quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A Vingança do Monstro (Tobor the Great, EUA, 1954, PB)

 


Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, com a turbulência política polarizada entre as duas grandes potências da época, Estados Unidos e antiga União Soviética, iniciou-se uma guerra fria com desconfiança mútua e que trouxe ao mundo uma paranoia do apocalipse nuclear, um medo terrível que a humanidade aniquilasse o próprio planeta.

Surgiram a partir daí muitos filmes de ficção científica e eventualmente com elementos de horror, explorando o medo de uma guerra com bombas atômicas e a necessidade de uma corrida armamentista e conquista espacial.

Em 1954, a “Republic”, uma distribuidora de filmes com orçamentos reduzidos, lançou “A Vingança do Monstro” (Tobor the Great), com fotografia em preto e branco, duração curta de apenas 76 minutos e direção de Lee Sholem, apresentando uma história com um enorme robô (o “Tobor” do título original, que na verdade é “robot” soletrado de trás para frente), que foi criado para pilotar o primeiro foguete americano rumo ao espaço.

 

Os cientistas Prof. Arnold Nordstrom (Taylor Holmes) e Dr. Ralph Harrison (Charles Drake) estão trabalhando no programa espacial americano, no desenvolvimento de foguetes nucleares. Eles concordam que é muito perigoso a utilização de astronautas humanos nos testes dos voos espaciais, arriscando suas vidas em protótipos de foguetes experimentais. Como solução alternativa, o Prof. Nordstrom constrói um robô enorme ou um simulador elétrico do Homem, como ele definiu, uma espécie de ser sensitivo com instinto sintético, comandado pela percepção extra-sensorial do seu criador.

Brian Roberts (Billy Chapin), o inteligente neto de apenas onze anos do Prof. Nordstrom, acaba criando uma relação de amizade com o robô, sempre supervisionado pelo avô e acompanhado à distância pela mãe viúva do rapaz, Janice Roberts (Karin Booth). Porém, logo o extraordinário robô desperta a atenção de espiões estrangeiros infiltrados nos Estados Unidos, interessados em sua tecnologia voltada para fins militares, a criação de um exército de robôs com estímulos destrutivos, e na disputa da corrida espacial da guerra fria, devido suas habilidades na pilotagem de foguetes.

 

“A Vingança do Monstro” (título nacional mal escolhido e apelativo) é mais uma daquelas preciosidades do cinema fantástico antigo de baixo orçamento. Sim, o roteiro é simples, previsível e ingênuo, o elenco é apenas esforçado, os efeitos são toscos, mas a soma disso tudo é diversão garantida, principalmente pelas cenas com Tobor (uma em especial é hilária, quando ele está dirigindo um jipe). Ele  também é um dos robôs que ficaram eternizados, apesar de bem menos conhecido. Mesmo num patamar menor, certamente está figurando ao lado de outros mais populares e clássicos como “Maria” (“Metropolis”, 1926), “Gort” (“O Dia Em Que a Terra Parou”, 1951), “Robby” (“Planeta Proibido”, 1956) e “B-9” (série de TV “Perdidos no Espaço”, 1965-1968).

A casa do Prof. Nordstrom, onde em seu laboratório subterrâneo ele inventou o robô piloto espacial, é repleta de aparelhos e dispositivos tecnológicos altamente impressionáveis na época, com sistemas sofisticados de alarme e monitoramento por telas, e que certamente soam comuns e antiquados para nosso tempo. Mas, são justamente características como essas que despertam a curiosidade dos apreciadores do cinema bagaceiro. 

Curiosamente, numa jogada de marketing muito utilizada na época com filmes similares, os cartazes de divulgação mostram o robô Tobor segurando em seus braços uma bela mulher, o que não acontece no filme. Na verdade, ele apenas carrega nos braços o neto do cientista, o garoto com quem cria um laço de afeição.

