao Brasil com subtítulos que não trazem nada de útil. Nesse caso, basta manter a tradução literal do original, “O Núcleo” (The Core), que funcionaria muito bem, de forma simples e sem burocracia.

O filme deve ser interpretado unicamente como exercício de entretenimento, através de suas belas imagens visuais como nas cenas de desastres com a explosão do histórico “Coliseu” em Roma, por um combinado de potentes descargas elétricas, ou a famosa ponte “Golden Gate” em San Francisco, vítima do poder destrutivo dos raios solares quando não foram amparados pelo campo eletromagnético que envolve o planeta, e que permitiu sua entrada por buracos provocados pela inatividade de rotação do núcleo da Terra. Ou ainda através das belíssimas imagens do interior do planeta, num desfile de magmas derretidos e enormes cristais.

Pois a quantidade de situações inverossímeis, clichês característicos e pouca originalidade tende ao infinito, típico de filmes de catástrofes sobre o fim do mundo e onde a humanidade (leia-se “americanos”) precisa encontrar um meio de salvação num prazo curtíssimo de tempo. “O Núcleo” lembra com grande semelhança uma infinidade de outros filmes, em especial o recente “Armageddon” (1998), de Michael Bay, com o perito em escavações Bruce Willis liderando uma equipe formada por um grande elenco com Ben Affleck, Will Patton, Steve Buscemi, Owen Wilson, Michael Clarke Duncan e Peter Stormare, na tentativa de explodir um enorme meteoro que está em rota de colisão com a Terra, voando numa nave espacial até o corpo celeste e implantando uma bomba de grande potência em seu interior. A diferença para “O Núcleo” é que a ameça agora vem de dentro do nosso próprio planeta.

“O Núcleo” já teve alguns filmes antecessores que também utilizaram o centro da Terra como ambiente para suas tramas. Em 1959, “Viagem ao Centro da Terra” (Journey to the Center of  the Earth), dirigido por Henry Levin baseado na clássica história escrita por Jules Verne, mostrava um grupo liderado pelo cientista professor Lidenbrooke (interpretado pelo astro James Mason) fazendo uma perigosa expedição rumo ao interior de nosso planeta, descobrindo a existência de um oceano subterrâneo, além da presença de gigantescos animais pré-históricos vivendo num mundo desconhecido e restos de uma antiga civilização intraterrestre. E em 1976, “No Coração da Terra” (At the Earth´s Core), filme inglês dirigido por Kevin Connor e com Doug McClure e Peter Cushing, baseado em fantástica história de Edgar Rice Burroughs, um veículo projetado especialmente para perfurar as rochas do solo, faz uma viagem para o núcleo da Terra, encontrando uma misteriosa civilização vivendo em seu interior, além de perigosos animais pré-históricos.    

Se o mundo do cinema pudesse ser refletido para a vida real, nós todos estaríamos despreocupados pois os heróicos americanos estão sempre prontos para salvar a humanidade e o nosso planeta de todos os tipos de ameaças, sejam elas do intrigante e infinito espaço exterior ou mesmo das profundezas desconhecidas da própria Terra. Mas o cinema é apenas ficção, e o mundo real está repleto de guerras, fome e violência, com grande participação dos Estados Unidos e sua política externa equivocada.

Voltando para o campo da imaginação, o melhor a fazer é relaxar e procurar se divertir com as fantasias apresentadas nos filmes, mergulhando num mundo onde tudo é possível e há solução para todos os tipos de problemas.   

 Nota: O filme foi exibido pela primeira vez na televisão aberta em 26/03/06, Domingo, às 20:30 horas, pelo SBT, na sessão “Oito e Meia”. 

O Núcleo – Missão ao Centro da Terra (The Core, Estados Unidos, 2003). Horsepower Films / Paramount Pictures / UIP. Duração: 134 minutos. Direção de Jon Amiel. Roteiro de Cooper Layne e John Rogers. Produção de Sean Bailey, David Foster e Cooper Layne. Música de Christopher Young. Fotografia de John Lindley. Direção de Arte de Andrew Neskoromny e Sandi Tanaka. Desenho de Produção de Philip Harrison. Edição de Terry Rawlings. Elenco: Aaron Eckhart (Josh Keyes), Hilary Swank (Major Rebecca “Beck” Childs), Delroy Lindo (Dr. Edward Brazleton), Stanley Tucci (Dr. Conrad Zimsky), D.J. Qualls (Rat), Tchéky Karyo (Sergei Laveque), Bruce Greenwood (Coronel Robert Iverson), Alfred Woodard, Nicole Leroux, Gregory Bennett, Dion Johnstone, Christopher Shyer, Richard Jenkins.

(Juvenatrix - Maio 2003)

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O Alienado

    O Alienado, Cirilo S. Lemos. Arte e capa de Eriksama. Quadrinhos de Virgílio. 239 páginas. São Paulo: Editora Draco, 2012.
   
O final da leitura deste romance me deixou estupefato. Afinal estava diante de uma história interessante, complexa, mas com um sentimento de desconforto ante a incompreensão não só do desfecho, mas da trajetória inteira da leitura.
    Este é um tipo de ficção científica não muito comum, em especial no Brasil, mas que vem ganhando a cena nas últimas décadas: estrutura narrativa fragmentada, intercalada por vozes diferentes, um enredo que não parece buscar um rumo mais coerente enquanto a história se desenvolve, e discussão entre conceitos de identidade pessoal e realidade do mundo material. Claro que há autores consagrados que trabalharam questões como estas, e há ecos perceptíveis, aqui e ali, de Kafka e Philip K. Dick. Mas nota-se que Lemos procura por uma voz própria. Tem a seu favor, menos que uma história interessante, a qualidade intensa de sua prosa. Bons diálogos, boas escolhas de palavras, boa narração de cenas de ação, e com um rico apuro visual. Prova adicional desta criatividade é a intercalação da narrativa em prosa com sequências em quadrinhos muito expressivas, e que não são meros acessórios, mas integrados à boa qualidade da narrativa em prosa.
    Num futuro indefinido, mas não muito distante, existe uma metrópole chamada de Cidade-Centro. Nela acompanhamos a vida de Cosmo Kant, um sujeito que foi despedido do emprego, faz sessões de terapia, escreve um romance, briga com a esposa, e acaba internado num centro de reabilitação. Além desta sequência, que não é apresentada de forma linear, dada a proposta fragmentada do texto, temos ainda a descrição de infância e sua amizade com um menino mais velho, além de sua relação problemática com a mãe repressora e o pai ausente.
    Conforme o texto progride, há idas e vindas nestas situações, de tal maneira que a certo momento elas parecem se misturar umas às outras. Cosmo vai perdendo sua identidade, não sabe mais o que é real ou farsesco, numa situação provocada menos por ele, e mais pelo tal centro de reabilitação. Para aumentar esta indefinição, eventos descritos no seu romance começam a se tornar realidade e interagir com sua própria vida, como a presença dos inspetores que investigam a presença de um Forasteiro e uma misteriosa mulher, que estariam por trás de uma série de atentados terroristas, contra um governo ditatorial que afirma estar em guerra, não se sabe ao certo contra quem. O centro de reabilitação é composto pelos metafilósofos, que manipulam as memórias e reconstroem as identidades dos seus pacientes, com fins que não ficam inteiramente claros. Pelo menos não para mim e menos ainda para o infeliz do Cosmo Kant.
    O Alienado é um livro que trabalha de forma interessante a questão da identidade, como já ressaltado, mas principalmente a da memória. Até que ponto as lembranças refletem realmente situações como as vivemos? Se é fato que as pessoas costumam suavizar suas experiências passadas – e esconder suas tristezas –, e ter no futuro algum horizonte de melhora, o presente costuma ser mais difícil de lidar. Mas neste romance a impressão é que passado, presente e futuro estão embaralhados. Além do fato de tudo ser, muito provavelmente, manipulado, com objetivos obscuros. Ou então, tudo pode não passar da alucinação de um esquizofrênico. Vai da compreensão de cada um que ler a história.
    Neste contexto incerto os momentos de maior empatia estão no passado de Cosmo, de quando ele era um menino solitário e carente. Que tentava suprir a ausência do pai – um marinheiro que visitava a família duas vezes por ano –, com a amizade com um menino mais velho, leitor ávido de livros, inteligente e paquerador, mas também com suas dificuldades, com uma mãe que se prostituía. Talvez tenha as melhores sequências porque seja a única parte do romance com uma estrutura mais convencional do ponto de vista de sua compreensão. É como se depois de uma tragédia com a qual sua amizade é encerrada, ele adentrasse de modo abrupto o mundo real, cheio de injustiças e descontrole. Tanto de sua vida, como da sociedade repressora e altamente burocratizada em que vive.
    O Alienado foi finalista do Prêmio Argos 2013, uma indicação da receptividade positiva que teve entre os fãs e alguns dos poucos críticos interessados no gênero em nosso país. Seu romance mais recente é E de Exterminador (2015), que vai na linha das histórias dieselpunk, um subgênero da ficção científica retrofuturista, tal qual o steampunk. A distinção é que, enquanto no steampunk os veículos são movidos a vapor, no dieselpunk os veículos são movidos a diesel ou outro tipo de combustível. 
    Percebe-se em O Alienado uma força criativa e arrojo de estilo pouco comum em nossa FCB mas, não o vejo como uma história palatável para a maioria dos leitores do gênero, ou fora dele. Falta ao livro um sentido de causalidade e compreensão um pouco mais claro, que o torne mais inteligível para o leitor, e não creio que tais caraterísticas, se bem dosadas, pudessem comprometer a proposta literária, assumidamente pós-modernista em sua incerteza temática e fragmentação narrativa.
  – Marcello Simão Branco

