quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

A torre acima do véu, Roberta Spindler

A torre acima do véu
, Roberta Spindler. 272 páginas. São Paulo: Giz, 2014.

Aconteceu muito rápido e ninguém nunca soube de onde veio o miasma que cobriu todo o planeta. Quem respirava a névoa morria em dolorosa agonia, pelos menos esse foi o destino daqueles que tiveram sorte. 
Os arranha-céus das cidades, com centenas de andares, proporcionaram a uns poucos a possibilidade de sobreviver nos níveis mais altos, acima da névoa venenosa. Ali, esses miseráveis fundaram uma nova sociedade dominada por leis draconianas, devido a escassez extrema recursos, especialmente de energia, comida e água. Abaixo da linha da névoa, a vida também mudou. Humanos e animais transformados em selvagens antropófagos chamados de sombras, eventualmente sobem as escadas para caçar os últimos seres humanos encurralados no topo dos edifícios. 
Nesse ambiente insalubre vivem Beca e Edu, filhos de Lion, cidadãos da comunidade de Nova Superfície, sobreviventes que habitam um conjunto de prédios cuja sede está localizada nos últimos andares da Torre, o mais alto edifício da antiga megalópole de Rio-Aires. Beca é uma mergulhadora, exploradora especializada que, fazendo uso de cabos e outros equipamentos de escalada, desce aos andares próximos à linha da névoa em busca de qualquer dispositivo remanescente da antiga tecnologia que possa ser reaproveitado. Enquanto Beca cumpre a parte braçal do processo, Edu, seu irmão mais novo, e Lion, seu pai, um mergulhador aposentado, ficam numa central de computadores monitoranto os movimentos de Beca e mantendo cosntante contato de rádio de forma a mantê-la viva durante a missão. A história inicia durante uma dessas incursões, na qual Beca procura por um tipo de bateria de energia infinita cuja localização lhe foi passada por Rato, um informante não muito confiável. A operação acaba comprometida por um conflito com outra equipe de mergulhadores, e Beca acredita que foi traída por Rato. 
Esse desentendimento inicial progride a um conflito mais sério quando Edu, ao participar de um mergulho, acaba despencando para dentro da névoa, onde desparece completamente. Tudo leva a crer que Edu morreu, mas Rato pensa que ele ainda vive em algum lugar na superfície. Desesperados para resgatar Edu, Beca e Lion convencem os governantes de Nova Superfície a organizar uma missão de resgate na região dominada pela névoa venenosa e pelos sanguinários mutantes. E a aventura vai revelar muito mais sobre o que está por trás da névoa, de onde ela veio e por quê, e o papel de cada um nesse drama mortal.
A torre acima do véu é um romance originalmente publicado em 2014, pela Giz Editorial, e é essa a edição tratada nesta resenha. A autora, Roberta Spindler, é paraense de Belém e publicou anteriormente o romance Contos de Meigan: A fúria dos cártagos, em parceria com a também paraense Oriana Comesanha, publicado em 2012 pela Editora Dracaena. Também teve publicado o romance Heróis de Novigrat (Suma, 2018). 
Spindler tem um texto maduro e bem modelado, sem experimentalismos formais, seguindo a risca todos os protocolos da ficção de gênero numa mescla de fantasia, terror e ficção científica acessível aos leitores mais jovens para quem sua ficção é dirigida. Os personagens são estruturados com motivações bem calçadas, o que dá verossimilhança ao drama ainda que seja todo crivado de situações hiperbólicas incríveis. É justamente o bom desenvolvimento dos personagens que fleva o leitor a avançar, preocupado com o destino deles. 
A produção da Giz é caprichosa, com ótima revisão de Sandra Garcia Cortez e a ilustração 
expressiva de Rafael Victor que já bastou para capturar a minha atenção, numa das mais instigantes capas da ficção fantástica brasileira recente. 
Enquanto aguardamos a já anunciada continuação para A torre acima do véu, o romance acaba de ganhar nova edição pela Editora HarperCollins Brasil. Vale a leitura deste e dos demais trabalhos de Roberta Spindler, que tem progredido rapidamente no espaço editorial brasileiro. 
Cesar Silva

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Mestre das Marés


Mestre das Marés, Roberto de Sousa Causo. Arte de capa de Vagner Vargas. 288 páginas. São Paulo: Devir, Coleção Pulsar, 2018.