 

(Juvenatrix – 30/09/20)






terça-feira, 29 de setembro de 2020

O Poço e o Pêndulo / A Mansão do Terror (The Pit and the Pendulum, EUA, 1961)

 


“Está prestes a entrar no inferno. Inferno! O mundo das profundezas. A região infernal. A morada dos condenados. O local da tormenta. Pandemônio, Abbadon, Tophet, Gehenna, Naraka, o Poço! E o Pêndulo! A lâmina do limiar do destino.”

 

Nos anos 60 do século passado, o cultuado diretor e produtor Roger Corman, conhecido por sua habilidade em fazer ótimos filmes com orçamentos reduzidos, teve uma parceria produtiva com o ator Vincent Price, um dos grandes astros do cinema de Horror em todos os tempos, para a adaptação nas telas de alguns contos do escritor Edgar Allan Poe.

Dessa união de talentos saíram filmes divertidos e memoráveis como “O Solar Maldito” (1960), “O Poço e o Pêndulo” (The Pit and the Pendulum, 1961), que é o assunto dessa resenha, “Muralhas do Pavor” (1962), “O Castelo Assombrado” (1963), sendo este apenas levemente inspirado em Poe e com uma história de H. P. Lovecraft, “O Corvo” (1963), “A Orgia da Morte” (1964) e “Túmulo Sinistro” (1964). Alguns deles tiveram o roteiro assinado pelo especialista Richard Matheson, outro nome eternizado na história do cinema fantástico.

Para completar as várias atrações com nomes de personalidades associadas ao Horror, temos ainda a presença da “scream queen” Barbara Steele (“A Maldição do Demônio”, 1960) e produção executiva da “American International” de Samuel Z. Arkoff e James H. Nicholson.

 

A história de “O Poço e o Pêndulo” foi ambientada na Espanha do século XVI, na terrível época da Santa Inquisição, com o assassinato cruel e práticas de tortura em homens e principalmente mulheres acusadas falsamente de bruxaria, a favor de interesses dos poderes religiosos que dominavam a Europa.

Nesse cenário de devastação e prova da hipocrisia da raça humana, vivia Nicholas Medina (Vincent Price), filho do terrível inquisidor Sebastian Medina (também Price), num castelo imponente no alto de um morro rodeado pelas ondas furiosas do mar. Ele era atormentado pela herança maldita do pai assassino de inocentes, com uma câmara imensa no porão do castelo, repleta de instrumentos de tortura que só de olhar já sentimos dor.

Apesar do ambiente sinistro, ele era feliz com sua amada esposa Elizabeth Barnard Medina (Barbara Steele). Porém, após a morte misteriosa da bela mulher, chegou ao castelo o irmão Francis Barnard (John Kerr), vindo da Inglaterra para investigar e obter mais informações sobre a morte de Elizabeth.

O jovem inglês foi recebido por Catherine Medina (Luana Anders), irmã de Nicholas, que estava no castelo para cuidar do irmão triste e deprimido com a morte da esposa. Mesmo depois das explicações do médico da família Dr. Charles Leon (Antony Carbone) sobre a morte inesperada de Elizabeth num colapso nervoso ao visitar a câmara de torturas, o recém chegado visitante não se convenceu e se instaurou um clima de desconfiança no castelo, com consequências trágicas para todos.

 

“O Poço e o Pêndulo” também é conhecido no Brasil pelo título “A Mansão do Terror”. O filme tem todos os elementos normalmente encontrados no horror gótico, com um castelo tétrico cheio de aposentos imensos, móveis antigos, iluminação por velas e candelabros, ruídos constantes nos cantos escuros de gelar a espinha e o principal, uma câmara com instrumentos de tortura que foram responsáveis pelo sofrimento e morte dolorosa de muitas pessoas vítimas da Inquisição. Membros torcidos e quebrados, olhos arrancados das órbitas, carne sendo queimada até ficar preta. E um poço infernal com um pêndulo segurando uma lâmina imensa para dilacerar o abdômen das vítimas presas deitadas numa cama de pedra.