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Noite dentro da noite, Joca Reiners Terron

Noite dentro da noite, Joca Reiners Terron. 464 páginas. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2017.

Há relações evidentes entre a ficção fantástica e o Surrealismo como proposta para o discurso artístico. O atrito entre o que é e o que não é, o real e o imaginário, o desperto e o onírico é o que constrói as narrativas, formando a substância do que poderia ser. Se o Surrealismo plástico lançou mão da combinação de imagens incompatíveis, a ficção fantástica cria interferências na realidade usando o sobrenatural, o metafísico e o absurdo, costurando bem seus contornos e disfarçando com retoques do que se convencionou chamar de "suspensão da incredibilidade". Conforme o conjunto, damos-lhe a classificação de fantasia, ficção científica ou horror.
No início do período pulp, ou seja, anos 1930, os três gêneros conviviam misturados e só separaram conforme os interesses comerciais predominaram no meio editorial dos EUA. Mas os autores não vinculados ao modelo anglo-americano continuaram a trabalhar a ficção fantástica sem sectarização, e esse tipo de tratamento, ainda que muito suavizado pelas propostas modernistas, também teve representantes na literatura brasileira. É dessa forma que podemos entender a literatura que Joca Reiners Terron traz à luz em Noite dentro da noite, vultoso romance publicado em 2017 pela editora Companhia das Letras, que foi razoavelmente comentado quando de seu lançamento, mas com pouca ou nenhuma repercussão dentro do fandom brasileiro de fc&f, o que é muito imerecido. Isso porque Terron nos apresenta um trabalho denso, repleto de perturbações e literariamente sofisticado, que se estabelece tanto na tradição do fantástico latino-americano quanto na literatura brasileira recente.
O romance conta a história de um jovem que, devido a um acidente, perde toda a memória. Pouco depois, vê-se levado abruptamente para uma terra estranha – a região do Pantanal mato grossense, na fronteira com o Paraguai –, onde vai passar a adolescência como um pária, perseguido barbaramente pelos colegas na escola e convicto de que sua mãe – a quem se refere como a Rata – e o pai, um gerente de banco severo e distante, não são seus pais verdadeiros. Mas as tragédias não se esgotam aí. Sua vida vai se misturar com a de personagens míticos e históricos, como o tradutor Curt Meyer-Clason – narrador de boa parte do que lemos –, o marinheiro e cientista nazista Kurt Meier – que, apesar do nome, não é a mesma pessoa –, o assassino imortal El Cazador Blanco, um submarino fantasma do Chaco paraguaio, uma entidade vegetal referida pelo impronunciável nome de Pyhareryepypepyhare – ou a flor-vampiro –, Elisabeth Nietzsche e seu marido Bernhard Förster – que realmente fundaram uma vila anti-semita no Paraguai, em 1887 – e uma infinidade de membros da família Reiners, personagens torturados, sempre à sombra da histórica nevasca que destruiu a economia do estado do Paraná em 1975. Até a a escritora Hilda Hilst faz uma pontinha.
A história ainda passa pela Segunda Grande Guerra, pela ditadura militar, pela guerrilha do Araguaia, e chega até o período da abertura política, incluindo um atentado a bomba num comício na Candelária, no Rio de Janeiro, que mata um promissor candidato a presidência da República que, alguns poderão dizer, faz deste um legítimo romance de história alternativa.
Terron também mistura referências autobiográficas com a mais transgressora ficção, sem poupar o leitor nas passagens de violência e horror explícitos, delírios de pesadelo regados a fortes doses de fenobarbital, longos passeios de carro por estradas de terra e uma narrativa não linear que salta como uma máquina do tempo enlouquecida, avançando e recuando sem aviso prévio, com histórias dentro de história num efeito rocambolesco que amplia ainda mais a inadequação melancólica do protagonista.
Não é possível dizer que Noite dentro da noite seja um livro de ficção fantástica. Também não é possível dizer taxativamente que não é. Talvez seja o mais bem acabado exemplo de surrealismo literário já cometido em Terra Brasilis. Isso fica para o leitor decidir.
Desorientados é como saímos desta leitura complexa e angustiante, que remete à Roberto Bolaño e David Foster Wallace. Não sei quanto aos demais leitores mas, por associação, arrisco dizer que é um livro muito bom e que uma leitura é recomendável. Provavelmente, mais de uma.
Cesar Silva

sábado, 15 de agosto de 2020

A floresta sombria, Cixin Liu

A floresta sombria (Hēi'àn sēnlín), Cixin Liu. 472 páginas. Tradução de Leonardo Alves. Editora Companhia das Letras, selo Suma, São Paulo, 2017.

