segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A Torre de Vidro

A Torre de Vidro (Tower of Glass), de Robert Silverberg. Tradução de Lucilia Filipe, 174 páginas. Lisboa: Publicações Europa-América, Coleção Ficção Científica, n. 13, 1981.


Em meados dos anos 1960 Robert Silverberg se reinventou como escritor de ficção científica. Surgido no início da década anterior como um autor extremamente produtivo, mas com uma prosa rápida e relativamente pobre, se transformou com textos altamente estilizados em termos literários, explorando temas difíceis e liderados por personagens psicologicamente densos.

É difícil dizer se Silverberg obteve nesta época seu ponto mais alto na ficção curta ou nos romances, pois em ambos os formatos atingiu níveis de excelência poucas vezes vista dentro do gênero. Contos como, por exemplo, “Passageiros” (“Passengers”, 1967), “A Dança do Sol” (“Sundance”, 1968) e a novela “Asas na Noite” (“Nightwings”, 1968), e romances como, por exemplo, Espinhos (Thorns, 1967), Mundos Fechados (The World Inside, 1971), e este A Torre de Vidro (Tower of Glass), lançado em 1970 e finalista dos dois principais prêmios norte-americanos do gênero, o Hugo e o Nebula.
Estamos no início do século 23 e a humanidade possui a tecnologia para as viagens interestelares. Na Terra ocorrem duas autênticas revoluções. Em primeiro lugar podemos dispor da maior parte do tempo sem ter de pensar em trabalho, pois a maioria das atividades produtivas é exercida por androides bastante fortes e inteligentes. Em segundo lugar as distâncias tornaram-se obsoletas, assim como os meios de transportes convencionais, pois as pessoas usam o transmate, um teletransporte que permite percorrer diferentes pontos do planeta em um único dia. Embora pouco explorada dentro da história, as fronteiras nacionais e a própria noção de soberania se enfraquecem bastante, e sugere-se que haja um governo mundial.
Simeon Krug é o magnata que concentra diferentes atividades econômicas e responsável pela criação e produção dos androides. Após a Terra receber um possível sinal de uma civilização extraterrestre, Krug torna-se obcecado com a ideia de fazer um contato, e promove a construção faraônica de uma torre que, quando pronta, terá 1200 metros e, por meio da utilização dos raios táquion – mais rápidos que a velocidade da luz –, permitirá o envio de mensagens a esta suposta civilização alienígena. A mão-de-obra utilizada para construir a torre são os androides, que se subdividem nos alfas, betas e gamas, em ordem decrescente de inteligência. Este é o contexto em que se passa um romance curto e muito movimentado.
Um dos aspectos fortes da história é que ela é desenvolvida, gradativamente, a partir de diferentes personagens, com pontos de vista e objetivos diferentes. Assim, temos em Krug um sujeito poderoso e egocêntrico que tem tudo ao seu dispor, e pensa que nada pode detê-lo. Já os androides são a maioria dos seres vivos no planeta, força de trabalho indispensável para Krug, mas com divisões internas entre eles, com os mais obedientes e os mais contestadores. Há ainda a perspectiva do filho Manuel Krug, que não tem o mesmo entusiasmo pelo império do pai e seus objetivos, e divide-se entre o relacionamento com sua mulher e uma androide, a quem verdadeiramente ama, embora tenha sentimentos contraditórios, por causa de sua origem.