Alguns dos temas recorrentes na obra literária de Edgar Allan Por como maldição familiar, loucura, insanidade, conspiração, traição, vingança e a paranoia de ser enterrado ou emparedado vivo, estão presentes na atmosfera perturbadora do castelo, garantindo a diversão dos fãs do cinema de horror gótico e dos ícones do estilo como Roger Corman, Vincent Price e Richard Matheson.

Curiosamente, os cenários da câmara de tortura foram utilizados também em outro filme de Corman, “Sombras do Terror / Terror no Castelo” (The Terror, 1963), com Boris Karloff e Jack Nicholson. E um dos principais instrumentos de tortura é a “donzela de ferro” (“iron maiden”, que serviu de inspiração para o nome da famosa banda de Heavy Metal), um ataúde de ferro que mantinha uma pessoa presa em seu interior, com cravos que perfuravam o corpo da vítima, que agonizava lentamente ensanguentada.

Em 1991 a produtora “Empire Pictures” lançou outro filme inspirado nesse mesmo conto de Edgar Allan Poe, dirigido por Stuart Gordon e com Lance Henriksen e Jeffrey Combs.   

 

“... o tormento da minha alma foi extravasado em um alto, demorado, e final grito de desespero.” – Edgar Allan Poe

 

(Juvenatrix – 29/09/20)






sábado, 26 de setembro de 2020

A repartição do tempo

A repartição do tempo, direção de Santiago Dellape. Brasil, cor, 2018. 100 minutos.

É triste a sina dos brasileiros, e os inventores não escapam a ela. Essa é a constatação a qual chegamos ao assistir A repartição do tempo, longa metragem dirigido por Santiago Dellape, com roteiro original de Davi Mattos, que chegou às telas no início de 2018 depois de cumprir um longo roteiro de festivais no Brasil e no exterior. O trailer pode ser visto aqui.
Conta a história de um grupo de funcionários de um escritório de registro de patentes em Brasília, que ganhou celebridade depois que uma revista a classificou como a repartição pública mais ineficiente do país. A fama inoportuna irrita profundamente o chefe da seção, filho de uma senadora da república que o colocou lá para que ficasse longe de problemas. De fato, o lugar é um poço de absurdos, em que os funcionários dormem, embebedam-se, drogam-se, traficam e desenham histórias em quadrinhos durante o expediente. O momento mais festejado do dia é quando, no final do dia, ao som de A voz do Brasil, todos fazem fila para bater o ponto de saída.
Contudo, por um acaso, no mesmo dia em que a reportagem é publicada, o inventor Dr. Brasil (interpretado por Tonico Pereira) deposita para análise do departamento um protótipo funcional de uma máquina do tempo por ele construída. Ao arquivá-la no depósito, o abelhudo Jonas (Edu Moraes), inadvertidamente faz uma curta viagem no tempo, que o duplica por alguns minutos. O fenômeno não passa despercebido do chefe da seção Lisboa (Eucir de Souza), que vê nisso a oportunidade de tirar seu departamento da vexatória posição em que se encontra. Depois de embebedar os funcionários com a promessa de uma licença-prêmio, duplica cada um deles e escraviza os duplos num abrigo nuclear escondido no subsolo da repartição, para que produzam a força o trabalho que os funcionários originais jamais fariam. O plano parece caminhar bem, até que o duplo de Jonas consegue escapar da reclusão, sendo o original jogado por engano em seu lugar. O duplo tenta de todas as formas libertar seus companheiros de cárcere, mas tem que enfrentar não apenas a descrença dos originais dos colegas, mas também os duplos do segurança troglodita e da secretária piranha que estão mancomunados com o chefe.
Anunciado como uma "comédia de ficção científica", não há dúvida que é fc, mas da comédia passa longe. Na verdade, é uma história muito dramática, ainda que com forte viés irônico.
O momento mais divertido do filme é quando entra em cena um delegado da Polícia Civil interpretado por Dedé Santana, mais por conta da presença física do comediante, que é naturalmente engraçado, do que pela situção em si que, de fato, não tem nada de engraçada.
Do ponto de vista técnico, o filme é muito bem realizado, com boas soluções visuais, efeitos especiais eficientes, uma cenografia setentista irretocável e ótimas atuações. Como fc, contudo, tem lá suas falhas: o fenômeno da duplicação não convence e a história ignora a maior parte dos paradoxos temporais, preservando apenas aqueles de que precisa para contar a história.
O maior problema, contudo, é o alto nível de preconceito do filme com relação ao funcionalismo público, tanto que chega a ser angustiante e anula todo o pretenso humor da situação.
Também estão no filme os atores Bianca Müller, Antonio Abujamra, Andrade Júnior, André Deca, Bidô Galvão, Carmem Moretzsohn, Yasmim Sant'Anna, Dina Brandão, José de Campos, Lauro Montana, Ricardo Pipo, Romulo Augusto, Rossana Viegas, Selma Egrei e Sérgio Hondjakoff.
Após os créditos, um pequeno curta mostra Dr. Brasil retornando à repartição com seu novo invento, para levar a confusão a um novo paradigma.
É interessante notar que a ficção fantástica, ainda que incipiente, tem comparecido com mais frequência no cinema nacional, com produções bem realizadas, inclusive com componentes culturais bem mais evidentes do que é geralmente encontrado na fc&f literária produzida aqui. Uma interação maior entre as duas artes decerto que poderia promover alguma evolução em ambas, isso se a política cultural brasileira não arrasar com tudo antes, como parece pretender.
Cesar Silva