Primeiro: a principal necessidade de uma civilização é a sobrevivência. Segundo: a civilização cresce e se expande continuamente, mas a matéria total do universo permanece constante.
Estas são as premissas que definem A floresta sombria, segundo volume da série Remembrance of Earth's past, do escritor chinês Cixin Liu, cujo primeiro volume, O problema dos três corpos, ganhou o prêmio Hugo em 2015 quando de sua tradução para o inglês, além de ter sido indicado para o Prêmio Nebula.
Dividida em três partes, “Barreiras”, “O feitiço” e “A floresta sombria”, esta continuação trata do que acontece à Terra quando a frota alienígena trissolar inicia sua viagem de invasão que, mesmo a dez por cento da velocidade da luz, vai durar quatrocentos anos devido a grande distância entre os planetas.
O projeto de invasão, apresentado já no romance anterior, é administrado a partir de Trissolaria – um planeta que orbita um sistema estelar trinário em que as condições de sobrevivência são caóticas – através de sondas quânticas chamadas sófons, que se ligam à mente de certos humanos e permitem a comunicação instantânea com os alienígenas, algo similar ao ansível proposto pela escritora americana Ursula K. Le Guin em alguns de seus romances. A ação dos sófons também gera na humanidade um bloqueio mental que impede  o avanço da ciência terrestre, de forma que não seja possível defender-se da invasão, ainda que ela só vá acontecer em quatro séculos. O futuro conflito, chamado de Guerra do Fim do Mundo, deixa a humanidade em polvorosa e, embora seja algo distante, causa grande comoção porque tudo leva a crer que o homem será inevitavelmente exterminado pelos trissolarianos.
Para enfrentar o problema, a ONU cria um programa de longo prazo chamado Projeto Barreiras, e escolhe quatro homens especiais para desenvolverem, em segredo absoluto, estratégias que possam fazer frente a força trissolar. Os planos não podem ser discutidos com ninguém, pois os sófons trissolares poderiam descobri-los. Os quatro homens, que se tornam personalidades mundiais com plenos poderes para fazer o que fosse necessário para viabilizar suas estratégias, são: Frederick Tyler, ex-secretário de defesa dos EUA, o ex-presidente venezuelano Manuel Rey Diaz, o neurocientista inglês e prêmio Nobel Bill Hines, e o escritor chinês Luo Ji.
Desde o início, Lou Ji resiste a sua indicação, por não se considerar a altura de um projeto de tal magnitude, mas a forte pressão da ONU o obriga e ele finge concordar. Enquanto as demais barreiras promovem planos de altos impacto e custo, que buscam o desenvolvimento de superbombas, frotas de espaçonaves, máquinas de reprogramação mental, criogenia e outras tecnologias que, apesar de extrapoladas, são apenas avanços de conceitos científicos já existentes – pois as novas descobertas estão retidas pelo bloqueio sófon –, Lou Ji usa os poderes de seu estatuto para encontrar a mulher de seus sonhos e com ela viver um idílio pastoral num paraíso retirado. A falta de resultados palpáveis de Lou Ji irrita seus superiores que decidem congelar sua esposa perfeita e a filha que com ela teve, para serem descongeladas somente no futuro, e obrigá-lo a trabalhar a força de chantagem.
Mas os trissolarianos também não ficam inertes. Além de despacharem uma pequena frota de sondas não tripuladas que chegarão à Terra duzentos anos mais cedo, implementam o programa Destruidores de Barreiras, que seleciona humanos ligados a sófons para descobrir os planos das barreiras e anulá-los. Aos três figurões, os seus destruidores têm a missão de desmoralizar, no que são plenamente bem sucedidos, mas a Luo Ji, cujos planos são aparentemente indecifráveis, é decretada a pena de morte. Sua única providência acaba sendo enviar, para uma estrela distante, uma mensagem que ele chamou de "feitiço". Logo depois de disparar seu feitiço, Luo Ji contrai uma doença mortal desconhecida, aparentemente criada pelos trissolarianos para esse fim, e é congelado para ser despertado somente quando uma cura fosse descoberta.
Duzentos anos depois, às vésperas da chegada  da primeira sonda trissolariana, Lou Ji é curado e descongelado apenas para ser destituído de seu cargo de barreira. Ele encontra uma Terra muito diferente daquela que deixou no passado, com a sociedade vivendo em cidades subterrâneas autônomas, governada pela força de defesa espacial e absolutamente confiante de que vencerá a Guerra do Fim do Mundo. A chegada da sonda parece reforçar suas certezas, pois trata-se de um veículo tão belo e elegante que só pode ser um presente de paz. Mas o que virá a seguir é o horror da absoluta estupidez humana. Sem qualquer esperança, resta à humanidade lançar-se à orgia dionisíaca ou esperar que o desprezado e ridicularizado feitiço de Luo Ji cause enfim algum resultado.
A floresta sombria é um romance massivo, denso, de personagens vívidos e situações dramáticas intensas. Do ponto de vista formal, é tão ou mais elaborado que o volume anterior, e apresenta uma história mais evidentemente vestida de ficção científica, sem tantos elementos regionais chineses quanto visto em O problema dos três corpos. Também percebe-se a grande habilidade do autor em manter todas as costuras do enredo muito bem alinhavadas, com os eventos conclusivos dialogando diretamente com as conceitos apresentados nas primeiras páginas do romance, numa legítima hard fiction de dimensão cósmica desnorteante, ainda que as extrapolações futuristas do terço final revelem um panorama difícil de aceitar depois de seiscentas páginas de uma história em tudo contemporânea. Mas Liu não perde a mão, pois o foco segue sendo nos personagens. Curioso, neste aspecto, o fato que o único personagem do primeiro volume que se manteve neste foi o detetive Da Chi, que parece assim ser o avatar do autor na história. Também é importante observar que Liu apresenta, em meio ao romance, diversos conceitos filosóficos muito interessantes, que por si só justificam a sua leitura.
A edição da Companhia das Letras em seu selo Suma – antes chamado Suma das Letras – é caprichada, com ótima tradução de Leonardo Alves e uma revisão muito boa, com poucos deslizes.  A terceira e última parte da série, O fim da morte (Death's end), originalmente publicada em 2010 e publicada em inglês em 2016, foi traduzida no Brasil em 2019, pela mesma editora, porém, devido à crise editorial e financeira que se agravou no país nos últimos anos, foi publicada apenas em ebook, com exemplares impressos fornecidos apenas por encomenda.
Ainda assim, esta é uma trilogia que vale a pena conhecer, não apenas por suas qualidades intrínsecas, mas por ser um poderoso exemplo da fc produzida fora do eixo anglo-americano que foi um sucesso enorme em seu país de origem e, exatamente por isso, conquistou o mundo. Quando começamos a ouvir de autores experientes de que a solução para os autores brasileiros de fc é escrever em inglês para o mercado internacional, o exemplo de Cixin Liu é um argumento devastador.
Cesar Silva

A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (Sleep Hollow, EUA, 1999)

 


(Texto escrito em Maio de 2000 e publicado originalmente no fanzine Juvenatrix # 44)

               Com produção de Francis Ford Coppola e direção de Tim Burton, já fica previsível o resultado dessa união: um excelente filme de horror gótico, “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça”, com todos os elementos característicos do gênero, casarões sombrios, florestas com árvores fantasmagóricas e constante névoa espessa, cemitério horripilante com suas lápides de pedra, carruagens e vestuário do século XIX, etc. Burton também homenageou o lendário ator Christopher Lee, que participou em magistrais, nostálgicos e emocionantes 3 minutos de película na pele de um burgomestre, assim como ele fez em 1990 com o já falecido Vincent Price em “Edward Mãos de Tesoura”.

                Lee é o único, ainda vivo com mais de 90 anos de idade, do grupo de atores que moldaram o Horror cinematográfico ao longo dos anos 1950, 60 e 70, ao lado de Price (1911-93), Peter Cushing (1913-94), John Carradine (1906-88) e Donald Pleasence (1919-95), entre outros, e que tem sua carreira principalmente marcada por suas interpretações como o “Conde Drácula” (das produtoras inglesas “Hammer” e “Amicus”), e diversos outros vilões do Horror. O diretor também homenageou novamente o grande e veterano Martin Landau, que participou em poucos minutos no início do filme como o patriarca da família Van Garrett, sendo logo decapitado. Ele também é um ícone do gênero muito conhecido por atuar fixo na antiga série de ficção científica da TV “Espaço 1999”. Um fato estranho é que ele não aparece nos créditos do filme.

               Tem também o eterno vilão do cinema moderno Christopher Walken (o diabólico anjo Gabriel de “Os Anjos Rebeldes”, 1994), cujo nome só aparece nos créditos finais (o que também é estranho). Ele, que encarnou magistralmente o cavaleiro decapitador de cabeças (quando ele ainda tinha a sua, é claro), sem precisar emitir uma única palavra e apenas utilizando-se de interpretações faciais e grunhidos de gelar a alma dos vivos e mortos, ajudado pela expressão de seus dentes pontiagudos serrilhados especialmente para impor de forma mais acentuada sua ferocidade anormal.