Krug torna-se cada vez mais obsessivo com a construção da mais nova maravilha do mundo e enquanto ela é construída organiza passeios onde leva políticos, artistas e cientistas para conhecê-la. Enquanto isso dezenas de androides morrem durante a construção da torre. Por não se importar com isso, abre-se espaço para crescentes dúvidas entre os androides sobre a estima que Krug possa nutrir por eles. Os androides criam uma religião secreta em que pedem proteção e louvor a seu Deus, no caso, Simeon Krug, procurando desvencilhar, em parte, a figura humana de uma divina. A maioria acredita que não irão permanecer para sempre como simples serviçais, pois o seu criador os libertará, reconhecendo que eles devem ter direitos civis e políticos iguais ao dos seres humanos. Outra corrente é mais cética e organiza o Partido da Integração Androide (PIA), que reivindica abertamente a libertação de sua condição escravocrata e igualdade política. Krug tem desconhecimento da religião e procura não levar a sério o movimento político. Até que uma das líderes do partido é morta por um secretário de Krug, e a pressão por emancipação começa a se tornar uma realidade.
Como se vê este livro retoma um tema tradicional da FC, quase que um subgênero, o do relacionamento quase sempre conflitivo entre criador e criatura, entre o homem e a máquina. Nem sempre os resultados são bons, mas inclui clássicos como Frankenstein (idem, 1818), de Mary Shelley, A Fábrica de Robôs (R.U.R, 1920), de Karel Capek, Blade Runner: O Caçador de Androides (Do Androids Dream of Electric Sheep?, 1966), de Philip K. Dick. Perto destes livros Silverberg não fica a dever, pois insere questões próprias e as desenvolve com segurança.
É interessante observar que a humanidade procura por uma inteligência no universo para poder sair de certa solidão existencial e compartilhar com a experiência de outra civilização, e suas possíveis crenças, filosofia e ciência. Mas não percebe que ela mesma forjou uma nova civilização, a dos androides. Talvez por ter sido criada por ela, não a reconhece como igual, mas sim como um subproduto, gerando exploração e preconceito. Nem mesmo quando Krug descobre que é visto como um Deus ele se compadece de sua criação, ao contrário, reafirmando que eles são “coisas” que devem se colocar no seu devido lugar.
A Torre Vidro é um romance complexo, que discute a questão do preconceito e do racismo – tão caro à sociedade norte-americana nos conturbados anos 1960 –, tanto do ponto de vista político, como do religioso que, torna-se mais dramático quando os androides descobrem que o seu Deus os despreza. De certa forma não deixa de ser um pouco estranho que os androides reajam de forma tão passional e violenta, tendo sido eles concebidos como seres extremamente racionais, a serviço do trabalho e do aperfeiçoamento de uma sociedade cada vez mais baseada na tecnologia do qual, inclusive, eles são o supra sumo. Mas o fato é que eles estão se tornando cada vez mais humanos.
É um livro que se lê de forma relativamente rápida pois, apesar do contexto complexo, tem uma narrativa ágil e cheia de reviravoltas. Em certo sentido, não dá tempo de desenvolver de forma mais densa algumas situações e tornar os personagens mais interessantes, embora não cheguem a ser superficiais.  Por isso, é uma pena que o livro seja tão curto, pois se tivesse ao menos mais umas cem páginas alguns desdobramentos poderiam ter sido mais bem elaborados, e talvez até a conclusão da história pudesse ser outra. Em todo caso, é um bom exemplo do que uma ficção científica escrita por um autor talentoso e sensível às questões de seu tempo pode proporcionar.

