sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

O problema dos três corpos, Cixin Liu

O problema dos três corpos (三体), Cixin Liu. 316 páginas. Tradução de Leonardo Alves da edição em inglês The three-body problem. Editora Companhia das Letras, selo Suma das Letras, São Paulo, 2016.

Histórias de contato estão entre as mais praticadas dentro do gênero da ficção científica. Algumas delas são muito criativas quanto aos problemas inerentes da troca de informação entre raça humana e alienígenas, em que quase sempre o que é dito por um não é bem compreendido pelo outro, gerando muitos desentendimentos. Mas, em algum momento, o diálogo se estabelece e as coisas se acertam. A não ser naqueles casos – bastante frequentes diga se de passagem – em que uma das partes quer destruir a outra. Aí temos uma história de invasão, que também é um tema muito explorado pelo gênero.
Sabe-se que toda a história de invasão ou de contato, remete-se à comunicação entre os próprios seres humanos, em que as barreiras linguísticas, culturais e econômicas geram situações de opressão incontornáveis para a parte tecnologicamente mais fraca do diálogo. E é muito difícil escapar dessa interpretação, mesmo que o autor diga que não se trata de uma metáfora. Inclusive no caso de O problema dos três corpos, romance do escritor chinês Cixin Liu, vencedor do prêmio Hugo de melhor romance em 2015. O Hugo é o mais importante prêmio da fc internacional, promovido pelo fandom norte-americano e votado durante suas convenções anuais. Foi o primeiro romance de um autor não anglófono a obter o mérito, mas ele não veio por acaso: Cixin Liu já tinha o reconhecimento de seus conterrâneos, visto ter ganhado oito vezes o Galaxy Award, o mais importante prêmio chinês do gênero.
A história inicia durante os conflitos da Revolução Cultural. As primeiras cenas são chocantes e relatam o assassinato de um acadêmico por seus próprios alunos, diante da filha que assiste a tudo sem poder intervir. Essa estudante, chamada Ye Wenjie, será protagonista de um cabo de guerra entre a humanidade e uma raça alienígena, mas ela ainda não sabe disso. Por hora, é apenas uma jovem solitária e traumatizada, também perseguida pelo governo chinês. Às portas da execução, recebe a oferta de ser poupada em troca de  trabalhar num programa ultra-secreto do governo, cujo objetivo é buscar o contato com alguma civilização extraterrestre. Ela aceita, apesar de saber que será prisioneira num laboratório remoto, chamado Base da Costa Vermelha, e que talvez nunca mais saia de lá.
Anos depois, em nossos dias, cientistas destacados em suas áreas começam a desaparecer em todo o mundo, causando estagnação no avanço da ciência. Alguns deles chegaram a se suicidar depois de concluir que a ciência é inútil. O pesquisador chinês Wang Miao, especializado em nanotecnologia, é assediado por um grupo de homens do governo que pretende recrutá-lo para algo que eles chamam de "guerra", embora não exista nenhuma guerra sendo travada no momento e ninguém fale claramente a respeito.
Entre o grupo está o detetive de polícia Shi Quiang, que passa a ser a sombra de Miao pois desconfia que ele pode ser uma futura vítima. A suspeita recai sobre um  grupo de fiéis de uma religião integralista que se une em torno de um sofisticado jogo de imersão total online chamado "O problema dos três corpos", no qual filósofos do passado da Terra que vivem num mundo que orbita um sistema de três sóis, tentam desenvolver uma teoria que preveja, com exatidão, os drásticos fenômenos climáticos que assolam o planeta, de forma a permitir que a civilização se proteja antecipadamente dos cataclismos mortais que a abatem periodicamente. Nessas circunstâncias, a civilização desaparece e o jogo acaba, para retornar em outro momento da história quando for feito novo login.
Quando Miao passa a enxergar no fundo dos olhos uma aterrorizante contagem regressiva que mais ninguém vê, busca ajuda com uma envelhecida Ye Wenjie, e acaba por se envolver com o estranho jogo. Com a cientista anciã, fica sabendo o que aconteceu na Base da Costa Vermelha, bem como o significado do problema dos três corpos – que ele ajuda a solucionar – e como tudo isso se relaciona com as mortes dos cientistas e a iminente invasão alienígena na Terra.
Cixin Liu é engenheiro, chinês de nascença, e ainda reside na China onde desenvolve uma bem sucedida carreira como escritor de ficção científica, gênero do qual se declara fã desde a juventude.
Diz o autor no posfácio que fecha a edição: "não uso minha ficção como um modo mascarado de criticar a realidade do presente. Acho que o maior atrativo da ficção científica é a criação de diversos mundos imaginários fora da realidade". Contudo, é impossível não ver em O problema dos três corpos uma série de metáforas muito bem assetadas. Sinal de que, como sempre me pareceu correto pensar, as obras têm pretensões próprias que nem sempre são compatíveis com as de seus autores. O leitor experiente também vai perceber uma série de homenagens sutis que o autor faz à importantes obras da ficção científica. Fica a dica para quem quiser se divertir identificando cada uma delas.
O problema dos três corpos funciona muito bem como obra única, mas trata de uma trilogia, cujo título geral em inglês é Remembrance of Earth’s past. Além do primeiro volume, originalmente publicado em 2007, as sequências são A floresta sombria (The dark forest, 2008) publicado em 2017 no Brasil pela mesma editora, e Death's end (2010), que foi anunciado para ser publicado aqui em 2018, mas foi adiado.
Cesar Silva