                E para completar o time, o jovem casal de protagonistas é formado por Johnny Depp e Christina Ricci. Ele iniciou sua carreira no primeiro filme da franquia “A Hora do Pesadelo” (1984), além do drama de guerra “Platoon” (1986), a série televisiva “Anjos da Lei” (1987-90) e participações em outros filmes de Burton como “Edward Mãos de Tesoura” e “Ed Wood’. Já a lindíssima Christina Ricci, cuja beleza fenomenal é a única oposição ao horror sanguinário do filme, foi a garota esquisita de “A Família Addams”, com os cabelos morenos, e agora produzida com longos cabelos loiros, que realçaram ainda mais sua beleza.

                Depois de uma introdução desse porte fica fácil imaginar a grandiosidade dessa obra, que já concorre como um dos melhores filmes de horror dos carentes últimos tempos. “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” (Sleepy Hollow, 1999) estreou nos cinemas brasileiros em 28/01/2000, dirigido por Tim Burton, que já é conhecido por suas outras produções similares dentro do universo gótico como a belíssima fantasia “Edward Mãos de Tesoura”, “Batman” 1 e 2, a homenagem emocionante “Ed Wood”, as animações dark “O Estranho Mundo de Jack”, “A Noiva Cadáver” e “Frankenweenie”, a comédia “Os Fantasmas Se Divertem”, a divertidíssima paródia de ficção científica “Marte Ataca!”, a versão de 2001 de “Planeta dos Macacos”, a de 2005 de “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, a de 2010 de “Alice no País das Maravilhas” e a de 2012 de “Sombras da Noite”, além do musical “Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet”.

                O cinema de Horror ao longo de sua história gerou muitas faces, entre elas os velhos filmes góticos ambientados em séculos recentes do passado, com mansões obscuras, famílias amaldiçoadas, ou as obras que exploraram o horror psicológico em histórias de fantasmas e assombrações, ou ainda aqueles centrados em violência explícita com muito sangue entre zumbis, monstros disformes e psicopatas modernos. Mas o horror que mais assusta e influencia o público é certamente aquele mais próximo da realidade do que da ficção. A história da humanidade está repleta de referências e provas decisivas de grandes atrocidades cometidas como guerras bestiais e sangrentas e torturas insanas, e vários foram os filmes que utilizaram essa temática. “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” mistura a realidade dos ferozes guerreiros do passado que empalavam e decapitavam suas vítimas por puro prazer sádico, à ficção sobrenatural de fantasmas que retornam do inferno para continuar a espalhar sangue através de suas espadas. A união desses elementos resultou num filme agressivo por sua violência, apesar de bons momentos de humor negro, e divertido por suas caracterizações góticas, sem contar as diversas homenagens que Tim Burton fez tanto com os atores especialmente convidados quanto às referências de velhos filmes.

               O diretor já havia feito isso de maneira muito mais detalhada na paródia de FC “Marte Ataca!” (1996), onde ele homenageia todos os velhos clichês da ficção científica dos anos 50 e 60, a época dos “monstros de olhos esbugalhados” e a paranoia de invasão comunista aos Estados Unidos, num exercício de pura nostalgia e entretenimento, com referências explícitas a diversos clássicos do cinema “B” como “O Dia Em Que a Terra Parou” (51), “A Invasão dos Discos Voadores” (56), “A Guerra dos Mundos” (53) e “O Planeta dos Macacos” (68).

                Em “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça”, baseado no livro “The Legend of Sleepy Hollow”, de Washington Irving, a história passa-se em 1799 e fala de um sanguinário guerreiro (Christopher Walken) cuja especialidade era decepar as cabeças de seus inimigos em batalhas decididas pelo aço das lâminas das espadas. Ele era como se fosse o próprio demônio na Terra, lembrando personagens reais de nossa sangrenta história como o Drácula que empalava seus prisioneiros de guerra. Um fato curioso é que nas cenas onde o vilão já está sem sua cabeça e nas sequências onde ele cavalga seu corcel negro, a interpretação ficou por conta de Ray Park, o Darth Maul do episódio I de “Star Wars: A Ameaça Fantasma”.

 (Atenção: o texto a seguir contém spoilers)

                Após muito tempo colecionando mortes em seu currículo de sangue, o cavaleiro decapitador foi finalmente pego numa emboscada e morto com um destino irônico, pois deceparam-lhe a cabeça, fato testemunhado por duas pequenas meninas que estavam nas proximidades. Seus restos mortais foram então enterrados numa floresta e o local de sua cova ficou conhecido como “A árvore dos mortos“, um verdadeiro portal entre o mundo externo e o inferno. Muitos anos se passaram e uma das meninas, já adulta, desenterrou o cavaleiro e roubou-lhe o crânio, incitando feitiçaria para trazer de volta do além o assassino em busca de sua cabeça, que agora estava sob o poder negro da moça. Ele é incitado a decapitar brutalmente os aldeões de uma pequena comunidade chamada “Sleepy Hollow”.

                A moça, Lady Van Tassel (interpretada por Miranda Richardson), está agora casada com um rico fazendeiro da região, Baltus Van Tassel (Michael Gambon), e ela planeja matá-lo e às principais personalidades do vilarejo para herdar fortunas e propriedades. Com o crânio do cavaleiro sanguinário em suas mãos, ela controla e ordena seus assassinatos, todos com requintes de crueldade e cabeças decepadas. Para ajudar nas investigações das mortes, é então enviado um detetive de New York, Ichabod Crane, o jovem interpretado por Johnny Depp num estilo Sherlock Holmes, que tem a missão de desvendar a lenda do cavaleiro sem cabeça. Ele, ajudado pela jovem Katrina Van Tassel (interpretada por Christina Ricci) e principalmente por um garoto, órfão graças ao decapitador, consegue descobrir a trama sobrenatural e ao devolver o crânio ao cavaleiro negro ele despacha-o novamente para o mundo das trevas, levando consigo a moça que havia roubado sua cabeça.

           São várias as cenas memoráveis ao longo do filme, como a autópsia feita pelo detetive no cadáver de uma senhora grávida, vítima do decapitador, onde um preciso corte no abdômen denuncia também a decapitação do feto, e que deixou o jovem coberto de sangue parecendo um açougueiro em um matadouro; os pesadelos do detetive ambientados em sua infância, num momento onde ele entra em uma câmara de torturas e vê sua mãe, Lady Crane (Lisa Marie), morrendo aprisionada em um brutal instrumento de tortura da inquisição que rasgou toda a sua carne e dilacerou seu corpo em um banho de sangue; a sequência do duelo entre o cavaleiro decapitador e um corajoso jovem, Brom Van Brunt (interpretado por Casper Van Dien, de Tropas Estelares, 97), onde após longa batalha de espadas, o vilão, manuseando duas armas cortantes nas mãos com uma habilidade sobrenatural, esquarteja o jovem em dois pedaços; o momento onde o detetive, procurando pistas sobre o local da cova do cavaleiro sem cabeça, entra em contato com uma feiticeira da floresta (na verdade, a irmã de Lady Van Tassel, que também testemunhou a morte do vilão), a qual lhe revela a existência e o mapa da “árvore dos mortos” através da possessão de um demônio; a cena onde o jovem Crane, de posse de um grande machado, desfere vários golpes nas raízes da “árvore dos mortos” e a cada golpe uma enorme golfada de sangue jorrava da árvore manchando a sua face; ou ainda a sequência final da luta entre o cavaleiro sem cabeça e o detetive num moinho de vento abandonado, numa clara referência ao clássico Frankenstein (31), onde também na sequência final a criatura e o criador se confrontam mortalmente num moinho idêntico.