– Marcello Simão Branco

domingo, 25 de dezembro de 2016

A triste heroína de "Visões de Escaflowne"

         Na década de 1990, As visões de Escaflowne (Tenkú no Esukafurone), com sua melancólica protagonista Hitomi Kanzaki, chegou a ser uma das mais populares séries japonesas em animação e mangá. Representa uma mescla de ficção cientifica e alta fantasia, com o fenômeno de teleporte ou arrebatamento de um mundo para o outro, como sucede em Guerreiras mágicas de Rayearth.
         Gaea é um mundo situado em algum ponto mágico do espaço. De onde se avistam a Terra e a Lua. A Terra, porém, é conhecida como a “Lua Mística”. Hitomi é uma colegial, uma adolescente não muito bonita e talvez com uns quinze anos, de acentuada tendência à melancolia e muita sensibilidade. Em seu mundo sente-se apaixonada por um dos professores, Amano. Um dia, entretanto, um fenômeno inexplicável a envia para Gaea, onde conhecerá muita gente e se tornará, graças aos seus poderes de vidência, uma pessoa muito importante. Seu coração oscilará entre dois príncipes guerreiros: Allen e Van. Este é o príncipe herdeiro do destruído reino de Fanelia, obrigado a fugir para salvar a própria vida e organizar resistência contra o Império Zaibach. Acompanhados por uma garota-gata apaixonada por Van, Merle, acabam sendo auxiliados por outro cavaleiro-príncipe, Allen Schezar de Astúria.
         Van dispõe de uma arma muito especial: um “guymelef” (mecha, ou robô gigante de combate, forma larval de vida que deve ser pilotada por um dono) chamado Escaflowne, que pode assumir a forma de um dragão voador (porém metálico).
         Hitomi, com seus poderes clarividentes amplificados em Gaea, tem com frequência a visão do perigo, o que lhe permite antecipar as ações dos adversários, além de enxergar inimigos invisíveis. As suas qualidades atraem o ódio de Dilandau, um histérico vilão de Zaibach, indignado contra “aquela pirralha da Lua Mística”.
         Uma coisa que chama a atenção nesses animes é a entonação que os personagens dão às suas palavras, transmitindo sentimentos intensos por vezes só com a pronúncia de um nome monossilábico. É assim quando Hitomi pronuncia o nome “Van”, quase em sussurro. Essa expressividade, que dá conta do talento dos dubladores japoneses, permeia este seriado.
         Hitomi é meiga, humilde e singela, e algo melancólica. Afastada de seu mundo, divide-se entre as novas afeições e a saudade do que ficou para trás. Com sua humildade e sentimentos delicados, assim mesmo ela se torna por demais importante e respeitada; e sua candura e seu altruísmo terão grande influência no desenrolar da trama.
         O mangá, de Katsu Aki, ocupou oito volumes saídos entre 1994 e 1997, mais dois em outra versão, em 96/97, de Yuzuru Yashiro, e um novo volume em 2007, com vários autores (todos pela editora Kadokawa Shoten). Há seis volumes de novelas assinadas por Yumiko Tsukamoto, Hajime Yatate e Shoji Kawamori, pela mesma editora (96/97); e 26 episódios de animação (1996) do Estúdio Sunrise, dirigidos por Kazuki Akane, além de um desenho de longa-metragem.
— Miguel Carqueija

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Latidos de Pánico (Panic Beats, Espanha, 1983)


Latidos de Pánico” (“latidos” em espanhol significa “batimentos cardíacos”) é um filme de horror “exploitation” de 1983, também conhecido pelo título em inglês “Panic Beats”. Foi dirigido e escrito pelo multifuncional Paul Naschy, que é o pseudônimo de Jacinto Molina Álvarez (1934 / 2009). Ele também é o ator principal e é considerado um nome cultuado no mundo do cinema de horror bagaceiro, com grande quantidade de créditos em sua vasta carreira.
Continuação da tranqueira divertida “El Espanto Surge de la Tumba” (1973), o roteiro volta a mencionar o temível Alaric de Marnac (Paul Naschy), um cavaleiro medieval com armadura que matou violentamente sua esposa por infidelidade (vista numa introdução de forte impacto de violência), além de ser conhecido por vários crimes hediondos, prática de bruxaria e por beber sangue humano. Segundo uma lenda, ele voltaria do mundo dos mortos a cada 100 anos para se vingar das mulheres da família Marnac.
Saltando no tempo para os dias atuais (década de 80 do século passado pela produção do filme), num pequeno vilarejo rural francês, próximo de Paris, somos apresentados para Paul Marnac (novamente Paul Naschy), que se muda para o interior justamente para preservar a saúde debilitada da bela e rica esposa Geneviéve (Julia Saly), que tem sérios problemas cardíacos. Ao chegarem à casa de campo do casal, eles são recebidos pela veterana governanta Mabile (Lola Gaos) e sua bela e jovem sobrinha Julie (Pat Ondiviela). Porém, uma sucessão de eventos estranhos e misteriosos, assassinatos violentos e traições constantes movimentam o ambiente instaurando o horror e manchando a casa com o vermelho do sangue.
Assim como os europeus Jesus Franco (1930 / 2013, também espanhol) e o francês Jean Rollin (1938 / 2010), realizadores muito produtivos, entre outros, com uma infinidade de trabalhos de direção, roteiro e atuação, é inegável também registrar a contribuição de Paul Naschy para o cinema fantástico bagaceiro. E em “Latidos de Pánico” não faltam todas aquelas características e clichês divertidos dos filmes de orçamentos reduzidos e história bizarras. Temos belíssimas mulheres nuas (especialmente Silvia Miró, que interpreta Mireille, uma amante de Paul Marnac), um assassino com luvas pretas, o casarão com atmosfera gótica, várias cenas sangrentas com mortes dolorosas em feridas gosmentas e tripas expostas, cadáveres putrefatos, e tudo sem a artificialidade do CGI, apenas com os nostálgicos, trabalhosos e sempre bem vindos efeitos de maquiagem.
É verdade também que o roteiro é extremamente previsível, onde sabemos sem esforço e com antecedência a sucessão dos eventos, porém a mistura de horror sangrento, com família amaldiçoada, fantasma vingativo, ganância do ser humano e conspirações, sempre desperta o interesse e garante a diversão.
Entre os destaques, temos o início ambientado no passado, com o sanguinário cavaleiro perseguindo uma mulher nua pela correndo pela floresta desesperada, as várias mortes sangrentas (principalmente os ataques com a arma medieval mangual, que rasga a carne e dilacera os ossos de suas vítimas), e o desfecho passado no interior de uma igreja, também carregado de muita violência.
(Juvenatrix – 21/12/16)