Regresso à Vida


Regresso à Vida (Recalled to Life), Robert Silverberg. Tradução de José Lourenço Galego. Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica no. 29, 1982, 176 páginas. Lançamento original em 1958.

Quando Silverberg escreveu este romance ele estava no auge de sua produtividade. Os anos 1950 foram o de maior quantidade de textos escritos e publicados, principalmente contos, e de aventuras espaciais, embora já estivesse latente, também, sua versatilidade em abordar diferentes temas dentro da ficção científica.
Talvez por isso e também para atenuar sua imagem de escritor de contos curtos, rápidos e sem grande mérito literário, ele escolheu um tema mais difícil, procurando uma abordagem mais realista, conforme ele explica na introdução:
“Tinha a intenção de que este livro tivesse a textura de um romance linear, com um conteúdo nada extraordinário, à exceção da grande hipótese que o faria entrar para o campo da ficção científica e que seria a espinha dorsal de todo o enredo: e se a morte pudesse tornar-se um processo reversível? Queria explorar as consequências sociais de uma descoberta assombrosa; e queria explorar essas consequências não no terreno asséptico de um universo de ficção científica, mas num mundo pouco diferente, nas suas reações fundamentais, do que conhecemos agora.”
Mesmo que história tenha sido primeira publicada em duas edições da revista Infinity Science Fiction, em junho e agosto de 1958, ela enfrentou dificuldades em ser aceita posteriormente para o formato de livro. Pois, de acordo com Silverberg, os editores a achavam “muito séria” e com riscos de “deprimir os leitores”.
Contudo, não é um romance mainstream. Afinal estamos diante da possibilidade de ressurreição após a morte. O que aconteceria se a ciência descobrisse uma maneira de reviver os que morreram? Já parou para pensar nisso? Afinal a morte é dada como uma coisa inevitável e definitiva. E de certa forma somos mesmos condicionados a acreditar e, mais que isso, aceitar este fato.
Mas no campo das hipóteses que só uma ficção especulativa como a científica pode oferecer, o livro nos apresenta esta possibilidade e discute suas consequências, principalmente do ponto de vista social, político e religioso.
Estamos em 2033 e a história é contada a partir de James Harker, advogado que tenta retomar sua carreira, após uma experiência frustrante como governador do estado de Nova York. Isso porque ele tentou implementar algumas reformas políticas que acabaram custando sua reeleição e mesmo sua permanência na vida pública.
Ele é procurado por um representante do misterioso Laboratório Beller para ser o seu conselheiro jurídico e porta-voz. Utilizando a herança deixada por um multimilionário, o laboratório usou o dinheiro para realizar pesquisas que pudessem, finalmente, vencer a morte.
Uma equipe de médicos e cientistas desenvolveu uma tecnologia capaz de reviver pessoas que tenham morrido há até vinte e quatro horas, e com o corpo em bom estado de conservação e sem grandes traumas nos órgãos internos. Não havia a chance de ressuscitação em casos mais complicados, como câncer em estágio avançado e acidentes que danificassem gravemente o corpo.
Contrariado e descrente a princípio Harker testemunha a ressuscitação de cães e, posteriormente, de um ser humano, e aceita o emprego. É uma chance de servir a uma causa importante e se redimir politicamente perante a opinião pública.
 Mas o tema está longe de ser recebido com entusiasmo. Vários setores da sociedade veem com descrença e heresia a possibilidade de reviver alguém que morreu. Primeiramente há a dúvida de que tal procedimento seja possível, a seguir se ele deve realmente ser realizado, pois não seria dado aos homens interferir num desígnio divino, de haver criado o homem como um ser mortal. Adicionalmente, se a pessoa morre a alma sai do corpo, mas se ele revive, estaria sem a sua alma, sendo não mais que um espectro, um zumbi, indigno de conviver novamente com os vivos.
No fundo tais reações estão no campo da religião e suas diferentes crenças e dogmas, semelhantes a outras descobertas revolucionárias da ciência, como a de que a Terra é uma esfera, de que não somos o centro do universo e de que fazemos parte de um processo evolutivo dos seres vivos do nosso planeta. Mas concordo que o tema da ressurreição seria ainda mais controverso.
Estas dúvidas também estão com Harker, mas assumidas principalmente como uma dor interior intensa, já que ele perdera sua filha Eva, alguns anos atrás. Teria sido possível salvá-la do afogamento, mas a tecnologia chegou tarde demais.
Então também por este motivo pessoal Harker tem interesse que a descoberta seja aceita e legalmente regularizada. Mas enfrenta batalhas, antes de tudo, internas, no interior do próprio laboratório, pois dois de seus integrantes divulgam a notícia antes que a técnica estivesse totalmente segura, causando, além da negação de ordem moral e religiosa, também outra de caráter prático. Isso porque de cada seis pessoas revividas uma recuperou suas funções fisiológicas, mas não as do cérebro.
A história envereda por uma batalha política pela luta ao reconhecimento e legalidade do procedimento, em torno dos dois partidos políticos nos Estados Unidos do século XXI: o Partido Nacional-Liberal e o Partido Conservador. Como se vê sucessores dos Democratas e Republicanos, que teriam sido dissolvidos numa crise política no início dos anos 1990.
Ao situar o assunto num recorte mais político-partidário, ao que parece, Silverberg está refletindo, ainda que de maneira indireta e implícita, sobre as opções e valores dos dois maiores partidos norte-americanos, numa fase de grandes contestações e mudanças em seu país: os direitos civis das mulheres e os direitos políticos dos negros, sobre o aborto, drogas liberdade sexual, meio-ambiente. Mas creio que nada chegaria perto do que aconteceria se a possibilidade de ressuscitar a vida fosse possível.
Entre o final dos anos 1960 e início dos 1970 Silverberg estava novamente em uma fase de grande criatividade, mas desta vez com contos, novelas e romances de enorme ousadia temática e qualidade literária. Para citar alguns exemplos: o conto “Passageiros” (“Passengers”, 1967), a novela “Asas da Noite (“Nigthwings”, 1968) e o romance Uma Pequena Morte (Dying Inside, 1971). Nesse contexto imaginou relançar Regresso à Vida, mas após receber o sinal verde para enviar o original a uma editora percebeu outra possível razão para que a história tivesse sido rejeita por algumas editoras no início dos anos 1960: estava mal escrita e com várias cenas melodramáticas. Assim, pela primeira vez em sua carreira, Silverberg reescreveu o livro inteiro, mantendo-o como um texto relativamente curto (é pouco mais do que uma novela), mas bastante centrado sobre as discussões a respeito do tema principal. E é esta a versão, de 1971, que foi traduzida e publicada em língua portuguesa. Ao leitor que porventura procure pelo livro, atenção. Saiu uma outra edição em Portugal com o título de Regresso à Vida, mas trata-se da tradução de outra obra do Silverberg, o romance To Live Again (1969), publicado pela Galeria Panorama, em sua Colecção Antecipação no. 47.
Não li a versão original de Recalled to Life, mas pode-se perceber que estamos diante de um texto fluente e com boa densidade dramática, embora pudesse, já que o reescreveu, ter avançado mais em sua estrutura – com a introdução de mais personagens e outras linhas narrativas, como, por exemplo, de como seria a nova vida de um ressuscitado. Em todo caso, a boa recepção desta nova versão o incentivou a publicar a novela premiada com o Nebula de 1975 “Born with the Dead” (1973), que ele mesmo considera uma espécie de continuação desta sua primeira investida no tema da ressurreição.