 (Fim dos spoilers)

         Depois de tudo que foi relatado fica óbvio dizer que o filme é uma grande diversão e homenagem ao cinema de horror. Pois tem grandes personalidades envolvidas no projeto como Francis Ford Coppola (diretor do clássico sobre a Guerra do Vietnã “Apocalypse Now”, 79, da clássica trilogia de máfia “O Poderoso Chefão” e do moderno “Drácula”, 1992), os veteranos atores Christopher Lee e Martin Landau em pequenas, porém notáveis participações e ainda outros artistas talentosos como Christopher Walken e Johnny Depp. Tem todos os elementos góticos do horror numa atmosfera sombria de épocas passadas onde lendas sobrenaturais imperavam em meio às atrocidades reais. E tem Tim Burton, um diretor não convencional, em um excelente momento cinematográfico proporcionando nostalgia e entretenimento, e mostrando que o gênero fantástico ainda sobrevive com talento, principalmente quando se propõe a homenagear com respeito e admiração os velhos clichês do estilo.

 A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (Sleepy Hollow, EUA / Alemanha, 1999). Duração: 105 minutos. Direção de Tim Burton. Produção de Francis Ford Coppola. Roteito de Andrew Kevin Walker (o mesmo de Seven), baseado no livro The legend of Sleepy Hollow, de Washington Irving. Fotografia de Emmanuel Lubezki. Desenho de Produção de Rick Heinrichs. Música de Danny Elfman. Efeitos Especiais de Jim Mitchel (Industrial Light & Magic). Elenco: Martin Landau, Christopher Lee, Christopher Walken, Johnny Depp, Christina Ricci, Miranda Richardson, Michael Gambon, Michael Gough, Ian McDiarmid, Casper Van Dien.

(Juvenatrix - Maio 2000)

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Ninguém nasce herói, Eric Novello

Ninguém nasce herói, Eric Novello. 378 páginas, Editora Companhia das Letras, selo Seguinte, São Paulo, 2017.

A chegada de autores brasileiros ligados ao fandom de literatura fantástica ao catálogo da prestigiosa editora Companhia das Letras é um fato aguardado desde que a editora inaugurou selos exclusivos para a ficção de gênero. Não que autores do fandom já não tivessem conseguido, pois textos de fantasia e horror já não são novidade há muito tempo, não só na Companhia da Letras, mas também em outras grandes editoras nacionais. A questão era: quem seria o grande felizardo que finalmente colocaria a ficção científica nacional nas livrarias pela editora? Tanto que, não é de hoje, circula entre os fãs do gênero a máxima "a fc nacional só decola quando o gênero encontrar o seu André Vianco" (em referência ao best-seller dos romances de horror). Então, o anúncio que Ninguém nasce herói, romance do jovem tradutor carioca Eric Novello, estava na programação do selo Seguinte da Companhia das Letras respondeu a essa expectativa.
Como autor, Novello está associado à Terceira Onda da fc brasileira, geração surgida após o advento da internet. Seu primeiro livro foi Histórias da noite carioca (2004, Lamparina), mas ganhou notoriedade na editora Draco –  reconhecida pela dedicação à produção nacional de fc –,  pela qual publicou os romances Neon azul (2010) e A sombra no sol (2012). Novello também é autor de Exorcismos, amores e uma dose de blues, romance de fantasia publicado em 2014 pelo selo Gutenberg da editora Autêntica.
A sinopse de Ninguém nasce herói é uma distopia na qual a população brasileira é oprimida por um governo integralista, depois que um religioso intolerante, chamado de "O Escolhido", chega à Presidência da República. A violência se instala na sociedade sob o jugo de uma brigada paramilitar – a Guarda Branca – que passa a patrulhar as ruas atacando aqueles de quem não gosta, como é o caso do protagonista, apelidado de Chuvisco, jovem tradutor recém-formado que considera a distribuição de livros nas ruas de São Paulo como uma forma de resistência civil. Para isso, conta com a ajuda de alguns amigos que com ele formam uma espécie de aparelho subversivo do bem, embora, no fim das contas, sejam apenas jovens que querem viver e se divertir. A maior parte do tempo, os garotos – cujas famílias estão ausentes – estão em alguma balada ou brigando, por vezes as duas coisas simultaneamente. Chuvisco é propenso a surtos psicóticos – catarses criativas como ele mesmo os chama –, sempre que fica muito alterado. Durante as tais catarses, tem delírios despertos que mesclam fantasia e realidade: ora ele se vê como um super-herói hipertecnológico, ora tem encontros com entidades purpurantes que só existem em sua imaginação. De briga em briga, as relações entre Chuvisco e seus amigos, que parecem nunca ter sido realmente muito sólidas, vão deteriorando, o que nesse ambiente de violência só pode levar à tragédia. Também há uma discussão discreta sobre sexualidade contextualizada na ampla diversidade de gênero dos personagens.
Há alguma imprecisão quanto a natureza religiosa desse Brasil de exceção criado por Novello. Em alguns momentos, parece que O Escolhido é um tipo evangélico neopentecostal mas, quando focalizado mais de perto, já no final do livro, revela ser católico, o que me levou a pensar nesse contexto como uma fabulação da ditadura militar que assolou o país entre 1964 e 1985, o que faria muito sentido.
É inevitável comparar a aventura urbana de Chuvisco e sua turma com aquela que o escritor chileno Roberto Bolaño desenvolve em O espírito da ficção científica, que não é fc, apesar do nome,  publicado pela Companhia das Letras em 2017. Outro trabalho com o qual também se pode montar algum diálogo é "A grande virada de Vitinho", visto na coletânea 17 histórias alternativas, cômicas e futuristas, de Ataíde Tartari (Virtual Books, 2013), autor da Segunda Onda da fc brasileira que,  no caso, adotou uma abordagem realista. Fica claro o motivo da opção de Bolaño e Tartari por fugirem da fantasia. Geralmente, a fabulação amplia contrastes e permite trabalhar temas espinhosos com maior agudeza sem cair na caricatura mas, em Ninguém nasce herói, acabou por esmaecer o drama contado ali, que teria ficado mais impactante se estivesse ancorado na realidade, como, por exemplo, nos anos de chumbo da ditadura militar.
Pelo menos pudemos festejar, por um curto período, a chegada da fc brasileira ao grande mercado. Infelizmente não passou disso porque na sequência vieram, além da moda da estupidez confessa e do anti-cientificismo alavancado pelo fascismo governista (tristemente antecipado pelo romance em questão), uma inédita – embora não necessariamente inesperada – crise do mercado editorial, que derrubou vendas, faliu livrarias e editoras e amputou programações inteiras nas mais prestigiosas casas editoriais.
Cesar Silva

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

As Melhores Histórias de Viagens no Tempo

As Melhores Histórias de Viagens no Tempo: Os Contos dos Autores Mais Consagrados da Ficção Científica (The Best Time Travel Stories of the 20th Century), Harry Turtledove e Martin H. Greenberg, organizadores. Tradução de Gilson César Cardoso de Sousa. 462 páginas. São Paulo: Editora Jangada, 2016. Edição original de 2005.



O tema da viagem no tempo é um dos mais duradouros e clássicos da ficção científica. Uma de suas primeiras manifestações e a mais importante, data de 1895 quando H.G. Wells (1866-1946) publicou A Máquina do Tempo (The Time Machine), talvez seu livro mais influente e que estabeleceu os parâmetros para uma viagem no tempo a partir de uma ideia científica, conforme indicada no próprio nome do romance.1

Viajamos no tempo a todo o momento, segundo a segundo, ou à velocidade de 24 horas por dia, como dizia Arthur C. Clarke (1917-2008). Mas num sentido mais ortodoxo o conceito de viagem no tempo sempre foi problemático para aqueles que entendem que a ficção científica deve extrapolar uma possibilidade de desenvolvimento do que é cientificamente possível. Mas, como mostram estudos teóricos nas fronteiras do conhecimento, a ideia de se movimentar fora do contínuo linear de uma seta que vai sempre para frente vem sendo questionado.2

Em todo caso isso nunca atrapalhou aqueles que abordaram o subgênero, que atravessou todo o século XX apresentando verdadeiras maravilhas de criatividade e encantamento, especialmente na literatura. Romances como, entre outros, The Legion of Time (1938), de Jack Williamson (1908-2006); A Luz e as Trevas (Lest Darkness Fall) (1939), de L. Sprague de Camp (1907-2000) – resenha aqui; O Fim da Eternidade (The End of Eternity) (1955), de Isaac Asimov (1920-1992); A Porta para o Verão (The Door into Summer) (1956), de Robert H. Heinlein (1907-1988), e Tempestade no Tempo (Time Storm) (1977), de Gordon R. Dickson (1923-2001). Mas também em outras formas de arte como, por exemplo, no cinema. É só lembrarmos de filmes seminais como A Máquina do Tempo (The Time Machine) (1960), adaptação do romance de Wells, dirigida por George Pal (1908-1980); a série de cinco filmes de O Planeta dos Macacos (The Planet of the Apes) (1968-1973); Um Século em 43 Minutos (Time, After Time) (1979), de Nicholas Meyer, e Os Doze Macacos (The Twelve Monkeys) (1996), de Terry Gillian.

