terça-feira, 11 de agosto de 2020

Ninguém nasce herói, Eric Novello

Ninguém nasce herói, Eric Novello. 378 páginas, Editora Companhia das Letras, selo Seguinte, São Paulo, 2017.

A chegada de autores brasileiros ligados ao fandom de literatura fantástica ao catálogo da prestigiosa editora Companhia das Letras é um fato aguardado desde que a editora inaugurou selos exclusivos para a ficção de gênero. Não que autores do fandom já não tivessem conseguido, pois textos de fantasia e horror já não são novidade há muito tempo, não só na Companhia da Letras, mas também em outras grandes editoras nacionais. A questão era: quem seria o grande felizardo que finalmente colocaria a ficção científica nacional nas livrarias pela editora? Tanto que, não é de hoje, circula entre os fãs do gênero a máxima "a fc nacional só decola quando o gênero encontrar o seu André Vianco" (em referência ao best-seller dos romances de horror). Então, o anúncio que Ninguém nasce herói, romance do jovem tradutor carioca Eric Novello, estava na programação do selo Seguinte da Companhia das Letras respondeu a essa expectativa.
Como autor, Novello está associado à Terceira Onda da fc brasileira, geração surgida após o advento da internet. Seu primeiro livro foi Histórias da noite carioca (2004, Lamparina), mas ganhou notoriedade na editora Draco –  reconhecida pela dedicação à produção nacional de fc –,  pela qual publicou os romances Neon azul (2010) e A sombra no sol (2012). Novello também é autor de Exorcismos, amores e uma dose de blues, romance de fantasia publicado em 2014 pelo selo Gutenberg da editora Autêntica.
A sinopse de Ninguém nasce herói é uma distopia na qual a população brasileira é oprimida por um governo integralista, depois que um religioso intolerante, chamado de "O Escolhido", chega à Presidência da República. A violência se instala na sociedade sob o jugo de uma brigada paramilitar – a Guarda Branca – que passa a patrulhar as ruas atacando aqueles de quem não gosta, como é o caso do protagonista, apelidado de Chuvisco, jovem tradutor recém-formado que considera a distribuição de livros nas ruas de São Paulo como uma forma de resistência civil. Para isso, conta com a ajuda de alguns amigos que com ele formam uma espécie de aparelho subversivo do bem, embora, no fim das contas, sejam apenas jovens que querem viver e se divertir. A maior parte do tempo, os garotos – cujas famílias estão ausentes – estão em alguma balada ou brigando, por vezes as duas coisas simultaneamente. Chuvisco é propenso a surtos psicóticos – catarses criativas como ele mesmo os chama –, sempre que fica muito alterado. Durante as tais catarses, tem delírios despertos que mesclam fantasia e realidade: ora ele se vê como um super-herói hipertecnológico, ora tem encontros com entidades purpurantes que só existem em sua imaginação. De briga em briga, as relações entre Chuvisco e seus amigos, que parecem nunca ter sido realmente muito sólidas, vão deteriorando, o que nesse ambiente de violência só pode levar à tragédia. Também há uma discussão discreta sobre sexualidade contextualizada na ampla diversidade de gênero dos personagens.
Há alguma imprecisão quanto a natureza religiosa desse Brasil de exceção criado por Novello. Em alguns momentos, parece que O Escolhido é um tipo evangélico neopentecostal mas, quando focalizado mais de perto, já no final do livro, revela ser católico, o que me levou a pensar nesse contexto como uma fabulação da ditadura militar que assolou o país entre 1964 e 1985, o que faria muito sentido.
É inevitável comparar a aventura urbana de Chuvisco e sua turma com aquela que o escritor chileno Roberto Bolaño desenvolve em O espírito da ficção científica, que não é fc, apesar do nome,  publicado pela Companhia das Letras em 2017. Outro trabalho com o qual também se pode montar algum diálogo é "A grande virada de Vitinho", visto na coletânea 17 histórias alternativas, cômicas e futuristas, de Ataíde Tartari (Virtual Books, 2013), autor da Segunda Onda da fc brasileira que,  no caso, adotou uma abordagem realista. Fica claro o motivo da opção de Bolaño e Tartari por fugirem da fantasia. Geralmente, a fabulação amplia contrastes e permite trabalhar temas espinhosos com maior agudeza sem cair na caricatura mas, em Ninguém nasce herói, acabou por esmaecer o drama contado ali, que teria ficado mais impactante se estivesse ancorado na realidade, como, por exemplo, nos anos de chumbo da ditadura militar.
Pelo menos pudemos festejar, por um curto período, a chegada da fc brasileira ao grande mercado. Infelizmente não passou disso porque na sequência vieram, além da moda da estupidez confessa e do anti-cientificismo alavancado pelo fascismo governista (tristemente antecipado pelo romance em questão), uma inédita – embora não necessariamente inesperada – crise do mercado editorial, que derrubou vendas, faliu livrarias e editoras e amputou programações inteiras nas mais prestigiosas casas editoriais.
Cesar Silva

Nenhum comentário:

Postar um comentário