Era uma vez a mulher que tentou matar o bebê da vizinha, Liudmila Petruchévskaia

Era uma vez a mulher que tentou matar o bebê da vizinha, Liudmila Petruchévskaia. 206 páginas. Tradução de Cecília Rosas. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2018.

Uma das mais antigas reclamações dos leitores brasileiros de fc&f é a falta de novidades internacionais nos catálogos das editoras que trabalham com ficção fantástica no Brasil. Embora haja muita novidade no que se refere aos autores nacionais, entre os estrangeiros a regra é republicar o que está fora de catálogo ou publicar um novo título de um autor já consagrado. Vez ou outra, aparece um nome novo, já que as editoras brasileiras têm receio de investir em títulos que podem não ser comercialmente bem sucedidos, e os mais arriscados certamente são aqueles de autores que nunca foram publicados aqui. Por isso, é motivo de comemoração o lançamento de Era uma vez a mulher que tentou matar o bebê da vizinha, coletânea da escritora moscovita Liudmila Petruchévskaia, uma novidade absoluta.
Nascida em 1938, Liudmila é considerada a mais importante escritora russa viva, mas nem mesmo na Rússia ela é unanimidade, pois sua ficção não faz concessões, mas cutuca feridas e pisa nos calos sem piedade. Sua obra, proibida por muito tempo, só ganhou espaço com fim do regime comunista e chegou ao Brasil por influência de seu filho Fedor, um apaixonado pelo Brasil, que a acompanhou à edição de 2018 da FLIP, a convite da editora Companhia das Letras que lançou a coletânea com tradução de Cecília Rosas, diretamente do russo.
Uma dificuldade é citar o seu título original. Na edição brasileira, o título original está grafado em cirílico e não consegui encontrar um modo de reproduzi-lo. Para complicar ainda mais, a página oficial do livro no saite da Companhia das Letras dá como título original em inglês There once lived a girl who seduced her sister's husband, and he hanged himself: Love stories, que não se parece em nada com o título norte-americano There once lived a woman who tried to kill her neighbor's baby. E durma-se com um barulho desses.
Trata-se de um livro de pequeno volume, com apenas 206 páginas, mas de um vulto incomensurável por conta do estilo e dos temas abordados nos 21 contos divididos em quatro seções: "Contos dos eslavos do oeste", "Alegorias", Réquiens" e "Contos de fadas".
Alguns dos textos lembram os contos decadentistas franceses com traços de romantismo, em que as histórias trabalham com situações de morte, pós-morte ou quase-morte, na forma de pesadelos ou relatos, muitos em primeira pessoa, que têm o mesmo tipo de estética que encontramos nas obras surrealistas, ou seja, são situações muito reais e cotidianas, mas que estão eivadas de um estranhamento perturbador que não permite considerá-las realistas.
Não vou comentar todos aqui, é claro, pois vale muito a pena conhecê-los em primeira mão, mas destacarei alguns dos que mais me impressionaram. O conto que dá nome a antologia é o mais realista dentre todos os textos da seleção, mas a maior parte dela está identificada com a fantasia, como "O deus Posêidon", em que  uma mulher visita a amiga em uma luxuosa mansão e descobre que seu marido é filho de um deus, ou "A mãe-repolho", em que uma mãe amorosa tenta desesperadamente criar a filha minúscula.