sábado, 17 de dezembro de 2016

O Uivo da Bruxa (Cry of the Banshee, Inglaterra, 1970)


“No ouvido sobressaltado da noite, como eles gritam por seus temores! Aterrorizados demais para falar, a única coisa que podem fazer é choramingar, choramingar, fora do tom...” – Edgar Allan Poe

Baseado numa lenda irlandesa, “banshee” (do título original) é uma criatura sobrenatural invocada do inferno por magia negra, para executar uma vingança. “O Uivo da Bruxa” é um filme de horror gótico inglês da “American International Pictures” similar ao melhor estilo da produtora “Hammer”. Foi dirigido por Gordon Hessler em 1970 e tem na liderança do elenco o ícone eterno Vincent Price. Ele faz o papel do tirano inquisidor Lord Edward Whitman, que governa uma aldeia através da manipulação do medo, combatendo a bruxaria da época com julgamentos severos dos acusados e aplicação de penalidades violentas e dolorosas.
Ele persegue os seguidores de uma seita pagã, que realiza cultos na floresta e é liderada pela veterana Oona (a ucraniana Elizabeth Bergner). Muitos dos membros foram assassinados e em represália a bruxa convoca Satã para enviar um “banshee”, uma criatura sobrenatural que se apossa do corpo de um jovem, Roderick (Patrick Mower). O ser mitológico maligno então se vinga violentamente da família Whitman, formada ainda pela esposa infeliz do inquisidor, Lady Patricia (Essy Persson), e seus filhos Maureen (Hilary Heath), Harry (Carl Higg) e Sean (Stephan Chase).
Os moradores supersticiosos do vilarejo ouvem constantemente o uivo de um cão selvagem que aterroriza a região e mata as ovelhas, e sentem na pele as ações vingativas de um demônio invocado do inferno.
Em “O Uivo da Bruxa” temos uma história gótica com o tema de família amaldiçoada, enfrentando a fúria vingativa de uma criatura inumana. O roteiro de Tim Kelly e Christopher Wicking procura explorar a tensão constante do conturbado período de caça às bruxas na Europa do século XVI. Onde torturas dolorosas eram as punições comuns para obter confissões e delações, como podemos ver nas palavras de um inquisidor para uma mulher seguidora do culto pagão da “antiga religião”: “Podemos matá-la um minuto por dia durante um ano, ou tudo em um único minuto. Poupe-se da dor e diga-nos onde Oona está e prometo-lhe, você morrerá em paz.”
Vincent Price (1911 / 1993), um dos maiores e insuperáveis atores de horror de todos os tempos, repete o papel de um sádico tirano da Inquisição, assim como no filme anterior “O Caçador de Bruxas” (1968), Sua relação com o horror é tão sólida em incontáveis filmes preciosos para a história do gênero, que sua participação é a garantia do entretenimento.
O diretor alemão Gordon Hessler (1925 / 2014) tem no currículo filmes como “Embuste Diabólico” (1965), “O Ataúde do Morto Vivo” (1969) e “Grite, Grite Outra Vez” (1970), sendo os dois últimos também com Price.
Nos ataques do “banshee”, a criatura aparece pouco e seu visual é visto sempre rapidamente, numa aposta maior para a sugestão. Mas, ainda assim percebemos características que nos remetem para similaridades com lobisomens, em efeitos extremamente toscos de uma produção de baixo orçamento, garantindo a diversão dos apreciadores de cinema fantástico bagaceiro.