Como indicado no título da antologia os organizadores pretenderam oferecer as melhores histórias curtas do gênero escritas durante o século XX. Tem uma intenção canônica, portanto, de estabelecer as histórias mais influentes e representativas do subgênero. De fato, conforme veremos a seguir, temos, senão todas as melhores histórias, muitas delas. Desta forma, mesmo que algumas tenham ficado de fora, isso não desmerece o objetivo dos organizadores, porque as histórias selecionadas são todas muito boas, algumas realmente excepcionais.

O livro contém 18 relatos, apresentados em ordem cronológica de publicação. Começa em 1941 e chega até 1989. Percorre, portanto, o miolo do século XX, não ele inteiro. Por serem textos curtos foram publicados, em sua grande maioria, nas tradicionais revistas de FC norte-americanas, de Astounding Science Fiction até a Issac Asimov´s Science Fiction Magazine. Mesmo assim, a grande maioria não é um conto, mas sim noveletas e novelas, e conforme os anos avançam as histórias tendem a ficar mais longas. Talvez uma característica mais de mudanças nos estilos e gostos literários, do que com o desenvolvimento da temática em si.

Por causa da importância da proposta da antologia, ao contrário do que tenho feito habitualmente, irei resenhar cada uma das histórias. A intenção é conferir se a proposta dos antologistas é bem-sucedida, na seleção e representatividade das histórias e dos autores.

A primeira história é de Theodore Sturgeon (1918-1985), a noveleta “Ontem Foi Segunda-Feira” (“Yesterday was Monday”), publicada na Astounding Science Fiction, em junho de 1941. Harry Wright, um simples mecânico, acorda numa quarta-feira de manhã, mas não se recorda da terça-feira. Poderia apenas ser um lapso passageiro de memória – talvez fruto de stress ou de uma ressaca –, mas conforme vai perceber poucas horas depois ele despertou numa realidade diferente. As pessoas trabalham na construção de cenários de uma peça de teatro. E cada cenário corresponde a um dia diferente. Absolutamente desconcertado ele procura por alguma explicação racional, mas quanto mais busca, mais sobressai a dúvida e a estranheza. No fundo, ao que parece, ele acordou antes da hora e se viu num cenário (dia) diferente. Uma história intrigante e aberta a outras interpretações.

A história seguinte é a noveleta “O Armário do Tempo” (“Time Locker”), de Henry Kuttner (1915-1958). Outra história publicada na Astounding Science Fiction, na edição de janeiro de 1943. É uma aventura divertida e inusitada sobre um armário que some com os objetos lá colocados, pois vão parar num futuro desconhecido. Narrado com humor e com a presença de dois personagens nada honestos, que procuram dar um golpe um no outro, reflete sobre o espaço e suas possíveis transformações no tempo. Uma joia.

Arthur C. Clarke comparece com “A Seta do Tempo” (“Time´s Arrow”), conto publicado pela primeira vez na Science-Fantasy, edição de verão em 1950. E já conhecida do leitor brasileiro e português, pois vista antes nas coletâneas Encontro com Futuro (Editora Pallas), Em Busca do Futuro (Edições 70, Portugal) e Dinossauros! (Editora Aleph). A publicação nesta última já indica que é um conto de viagem no tempo com dinossauros. Mas o retorno ao passado de dezenas de milhões de anos surge como uma imagem sutil, porém poderosa e reveladora. É uma aventura hard instigante, por explorar o conceito de entropia negativa (seta do tempo) num contexto paleontológico surpreendente. É uma história boa, mas há um outro conto ainda melhor de Clarke no subgênero: “Todo o Tempo do Mundo” (“All the Time in the World”), visto pela primeira vez em 1952 na edição de julho de Startling Stories – e publicada no Brasil nas antologias O Outro Lado do Céu e Sobre o Tempo e as Estrelas, ambas da Editora Nova Fronteira. Conta a história de Robert Ashton, um ladrão que é contratado por uma mulher misteriosa, na verdade um alienígena vindo cem mil anos do futuro. Sua decisão de ajudar ou não o alienígena a roubar alguns objetos do Museu Britânico pode levar ao fim do mundo, pois um dos objetos é uma ogiva nuclear que pode ser ativada. Tem um final de impacto inesquecível.

Na sequência temos um conto de Jack Finney (1911-1995) intitulado “Estou com Medo” (I´m Scared”), publicado em 1951 na revista mainstream Collier´s. A história relata uma série de incidentes inexplicáveis, na linha do saudoso programa de TV “Acredite se Quiser”. Dá conta de pessoas que vivem experiências de lapso de tempo, seja no desaparecimento de alguém, numa foto que registra o que ainda não ocorreu ou a audição no rádio de um programa ao vivo, mas de alguém que já morreu – neste caso poderia ser uma gravação, mas parece que o autor não imaginou tal recurso, talvez porque não existia na época em que escreveu. A história não especula, mas seriam, talvez, portais que se abririam na estrutura do espaço-tempo. O personagem principal vai entrevistando pessoas que viveram estas experiências, são interessantes por si, mas talvez fosse melhor se apenas um (ou dois) relatos fosse contado em detalhes. No Brasil Finney é mais conhecido pelo romance Vampiros de Almas (The Body Snathers) (1955) – uma metáfora do anticomunismo através de uma invasão alienígena –, mas ele também foi um especialista no sub-gênero de viagem no tempo escrevendo vários contos e publicando um dos livros mais celebrados Time and Again (1970). O livro narra um programa ultrassecreto do governo americano que recruta um jovem para voltar no tempo. Quando ele se apaixona por uma mulher do século XIX, deve escolher entre o passado e o presente. Recebeu uma sequência, From Time to Time, em 1995.

Ray Bradbury (1920-2012) é presença obrigatória num livro como este. Afinal escreveu “Um Som do Trovão” (“A Sound of Thunder”), um dos contos mais importantes sobre viagens no tempo, e o segundo no volume a abordar uma viagem ao passado com dinossauros. Visto pela primeira vez na edição de junho de 1952 da Collier´s inaugurou uma premissa própria que se tornou influente dentro e fora da FC, o tal “efeito borboleta”. Uma mudança insignificante no passado provocaria uma cadeia de eventos novos, que poderia alterar de modo irreversível o futuro. Toda uma nova história evolutiva e/ou social poderia acontecer. Com seu talento habitual Bradbury imprime um sentido de tragédia à morte acidental da borboleta e, mais que isso, de um ponto de não retorno para a realidade antes existente. Já conhecido do leitor brasileiro pela publicação nas coletâneas Os Frutos Dourados do Sol (The Golden Apples of the Sun, da Francisco Alves Editora), F de Foguete (R is Rocket, da Hemus) e Contos de Dinossauros (Dinossaurs Tales, da Editora Artes & Ofícios), entre outras, é um clássico da ficção científica.