É claro que as histórias de horror são aquelas em que a situação de desconforto se potencializa.  Como no primeiro texto da coletânea é "O abraço", em que um militar, depois de um sonho premonitório, desenterra o corpo da falecida esposa para recuperar a carteirinha do partido (deveria ser um documento muito importante na Rússia soviética) que acidentalmente havia caído no caixão, mas ele não obedece integralmente as instruções recebidas no sonho e isso causará consequências muito desagradáveis. Ou "O sobretudo preto", em que uma mulher se vê desorientada em uma cidade penumbrosa, na qual as pessoas têm uma ralação estranha com os fósforos. E "A história do relógio", que fecha a edição, no qual uma garotinha encontra um relógio que traz uma maldição: quem lhe dá corda uma vez, tem sua vida irremediavelmente ligada ao seu funcionamento: se o relógio parar, é morte certa.
Os textos de ficção científica também são bastante sombrios. Em "Higiene", acompanhamos a decadência física e moral de uma família isolada em seu apartamento enquanto uma virose letal dizima a população da cidade. E "A nova família Robinson", em que uma outra família tenta sobreviver ao frio, à fome e à violência de um verdadeiro apocalipse ambiental.
Duas coisas se destacam na obra de Liudmila: o protagonismo feminino, que predomina quase todos os textos, com uma reflexão profunda sobre a posição da mulher na relação com o esposo, com a família e com a sociedade, e a ausência de todos os protocolos que saturam a fc&f ocidental. Ainda que as histórias de Liudmila possam ser identificadas com este ou aquele gênero, está claro que não foram escritas com isso em mente, pois as situações de misturam sem qualquer regra estabelecida. Não há o clichê das infindáveis jornadas do herói embolando as narrativas, assim como nenhuma outra condição editorial imposta à construção dos relatos: tratam-se de criações pessoais sem qualquer modelo prévio, herdeiras de uma escola que nos parece completamente estranha.
É uma maravilha ler histórias fantásticas que não apelam para elfos, anões e magos agredindo-se mutuamente, zumbis devoradores de cérebros, astronautas com armas de raios combatendo alienígenas psicopatas e trans humanos com próteses computadorizadas lutando contra megacorporações do ciberespaço. Somente quando recebemos o frescor de uma literatura como a de Liudmila é que percebemos o quanto isso já saturou.
A leitura de Era uma vez a mulher que tentou matar o bebê da vizinha não é fácil, porque não é agradável. Não há entretenimento nela, mas um convite a reflexões sobre a vida e a morte individual e social. Para pensar o quanto, às vezes, nossas vidas podem ser tão mais fantásticas que qualquer ficção.
Cesar Silva

terça-feira, 22 de setembro de 2020

A Verdadeira História da Ficção Científica

A Verdadeira História da Ficção Científica: Do Preconceito à Conquista das Massas (The History of Science Fiction), Adam Roberts. Tradução de Mário Molina. Apresentação de Sílvio Alexandre. Prefácio à edição brasileira de Braulio Tavares. Posfácio de Gilberto Schoereder. 703 páginas. São Paulo: Editora Seoman, 2018. Lançamento original de 2016.