“Inglaterra no século XVI, uma época sombria e violenta. Bruxaria e os fantasmas da antiga religião ainda mantém o controle nas mentes das pessoas, preocupando tanto a Lei como a Igreja. Então quem pode ter certeza que isto é somente superstição primitiva e medo infantil?”

(Juvenatrix – 17/12/16)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Vinte mil léguas submarinas

Vinte mil léguas submarinas (20000 leagues under the sea) – EUA, 1954. Produção de Walt Disney. Direção de Richard Fleischer. Roteiro de Earl Felton, com base no romance de Julio Verne. Efeitos especiais de Elmo Williams. Com James Mason, Kirk Douglas, Peter Lorre, Paul Lukas.


         Em criança, com minha família, assisti pela primeira vez, no cinema, ao filme Vinte mil léguas submarinas (20.000 leagues under the sea), de Walt Disney, produzido em 1954. Depois pude reassisti-lo diversas vezes e de diversas maneiras. Ele marcou a minha vida, despertou em mim o amor pela ficção cientifica e pela fantasia.

         Até hoje eu vejo esta extraordinária película como uma cabal demonstração do gênio de Walt Disney, talvez o maior cineasta de todos os tempos e aquele que realizou o maior número de filmes de arte, vale dizer, de obras-primas.
         Trata-se aqui da adaptação de um romance de outro gênio, Julio Verne (Vingt mille lieus sons le mers no original francês), lançado em 1870. Verne é considerado o pai da ficção cientifica, que ele “emendou” com o romance de aventuras e viagens. É bem verdade que, antes de Verne (1828-1905) já existia ficção cientifica — por exemplo, na obra de Edgar Allan Poe (1809-1849), mas não tão copiosa. O romance de Verne, volumoso e cansativo, porém notável, antecipa a invenção do submarino marítimo de longo alcance, pois há notícia de modelos toscos utilizados em rios, na Guerra de Secessão dos norte-americanos.
         Walt Disney produziu 20.000 léguas submarinas com grande requinte. O roteiro de Earl Felton enxugou o romance, propiciando um espetáculo grandioso e sublime, desde a parte técnica (fotografia, cenário, efeitos especiais) à parte moral, passando pela emocional (é eletrizante) e pelas interpretações exemplares do reduzido elenco.
         De fato, importantes na trama são quatro personagens: o Professor Aronnax, oceanógrafo (Paul Lukas), seu assistente Conseil (Peter Lorre), ambos franceses, o arpoador canadense Ned Land (Kirk Douglas) e finalmente o majestoso, sinistro e misterioso comandante do Nautilus, o Capitão Nemo (James Mason). Este foi, provavelmente, o maior papel da carreira de Mason, que está soberbo na interpretação do herói trágico e meio louco, de origem desconhecida — não revelada no filme e no livro, mas sabemos tratar-se de um hindu.
         Nemo é um grande cientista e navegador, com um trágico passado que o torna obcecado por vingança. Preso e torturado pelos colonizadores ingleses, recusou revelar os seus segredos: a energia atômica, que depois moveria o Nautilus. Ao fugir com um grupo de seguidores fiéis, Nemo deixou para trás a família morta (esposa e filho) e tratou de construir o submarino atômico, que usaria para atacar os navios britânicos de guerra ou transportadores de armas, tornando-se assim um terrível “anjo da vingança”.
         Sobre isso a película mostra uma cena antológica quando Nemo, com um olhar ensandecido, comanda a carga do Nautilus contra um navio, até a colisão.
         Aronnax, embora fascinado pelo imenso mundo submarino posto à disposição da sua curiosidade cientifica, não pode concordar com tais procedimentos, e fará o possível para convencer o capitão a disponibilizar os seus conhecimentos para a humanidade, e cessar a sua “jihad”.
         Outra cena antológica — dessas que a gente grava para o resto da vida — é a luta da tripulação do submarino com a lula gigante, o terror dos oceanos. Por ela se vê que na década de 50 já haviam boas trucagens no cinema. Aliás, Walt Disney e sua equipe sempre foram bons em trucagens.
         Ned Land (Kirk Douglas) faz o contraponto humorístico do austero e sombrio Capitão Nemo. Ned faz amizade com a foca de bordo e acidentalmente engole um peixinho em conserva. É também o rebelde da história, que não se conforma com o cativeiro e luta pela liberdade, bem mais que Aronnax e Conseil.
         Vinte mil léguas submarinas é um épico grandioso que se sustenta na fatídica figura do Capitão Nemo. E em seu final trágico, quando Nemo agoniza ao ser mortalmente baleado, resta uma profecia de esperança: de que aqueles segredos científicos, que se perdem com Nemo, serão um dia descobertos pela humanidade, “quando a Deus aprouver”.
Miguel Carqueija