Assim como “Nave da Morte” (“Dead Ship”), de Richard Matheson (1926-2013). Publicada primeiramente na edição de março de 1953 de Fantastic Story Magazine, é uma história surpreendente e perturbadora, que flerta com o horror. Três astronautas encontram num planeta sua própria nave destruída com eles mesmos mortos. Como explicar isso? Teriam vistos eles no futuro? Seria uma alucinação induzida pelos eventuais habitantes do planeta? Para provar esta hipótese, após decolarem, o capitão decide voltar. Mas eles perceberão que não havia alucinação alguma. Era a pura e mortal realidade. Autor também do ótimo romance de viagem no tempo Em Algum Lugar do Passado (Somewhere in Time) (1975), “Nave da Morte” recebeu uma ótima adaptação escrita pelo próprio Matheson para o seriado Além da Imaginação (Twilight Zone) (1963).

Uma terceira história sobre dinossauros é “Arma para Dinossauros” (“A Gun for Dinossaur”), escrita por L. Sprague de Camp. Publicada originalmente na edição de março de 1956 de Galaxy Science Fiction, apareceu antes no Brasil, na já citada antologia Dinossauros! organizada por Gardner Dozois (1947-2018) e Jack Dann. Camp escreve com inspiração e humor a aventura de um safári de dinossauros, mostrando com riqueza de detalhes o processo de caça e as particularidades envolvidas para se abater animais enormes e ferozes. De quebra dialoga com “Um Som de Trovão”, de Bradbury – outra história de safári com dinossauros –, ao resolver a questão do efeito cumulativo desastroso de uma ínfima mudança no passado: 1) viagens para no mínimo 100 mil anos atrás, de modo a diluir eventuais mudanças na história humana, e 2) a impossibilidade de ver a si mesmo – evitando o paradoxo – com um mecanismo espaço-temporal natural que evita isso, trazendo de volta de forma abrupta ao presente àquele que tenta, como um tipo de ricochete ou efeito bumerangue.

Poul Anderson (1926-2001) também é uma referência no subgênero, autor da coletânea Os Guardiões do Tempo (The Time Patrol) (1955), que apresentou os patrulheiros do tempo, uma polícia temporal que tenta evitar abusos e punir os que burlam as leis que regem as viagens no tempo – serviu de inspiração ao universo ficcional da Intempol, criado por Octávio Aragão. Inclusive, talvez fosse mais representativo selecionar a noveleta “A Patrulha do Tempo” (“Time Patrol”) (1955), mas Harry Turtledove e Martin H. Greenberg (1941-2011) optaram pela noveleta “O Homem que Chegou Cedo” (The Man who Came Early”), vista pela primeira vez na edição de junho de 1956 de The Magazine of Fantasy and Science Fiction.

É uma novela intrigante sobre um soldado americano lotado numa base militar na Islândia, em 1967 que, devido a uma forte tempestade, vai parar mil anos no passado. Narrada com energia e com personagens atuantes, chama a atenção por ser contada do ponto de vista de quem recebe o viajante do tempo – normalmente é o oposto –, e de mostrar com riqueza de detalhes o modo de vida rústico dos aldeões medievais e a extrema inadaptabilidade do sujeito do século XX, em especial nas atividades práticas, quase só o que havia naquela época.

O conto a seguir é “Rainbird” (idem), do estilista e fantasista R.A. Lafferty (1914-2002). Publicado pela primeira vez na edição de dezembro de 1961 de Galaxy Science Fiction trabalha com a ideia do paradoxo embutido na volta ao passado para se encontrar com si mesmo. Higgston Rainbird foi um inventor talentoso, mas em cada retorno ao passado, um novo mundo tinha de ser construído de novo.

Um dos mestres da FC hard Larry Niven foi selecionado com o conto “Leviatã” (“Leviatan”), primeiramente publicado na edição de agosto de 1970 da Playboy – e aqui no Brasil na primeira versão da revista, chamada Homem no. 27, de outubro de 1977. Temos aqui a quarta história sobre viagem no tempo com dinossauros – e a terceira para caçá-los. O diferencial é a volta a um fluxo temporal de uma outra realidade, muito interessante, mas faltou elaborar mais o conceito, tornando a narrativa mais clara e atraente.

Joel Haldeman também está presente, com a noveleta “Projeto de Aniversário” (“Anniversary Project”) (1975), publicado na Analog, de outubro de 1975. Lembra um pouco o espetacular romance Vênus mais X (Venus plus X) (1960), de Theodore Sturgeon, no qual um homem do século XX é levado a um futuro distante em que a sociedade é igualitária, e as pessoas são sexualmente ambíguas. Temos aqui com a noveleta de Haldeman, portanto, a primeira narrativa do livro a abordar o futuro. E muito distante. Um jovem casal é subitamente levado por um ´raio do tempo´ à Terra de daqui há milhares de anos. As pessoas são andróginas, telepatas, vivem cerca de mil anos e socialmente isoladas devido à extinção do oxigênio da atmosfera. Trouxeram o casal porque depois de conhecerem a literatura do passado, querem saber mais sobre a cultura e os costumes dos seres humanos de tempos remotos. Mas um acontecimento inesperado faz com que o casal volte no tempo do fim de suas vidas até o início do seu relacionamento. História brilhante, mas um pouco resumida. Renderia ainda mais como uma novela ou mesmo como romance. De qualquer forma, um dos pontos mais altos da antologia.

O já citado Jack Dann também comparece com o conto “Inversão do Tempo” (“Timetipping”) (1975), visto primeiro na antologia Epoch, editada por Robert Silverberg e Roger Wood. Parte de uma premissa desconcertante: tempos passados e futuros que se misturam, e provocam um caos na vida das pessoas, tornando quase impossível uma convivência em sociedade. Nesse sentido, lembra um pouco o já citado Tempestade no Tempo, de Gordon R. Dickson, embora muito longe da qualidade deste clássico. Entre outras razões porque Dann opta por uma linha de ação religiosa para a narrativa, através da vida do único personagem que não muda. Uma pena, porque soa pouco inspirado e cansativo, principalmente para quem não é familiarizado com o judaísmo.

As seis últimas histórias são as mais longas do livro – à exceção da de John Kessel –, e foram todas publicadas nos anos 1980 na premiada revista Isaac Asimov´s Science Fiction Magazine, sob a edição de Gardner Dozois, e tem em comum uma apurada perspectiva humanista e socialmente crítica. A primeira delas é “Vigia de Incêndio” (“Fire Watch”), de Connie Willis, vista primeiro na Asimov´s de fevereiro de 1982. Premiada com o Hugo e o Nebula, a novela é precedida pela epígrafe do pirata e poeta Walter Raleigh (1552-1618): “A história triunfou sobre o tempo, que antes só sucumbira diante da eternidade”, e indica o tema a ser tratado.

Os historiadores fazem pesquisas de campo visitando o passado para conhecer in loco seus objetos de estudo. De certa forma, a História, um campo de conhecimento dedutivo e de interpretações ad hoc, transformou-se em experimental. Connie Willis explora a fundo esta possibilidade na figura de um jovem pesquisador que retorna à Londres em 1940 para, de forma disfarçada, é claro, atuar como vigia de incêndio da Catedral de Saint Paul. Seu trabalho é tentar impedir que ela seja destruída pelos seguidos bombardeios nazistas, que arrasavam a cidade naquela época. Com personagens densos e humanos e uma reconstituição histórica que impressiona – dá a impressão visual de estarmos lá –, é uma FC histórica não menos que notável. E que ainda serve como a narrativa que antecedeu o premiado romance O Dia do Juízo Final (The Doomsday Book) (1992), em que Willis utiliza uma das personagens da novela para viajar à Idade Média, em plena Peste Negra – resenha aqui.

A história seguinte é “Rumo a Bizâncio” (“Sailing to Byzantium”), de Robert Silverberg. Outra novela de cunho histórico, uma característica já vista no autor quando publicou o romance Os Correios do Tempo (Up the Line, 1969), em que as viagens ao passado são um negócio lucrativo através de agências de turismo. E também na ótima novela “Estação dos Exilados” (“Hawksbill Station”) (1967) – depois expandida para o romance de mesmo nome no ano seguinte – em que presos políticos são deportados para uma prisão no passado distante. Além também de uma variação do tema com o romance Os Intemporais (The Time Hoopers) (1967), em que a motivação para despachar pessoas para o passado é a superpopulação. Como se vê, Silverberg tem currículo no assunto.