– Marcello Simão Branco

sábado, 1 de dezembro de 2018

"Names", novela de Dalton Almeida


Names: Uma história policial sci-fi, Dalton L. C. de Almeida. Dragonfly Editorial, S.Paulo, 2016. Prefácio de L. H. Hoffmann (editor). Capa: Victor Caigue.

Muito original esta novela que estrutura um mundo futuro complexo e bem diferente do nosso, na verdade um mundo espacial e onde as paixões humanas continuam poderosas e impiedosas. Imensas naves espaciais atravessam o Cosmos, representando o conjunto de nações e continentes; um policial, Lucca Costa, da nave latina, investiga um crime que apresenta conotações peculiares. A Latina é uma das super-naves da Frota Real de colonização extra-solar. Sim, este futuro é monárquico, como aliás muitos mundos imaginados pela ficção científica.
A novela é hábil e instigante, porém admite alguns questionamentos. Por exemplo, por que o uso da expressão “sci-fi” — um estrangeirismo de pouco trânsito no Brasil — no subtítulo? E por que o próprio título da obra é “Names” e não “Nomes”? É um detalhe interessante que o nome que a pessoa usa, ou que deixa de usar, é algo de extraordinária importância na trama. Idem os meandros da política, onde nem tudo é o que parece, e onde a liberdade é posta em xeque por sutis manobras. Isso fica evidente quando Lucca e seus companheiros de investigação se vêem impotentes para dar solução definitiva ao caso.
É aos poucos que a gente toma gosto pela trama, que acaba num gancho excitante para uma possível continuação.
Miguel Carqueija, Rio de Janeiro, 12 de julho de 2018.