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

As Aventuras de Gulliver no Palco

Aventuras de Gulliver. Peça de teatro baseada no romance As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Escrita e dirigida por Dario Uzan, da Companhia Articularte, São Paulo. Lançada originalmente em 2010.

Lemuel Gulliver é um jovem destemido em busca de novas experiências e aventuras. Deixa a Inglaterra e singra os mares, mas não contava com os contratempos do destino. Em decorrência de uma forte tempestade, o navio naufraga e ele vai parar numa ilha desconhecida chamada Lilliput. Partindo desta premissa do clássico As Viagens de Gulliver (Gulliver´s Travels), do escritor irlandês Jonathan Swift, escrito em 1726, a Companhia Articularte de Teatro apresenta uma visão muito particular deste romance de viagens, que originalmente buscou satirizar os costumes políticos e científicos do século XVIII.
Gulliver descobre que Lilliput é habitada por pessoas muito pequenas, com apenas seis centímetros de altura!, e passa a conviver com os problemas da sociedade local, envolta em sérias divergências políticas. Gulliver resolve não tomar partido, procurando arbitrar os problemas entre os grupos rivais – no caso, a intenção do autor era criticar os ingleses e os franceses. A esta proposta séria do autor, a peça prioriza o aspecto lúdico, com Gulliver resolvendo problemas do cotidiano dos pequeninos. E é justamente neste contraste que a peça tem um dos seus grandes momentos de realização, ao contrapor o ator que protagoniza Gulliver com os vários bonecos que representam os habitantes da ilha. Este trecho impulsiona mesmo o interesse pelo restante da peça, por causa do bom resultado desta interação, complementado por uma cenografia agradável e criativa.
Como se sabe, o romance é dividido em quatro partes, mas a peça enfoca os dois primeiros, daí o motivo de chamar Aventuras de Gulliver. Na segunda parte, o herói deixa Lilliput, adentra o mar novamente, mas encontra uma nova ilha, chamada de Brobdingnag – o nome esquisito não é fortuito, pois serve apara acentuar outra realidade. Diferentemente do que viveu em Lilliput, agora Gulliver é que é um pequeno ser frente aos gigantescos habitantes da nova ilha. Ele é capturado e passa a viver numa família sob os cuidados de uma menina. Explorado por um pai malvado até a exaustão, é vendido para servir de atração junto às pessoas desta sociedade. Até que a rainha intercede ao seu favor e ele ganha o mar novamente, desta vez para voltar à sua casa – que, aliás, também é uma ilha!
Nesta segunda parte, o objetivo de Swift era ridicularizar a suposta “grandeza” de saber dos cientistas – que não trazia, em sua opinião, benefícios concretos à sociedade –, mas na peça a relação enfatiza um aspecto mais social, da exploração e humilhação de um estrangeiro em uma sociedade aparentemente mais poderosa. Claro que esta interpretação subjaz no subtexto da trama, pois em si ela mantém o aspecto prioritário do entretenimento e com isso, consegue agradar tanto as crianças pela diversão e imaginação, como ao adulto pela sugestão crítica embutida.
Vale ressaltar o estilo do texto, na adaptação feita pelo diretor, Dario Uzam. Muito saboroso, ao priorizar as rimas, os provérbios, os ditos populares, as advinhas e os limeriques, o texto confere um misto de encantamento e estranhamento, além de sublinhar um efeito de distanciamento imagético que torna mais verossímil a proposta, especialmente se encarada do ponto de vista infantil, teoricamente mais aberto à imaginação irrestrita.
Embora este romance de Swift seja muito conhecido, com várias adaptações na TV e no cinema, o olhar da Cia. Articularte tem seu mérito próprio, ao despertar um interesse diferenciado nos pais e nos filhos, cada um do seu ponto de vista. Além disso é um espetáculo teatral de entretenimento efetivo, seja pela qualidade do texto, seja pela boa dramaturgia posta em cena pelos atores e os muitos bonecos, cada um deles uma atração à parte no desenrolar da história.