 


Este é um livro monumental, a começar pelo tamanho. Mas isso é o de menos, porque é uma obra que discute a FC de forma arrojada, com ideias próprias, sem receio de questionar certas convenções estabelecidas no campo, seja por parte dos fãs ou dos críticos. No contexto anglo-americano poderia ser visto como mais um dentre tantos livros que já abordaram criticamente a história do gênero e suas características. Mas Adam Roberts demonstra que ainda há muito a ser pesquisado e, eventualmente, descoberto em um gênero tão rico e diversificado.

Roberts é um autor reconhecido da FC britânica, publicou, entre outros, Salt (2000) e Jack Glass (2012) – vencedor do British SF e do John W. Campbell Memorial – além de ser professor de Literatura do Século XIX na Universidade de Londres. Sua tese central em A Verdadeira História da Ficção Científica é que a FC, como gênero literário, surgiu durante o século XVII, como expressão artística da Reforma Protestante, movimento religioso e político que fez frente ao predomínio da Igreja Católica Romana, do século XVI. A reforma teria desencadeado forças criadoras inovadoras, ao apresentar uma visão de mundo dessacralizada, baseada numa compreensão mais materialista da vida e do universo. Desta forma houve uma separação, no contexto da então ficção fantástica, entre criações de caráter mágico-religioso e outras materiais-científicas nas histórias publicadas. O domínio do racional e de uma atitude mais individualista semeou a literatura, permitindo que as especulações no terreno do fantástico adquirissem, gradativa e continuamente, novas características que iria inaugurar um novo gênero, a ficção científica. Mesmo assim, esta tensão entre o mágico/religioso e o profano/científico nunca desapareceu do cerne da ficção científica, podendo ser identificada, embora de forma menos evidente, em realizações recentes.

Com isso, Roberts vai contra a corrente que, se do ponto de vista filosófico, não descarta por completo esta argumentação, a entende como secundária, pois situa a emergência da FC como resultado mais direto da Revolução Industrial, com seu extraordinário progresso material e inovações científico-tecnológicas, que mudou de forma radical as relações sociais. Contudo, creio que o autor é convincente, pois a própria emergência do capitalismo está associada a este processo de mudança de postura de longo prazo a respeito da condição humana, pois relaciona-se não só às ideias da Reforma, mas ao Renascimento antes e ao Iluminismo depois. Nesse sentido, esta permanência da dualidade entre o espiritual e o racional poderia ser identificada por esta base mais filosófica, que justificou sua emergência.

Desta forma, Roberts volta alguns séculos na identificação dos primórdios das histórias de FC. Ou seja, no século XVII, ao invés da tradicional consideração sobre o século XIX, com o romance Frankenstein (1818), de Mary Shelley e as figuras emblemáticas de Júlio Verne e H.G. Wells – estes dois, inclusive, com direito a um saboroso capítulo conjunto.

Contudo, a pesquisa histórica realizada pelo autor é o seu maior achado. Nos cinco primeiros capítulos ele defende extensamente sua tese por meio da apresentação e análise de dezenas de contos e romances, dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. Desvenda obras raras e obscuras, com detalhes impressionantes de quem leu – ou teve contato direto – com a maioria delas. Talvez nem fosse preciso justificá-las em torno de seu argumento. A simples exposição comentada das obras já é um ganho relevante e que desmonta a tese do início da FC no século XIX. A própria ideia de uma “proto-FC” deve ser bastante relativizada, mostrando que o gênero é bem mais antigo e presente na história da literatura.