Primeiro publicado na edição de fevereiro de 1985 na Asimov´s – veja a capa acima –, “Rumo a Bizâncio” é o texto ficcional mais fascinante da antologia, premiado com o Nebula e finalista do Hugo. No século L (cinquenta) a Terra é povoada por cidadãos que passam o tempo viajando entre as cinco cidades de todo o planeta. São reconstruções quase perfeitas de metrópoles do passado, que após um certo tempo são desfeitas para que novas sejam construídas. Neste futuro estranhíssimo, Charles Williams é um sujeito do século XX, chamado de visitante, que viaja também, e ao lado da bela Gioia, uma das cidadãs. Mas o que Charles irá descobrir é como veio parar lá, quem realmente ele é, e que função desempenha neste futuro exótico e extraordinário. Esta novela de Silverberg é mais que uma ficção científica histórica, e sim uma complexa e sensível alegoria do que realmente significa ser humano. Uma obra-prima.

Em “O Produto Puro” (“The Pure Product”), de John Kessel publicada na Asimov´s de março de 1986, um viajante vindo do futuro perambula pelos EUA no final do século XX. Sem objetivos ou destino, rouba um carro, transa com uma jovem desconhecida, ateia fogo num pedestre, aplica golpes com cheques sem fundo, e compara os costumes das pessoas desta época com a de figuras históricas que conheceu no passado distante. A noveleta é lida com fluência e leveza, mas não há maior empatia ou envolvimento com a história e, menos ainda, com o protagonista.

O nível volta a subir com a ótima novela “Trapalanda” (idem), de Charles Sheffield (1935-2002). Vista pela primeira vez na edição de junho de 1987 da Asimov´s, é uma noveleta instigante sobre a busca pela mítica cidade perdida de Trapalanda, que estaria situada em algum lugar remoto da Patagônia. Uma expedição financiada por um magnata é liderada por Klaus Jacobi, um alpinista que viveu anos na região. O que eles descobrirão é que há sim algo revelador e incrível sobre o a lenda de Trapalanda. Simplesmente um portal espaço-temporal deixado lá por alguma inteligência extraterrestre. O elemento de viagem do tempo da história ocorre porque ao voltar de seu tênue contato com o portal Jacobi envelhece algumas décadas. A narração fluente e os personagens verossímeis são características conhecidas do autor, um competente contador de histórias.

A história a seguir “O Preço das Laranjas” (“The Price of Oranges”), de Nancy Kress, finalista do Hugo. Já era conhecida do leitor brasileiro, pois foi publicada na Isaac Asimov Magazine no. 3, em julho de 1990. Vista antes nos EUA na Asimov´s em abril de 1989, lembro que foi uma das histórias mais marcantes que li na versão brasileira. Relendo agora a impressão não é diferente, embora tenha, em princípio, prestado mais atenção ao desenvolvimento do tema da viagem no tempo. Ora, mas ele é secundário, pois o que realmente importa é o humanismo da história em si. Um avô usa uma abertura temporal encontrada casualmente em seu guarda-roupa e volta a 1937 em busca de um jovem que possa tirar sua neta – uma escritora talentosa – da amargura e solidão. Mas, pelos meandros tortuosos da vida, mal pode imaginar como o jovem irá contribuir para a felicidade da neta. Comovente.

Para fechar a antologia Turtledove e Greenberg capricharam. Escolheram ninguém menos que Ursula K. Le Guin (1929-2018), e uma de suas muitas histórias excelentes. A novela “Outra História ou um Pescador do Mar Interior” (“Another Story or a Fisherman of Inland Sea”), primeiro publicada na Asimov´s em agosto de 1994. Situada em seu tradicional universo ficcional de Hainish, conta a história de Hideo, do mundo de O, sua vida em família e a partida dolorida para o planeta Hain, pois sabe que não verá mais a sua família devido à distância de dezenas de anos-luz. Hideo se junta a uma equipe de físicos que desenvolvem pesquisas sobre o teletransporte instantâneo a qualquer distância, a Teoria de Churten, uma espécie de variação do conceito do ansible, o recurso tecnológico por meio do qual foi possível estabelecer uma comunicação instantânea independentemente das distâncias cósmicas. Ao realizar uma das primeiras experiências Hideo é surpreendido com um problema, pois ao invés do teleporte espacial, se vê num temporal, voltando dez anos ao seu planeta natal, antes que a descoberta tivesse sido feita. Afora o fato em si, que mudou sua vida para sempre, a história é muito rica na elaboração dos costumes do povo de O e na densidade psicológica dos personagens. Uma novela excepcional.

Podemos afirmar que As Melhores Histórias de Viagens no Tempo cumpre sua intenção ambiciosa de servir como um livro de referência sobre um dos subgêneros mais populares da FC? Em parte sim pois, de fato, é possível perceber um claro desenvolvimento na abordagem do tema ao longo de cinco décadas do século passado, indo da Golden Age, passando bem rápido, é verdade, pela New Wave e chegando com força nos anos 1980 e 1990 numa linha mais histórica e humanista. Contudo, podemos ponderar que houve um viés demasiado às histórias com viagens ao passado, e muito poucas com relatos do futuro. Na verdade, quando houve foi de viajantes do presente que foram levados ao futuro de forma involuntária. Não há nenhuma história com viajantes do presente indo deliberadamente ao futuro para conhecê-lo. É quase que um contrassenso, já que a FC é um gênero intrinsecamente identificado por explorar justamente os possíveis mundos e realidades do amanhã. De certa forma, os textos selecionados, ao abordarem mais o passado se inseriram numa linha de FC especulativa histórica, ao invés de apresentar também uma linha de abordagem de uma FC, diria, mais sociológica, caso mais viagens ao futuro tivessem aparecido.

Em todo caso esta antologia pode ser colocada no mesmo patamar de outra que se tornou referência aqui no Brasil: Máquinas de Pensam: Obras-Primas da Ficção Científica (Machines that Think) (1984), organizada por Isaac Asimov, Patricia S. Warrick e Martin H. Greenberg, uma monumental antologia com 28 histórias sobre robôs, computadores e inteligência artificial, publicado pela L&PM em 1985 – e relançada como Histórias de Robôs, em dois volumes em 2005.

Alguém pode observar que outras boas antologias sobre viagem no tempo já foram publicadas no Brasil. Não é verdade, são bem poucas, e talvez a mais expressiva delas a rara Viajantes no Tempo (Voyagers in Time), organizada por Robert Silberberg, foi publicada pela Editorial Panorama, de Portugal, no distante 1967. O que temos são muitos romances, e as histórias curtas foram vistas em coletâneas de autores e antologias com temas variados. Nunca um volume inteiro com quase 500 páginas só sobre o tema. Portanto, ainda que não esgote o assunto e não tenha incluído algumas histórias importantes, é uma antologia que cumpre uma lacuna, contribuindo para a divulgação do tema junto aos leitores e fãs brasileiros de ficção científica.


Marcello Simão Branco


1 Um romance anterior é El Anacronópete (1887), do espanhol Enrique Gaspar y Rimbau. Segundo o crítico e historiador da FC Adam Roberts “não é a primeira história de viagem no tempo da literatura mundial, mas provavelmente é a primeira a apresentar uma peça de tecnologia para transportar um indivíduo através do tempo.” Citação da página 230 de A Verdadeira História da Ficção Científica. Editora Seoman, 2018.

2 Um exemplo temos em O Círculo do Tempo: Um Olhar Científico sobre Viagens Não-Convencionais no Tempo, de Mário Novello. Editora Campus, 1997.