– Marcello Simão Branco

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Distrito Federal, Luiz Bras

Distrito Federal, Luiz Bras. 280 páginas.Editora Patuá, São Paulo, 2015.

Luiz Bras estreou no restrito ambiente da ficção especulativa literária há menos de dez anos, mas já faz parte dos grandes nomes do gênero no país. Fica fácil entender o por quê quando descobrimos que Bras é clone de Nelson de Oliveira, importante escritor mainstream que se retirou da lida para algum refúgio paradisíaco, para curtir os mimos proporcionados pelos milhões de dólares de seu bem merecido patrimônio. Bras herdou de Oliveira a habilidade com as palavras, que tem aplicado no exercício da ficção especulativa, a qual está empenhado em entender e interagir.
Entre os muitos títulos do autor estão as bem avaliadas coletâneas de contos Paraíso líquido (2010), Máquina Macunaíma (2013) e Pequena coleção de grandes horrores (2014), os romances Sozinho no deserto extremo (2012), Sonho, sombras e super-heróis (2011) e Babel Hotel (2009), a não ficção Muitas peles (2011) e uma porção de antologias, como autor selecionado, como organizador ou ambos.
Um dos traços de Bras é sua busca constante por uma voz particular, que se aproveita de um estilo maduro com traços pós-modernos e poesia concretista abusando de aliterações e pleonasmos, além de propostas narrativas que fogem do padrão convencional sem perder de vista os elementos especulativos, geralmente da ficção científica mas também da fantasia e do horror, com um diálogo próximo ao do estilo que se convencionou chamar de cyberpunk, com o qual o autor parece se identificar. Outra característica de Brás é sua facilidade para lidar com temas nacionais de todos os matizes, desde elementos folclóricos até a política nacional. E é exatamente este o caso de Distrito Federal, romance que o autor nomeou como "rapsódia tupinipunk", que revela muito sobre a forma como o autor a compôs.
Trata-se de um texto experimental, com pendão inegavelmente poético, que retoma ideias testadas em dois contos homônimos vistos em suas antologias anteriores. A história é um vitral formado por pequenas narrativas focadas nas ações e solilóquios de um curupira – o último de sua espécie – que, enlouquecido com a destruição das matas brasileiras, toma o corpo de um jovem humano e passa a assassinar, com requintes de artística crueldade, a população corrupta da capital do país: deputados, senadores, ministros, governadores, prefeitos, secretários, banqueiros, tesoureiros, políticos de forma geral pois, para o curupira, a corrupção fede terrivelmente.
As ações deste improvável anjo vingador, que sempre escapa de qualquer tentativa de captura, faz surgir um exército de imitadores que matam da mesma forma que ele. Há algum conflito quando o curupira encontra, por acaso, o último saci, que também tomou o corpo de alguém e está matando, mas como são inimigos naturais, acabam não se entendendo.
Na medida em que o curupira e o saci promovem sua cruzada sangrenta, a realidade vai sendo sobreposta pela de um popular jogo eletrônico online, justamente chamado de Distrito Federal, que mistura política,  mitologia e muita violência. O surgimento de uma criança especial, que não é nem menino nem menina, exacerba ainda mais os acontecimentos, o que pode levar ao fim da humanidade sobre o planeta.
A leitura do texto é fácil e ligeira, com abundância de frases muito curtas, mas a narrativa fragmentária não dificulta o entendimento do enredo, embora este seja algo secundário na obra. A experiência estética literária é bem mais importante aqui, por isso é recomendável que o leitor esteja aberto à ela.
Distrito Federal é uma publicação da editora paulista Patuá, cujo lema "livros são amuletos" combina perfeitamente com este romance, que tem 280 páginas em papel polem e acabamento luxuoso, encadernado com capas duras e ilustrado por Teo Adorno – outro clone que Nelson de Oliveira deixou para trás.
Uma última observação que se pode fazer sobre Distrito Federal está expressa, de forma clara e absoluta, na última página do volume: "...reunião de ciência & religião, passado, presente & futuro, cultura popular & alta cultura..."; é a receita de Luiz Brás para resolver o histórico impasse entre a ficção de gênero e o mainstream, que tem buscado desde a sua estreia. Desta forma, Distrito Federal é a proposta mais bem acabada do autor para a ficção de gênero brasileira. Resta saber se o fandom e o mainstream, monstros ferozes, cheios de tentáculos e presas afiadas, vão entender isso. Se não entenderem, azar deles. Luiz Bras entendeu muito bem.
Cesar Silva