 

Este romance é o terceiro livro de Causo em seu universo ficcional GalAxis, e o segundo da série As Lições do Matador. O primeiro foi Glória Sombria (2013), que mostra uma das primeiras missões do herói Jonas Peregrino, e o segundo traz as aventuras de Shiroma: Matadora Cyborgue (2015). Neste meio tempo outras histórias curtas de ambos os personagens foram escritas e publicadas. Mestre das Marés é, isto sim, o trabalho mais ambicioso deste universo até o momento, e um dos melhores já escritos pelo autor.

Nesta nova missão, o Capitão Jonas Peregrino e sua unidade dos Jaguares são enviados para resgatar uma estação internacional de pesquisa, em órbita do planeta Firedrake Gamma-M, depois que ela é atacada pelas naves-robôs dos tadais, a misteriosa espécie alienígena que combate a expansão humana pela Via-Láctea e ameaça também outras civilizações alienígenas.

Os cientistas se refugiam no planeta, mas ele é duramente atingido por jatos relativíscos que começam a ser disparados pelo buraco negro dos arredores, e que era pesquisado pelos cientistas. Gamma-M tem sua atmosfera eliminada e é só uma questão de tempo para que seja inteiramente destruído pela singularidade, chamada pelos cientistas terrestres de Firedrake, o dragão que cospe fogo. Contudo, talvez a metáfora mais apropriada seja a de Mestre das Marés, a tradução do nome Agu-Du’svarah, dado pela antiga civilização do Povo de Riv — vistos antes na noveleta “A Alma de Um Mundo”.[1]

Conforme os cientistas da estação Roger Penrose — homenagem antecipada ao físico inglês vencedor do Nobel em 2020 — e Peregrino irão constatar, o ataque ocorreu porque nos subterrâneos do planeta oculta-se uma instalação tadai secreta, com dispositivos de alta tecnologia e informações que podem ajudar na guerra travada pela Terra e seus aliados contra os inimigos. A missão, então, passa a ser muito mais complexa e perigosa do que inicialmente prevista, pois além de resgatar os cientistas, Peregrino deve levar o que puder do dispositivo.

Como já mostrado nas histórias anteriores, no século XXV embora a Terra tenha se expandido pela galáxia suas divisões políticas internas continuaram. Peregrino é um militar da Latinoamérica, a menos afluente das alianças continentais. As outras são a Aliança Transatlântico-Pacífico e os Euro-Russos. Em meio às rivalidades políticas, os humanos vivem nas chamadas Zonas de Expansão, com um grande interesse pela Esfera, a região mais rica e habitada por civilizações alienígenas, como o já citado Povo de Riv. De certa forma, é uma amostra de incrível poder econômico, militar e tecnológico dos humanos, conseguir se espalhar pela galáxia, se equiparando a outras civilizações que, ao que parece, conseguiram sua união política interna.

Mas este contexto político maior é abordado de forma indireta, por meio das estratégias e intrigas entre as alianças para obter poder e influência entre os humanos e, destes, com outros povos da galáxia. Em Mestre das Marés tal contexto se desdobra aos poucos, principalmente quando vai se tornando claro que não há um mesmo objetivo entre os cientistas e Peregrino, quanto a quem deve ser o destinatário das valiosas informações do dispositivo tadai.

Contudo, a grande força do romance é a missão em si. Um grupo de naves espaciais se aproxima de um planeta que está sendo devorado por um buraco negro e ainda sob a ameaça de extermínio pelos inimigos tadais. Como diz o subtítulo, a aventura é mesmo uma “jornada ao inferno de um mundo destruído por um buraco negro”. O enredo se concentra na descida a Gamma-M e o drama explícito de, mais do que resgatar os cientistas, obter as informações dos tadais a tempo de não ser destruído por Agu-Dus’varah.