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Os Bárbaros Invadem a Terra (The Mysterians, Japão, 1957)


 Um cientista descobre um pequeno planeta localizado entre Marte e Saturno e o batiza de “Mysteroid”. Em seguida, a Terra é surpreendida pelo ataque de um robô gigante acionado por controle remoto, que pertence a uma raça alienígena vinda desse planeta. Chamados de “Mysterians” (do título original em inglês), eles ocupam uma pequena área próxima ao famoso Monte Fuji, no Japão, com uma nave gigantesca parecendo uma redoma. Eles são humanoides e solicitam para que os terráqueos forneçam mulheres para miscigenação e continuidade de sua espécie em decadência, uma vez que destruíram seu planeta com um holocausto nuclear e os poucos sobreviventes se refugiaram em Marte, com seus bebês nascendo deformados por causa dos efeitos radioativos do apocalipse.
Desconfiados das reais intenções dos extraterrestres, o governo japonês, representando a humanidade, convoca o auxílio de outros países como os Estados Unidos e a antiga União Soviética, e juntos decidem atacar os invasores com canhões, mísseis, bombas, aviões e tanques de guerra, numa luta desigual com os alienígenas possuindo uma tecnologia superior e armas potentes com raios de calor.
Com um sonoro título nacional, “Os Bárbaros Invadem a Terra” foi dirigido pelo especialista Ishiro Honda (1911 / 1993), de inúmeros outros filmes preciosos do cinema fantástico bagaceiro como “Godzilla” (1954), “O Monstro da Bomba H” (1958) e “Matango, a Ilha da Morte” (1963). É uma divertida ficção científica lançada na nostálgica e produtiva década de 50 do século passado, um período extremamente representativo com uma infinidade de filmes de horror e FC de todos os temas, especialmente abordando questões relacionadas com a tensão permanente da guerra fria e os efeitos de uma catástrofe atômica global.
É um filme que se situa dentro do tema que aborda invasões alienígenas, apresentando batalhas com miniaturas e um robô gigante chamado “Moguera” destruindo cenários de uma cidade, simulando terremotos e incêndios, com efeitos especiais expressivos e impressionantes para a época, difíceis de serem produzidos. Um tempo no passado onde não existiam os efeitos de computação gráfica que seriam comuns dezenas de anos depois, muitas vezes tornando tudo muito artificial. O monstro mecânico gigante é hilário de tão tosco, com antenas e um nariz pontudo, além de soltar raios mortais de calor pelos olhos. O foguete dos humanos também é divertido de tão bagaceiro, num esforço militar da Terra para tentar combater os invasores do espaço sideral. A aparência dos alienígenas é patética, eles são humanoides usando capacetes de motocicletas e vestindo capas coloridas e luvas.
Podemos perceber a tentativa de uma mensagem de advertência para a humanidade, no sentido de diminuir a tensão perturbadora da guerra fria daquele período entre as principais potências do mundo, alertando para que não seja cometido o mesmo erro dos Mysterians, que quase exterminaram por completo sua raça numa guerra nuclear. E convocando países rivais como EUA e URSS para unirem forças no combate ao inimigo comum, alienígenas invadindo nosso planeta.
Curiosamente, foram produzidas duas continuações, a primeira em 1959 com o nome “Mundos em Guerra” (Battle in Outer Space), também dirigido por Ishiro Honda. E a outra em 1977, “The War in Space”, também produção japonesa com direção de Jun Fukuda. 
(Juvenatrix – 01/12/16)