Causo narra com detalhes extremos toda a sequência de acontecimentos dramáticos, em que o risco de morte é iminente a cada virada de página. Isso dá uma sensação de certa angústia ao leitor, de se estar diante de verdadeiras situações-limite, em que cada decisão pode ser a última. Neste livro, mais do que nas histórias anteriores, é mostrado um Peregrino mais sensível ao drama que o cerca. Não em relação à missão militar em si, mas ao contexto de estar diante da maior força conhecida da natureza, o buraco negro. A médica da equipe dos cientistas o diagnostica com a “Síndrome de Reinhardt”, com aumento intenso da ansiedade e numa situação próxima do pânico, diante da sensação de descontrole e morte iminente — a popular síndrome do pânico. Para um militar em comando isso poderia ser embaraçoso, mas Peregrino contorna a situação, ao se concentrar nos objetivos em si de resgatar os cientistas e o dispositivo tadai.

Mesmo que o aspecto dramático da trama seja evidente, por vezes, é preciso um esforço do leitor em acompanhar capítulos com descrições detalhadas dos aspectos científicos e militares envolvidos na missão. Causo mostra que pesquisou muito para obter um resultado convincente, principalmente sobre os conceitos de Física relativos à dinâmica difícil de um buraco negro. Se ficasse apenas neste aspecto o romance já chamaria a atenção como uma peça de ficção científica hard extrema, talvez só com paralelo com os escritos de Jorge Luiz Calife, em seu Universo da Tríade. Mas em meio a este contexto mais árido, há a dimensão humana do sofrimento, entremeado com seguidas citações de Peregrino de trechos dos poemas de Dante Alighieri (1265-1321), no mergulho poético de extrema força simbólica religiosa de sua obra A Divina Comédia (1304-1311), em especial na seção relativa ao “Inferno”. Embora seja de se pensar como Peregrino fosse um especialista numa obra como essa, por outro lado é parte da densidade de um personagem que vai além das aparências. Neste sentido, tais paralelos entre o que ele e seus comandados viveram nas entranhas de um planeta prestes a ser destruído e as imagens poéticas de Dante, conferem uma dimensão épica à aventura.

Outro diferencial é a presença de uma jornalista que foi destacada para escrever um perfil nada amigável de Peregrino. Por cerca de metade do livro, as seções são entremeadas com a missão militar em si e as considerações pessoais nada simpáticas de Camila Lopes ao personagem de sua reportagem. Chega a causar incômodo a desconfiança da jornalista, para quem já acompanhou a postura ética de Peregrino em outras histórias, mas, como irá ser revelado, tudo fazia parte de um esquema oculto para prejudicar o prestígio de um militar que obteve grandes vitórias contra os tadais em missões anteriores.

Mestre da Marés é um dos melhores romances hard da ficção científica brasileira. Não que haja muitos neste subgênero entre nós, mas, como já disse, o autor é eficaz em trabalhar de forma didática tantos conceitos, justificando-os como necessários para o tipo de história que está sendo narrada, e tornando palatável para o leitor. O romance ainda é complementado por uma seção de “anexos”, com várias informações e curiosidades sobre o Universo GalAxis. Trabalho caprichado.

Apesar de ser o maior texto já escrito sobre este universo, muitas questões são deliberadamente deixadas em aberto com a conclusão do romance. As informações do dispositivo tadai foram realmente perdidas? A que interesses de fato serviam os cientistas da Roger Penrose? Qual o possível papel das outras alianças terrestres rivais da Latinoamérica? Quais os segredos do misterioso Povo de Riv, possivelmente o maior aliado dos humanos, mas com seus próprios interesses na guerra? Além, é claro da persistência do mistério dos próprios tadais. É um empolgante universo ficcional em construção, que só instiga o leitor a continuar a acompanhar as próximas aventuras.

Marcello Simão Branco

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Agora em janeiro de 2024, o Universo GalAxis completa 15 anos. Para comemorar a data está disponível quatro papéis de parede ilustrados por Vagner Vargas. Podem ser baixados gratuitamente: http://universogalaxis.com.br/universo-galaxis-faz-15-anos-em-2023/

 


[1]     Publicado primeiro na antologia Space Opera: Jornadas Inimagináveis em uma Galáxia não Muito Distante, organizada por Hugo Vera e Larissa Caruso. Editora Draco, 2012.