Roberts narra uma história cronológica da FC, portanto, com 16 capítulos ao todo – dois a mais que a primeira edição de 2006 – percorrendo, após as eras precursoras o período que nos é contemporâneo, os séculos XX e XXI. É certo que outros – e ótimos livros – fizeram isso antes em língua inglesa, mas é a primeira vez que tal empreendimento é colocado à disposição do leitor brasileiro.[1] E o autor não se limita à FC como fenômeno literário. A partir do século XX inclui a discussão sobre o gênero no cinema, rádio, televisão, histórias em quadrinhos, artes visuais e plásticas, música e videogames. E tudo colocado em perspectiva, mostrando como cada uma das artes contribuíram para o desenvolvimento da FC. Outro trabalho notável por si só.

Mas talvez o núcleo duro do desenvolvimento contemporâneo do gênero esteja mesmo situado nas décadas de 1930 a 1970 do século passado. É o que mais define e identifica o que se tornou e ainda é a FC nos dias de hoje. Da era das pulp magazines nos EUA, depois de forma central na Golden Age dos anos 1940 e 1950, até o desdobramento com a New Wave, nos anos 1960 e 1970. Se com as revistas populares norte-americanas a FC conheceu sua primeira massificação, ela trouxe um certo rebaixamento no estilo literário, fazendo com que o gênero passasse a ser ligado a alguns símbolos estereotipados, como a nave espacial, a pistola de raios, o robô e o extraterrestre – além, é claro, com as mulheres seminuas nas capas das revistas, pois a prioridade era fisgar um leitor jovem, branco e masculino. Em todo caso, na Golden Age dos anos 1940 e 1950 haverá um aperfeiçoamento destas características com o surgimento de uma nova geração de autores, não desvinculados do pulp, mas com maior apuro literário e rigor científico nas histórias. Aqui creio que Roberts foi um pouco duro com estas fases, apontando mais suas limitações, como o conservadorismo político e as deficiências literárias, como se fossem uma norma generalizada. Faltou enfatizar mais a renovação temática vigorosa, com autores que, especialmente nos anos 1950, amadureceram para publicar obras maiúsculas, que se tornaram clássicas. Alguns exemplos: As Crônicas Marcianas (1950), de Ray Bradbury; O Fim da Infância (1953), de Arthur C. Clarke, e Mais que Humano (1953), de Theodore Sturgeon – este aliás, um autor não comentado no livro.

Isso porque Roberts não esconde sua maior afinidade intelectual com a New Wave, um movimento literário que mais que renovar, direcionou a FC para novos horizontes, em termos de qualidade literária e ousadia temática. Assim, o gênero se aproximou de experiências literárias do mainstream e provocou o campo com introdução de temas como o sexo, o feminismo, as drogas, a igualdade racial, o meio-ambiente, além de uma postura mais democrática, em si, mais condizente com a essência da FC. Um gênero literário movido pelo novo, aberto a novidades, crítico do status quo e sensível à alteridade, de outros povos, culturas e estilos de vida. Polemizou com as características mais bem comportadas da Golden Age, mas olhando de forma retrospectiva fica a impressão de que a causa principal do mal-estar tenha sido menos os temas tratados e mais as experimentações literárias, na forma como muitas narrativas foram desenvolvidas. O leitor tradicional do gênero não estava acostumado com isso.

A FC que veio depois reverberou mais os paradigmas da New Wave, com o surgimento do cyperpunk e de uma corrente mais humanista, a partir dos anos 1980, até chegar ao contexto pós-colonial e multicultural do século XXI. Aliás, não se pode deixar de lembrar que esta é uma história do gênero do ponto de vista do centro de sua produção, o mercado norte-americano e britânico. Para além dele é dada alguma atenção à FC francesa, alemã, russa e japonesa, nesta ordem. Talvez fosse pedir demais um novo esforço de pesquisa para locais menos pujantes como, por exemplo, a América Latina, mas é uma lacuna dentro do contexto maior.[2]

Outra ideia importante do livro é que a FC se tornou majoritariamente um fenômeno de expressão visual, a partir do filme Guerra nas Estrelas (1977), de George Lucas. Creio que isso seja difícil de contestar, pois nas décadas posteriores o cinema de FC tornou-se o mais popular e lucrativo de Hollywood. Aliás, não só o cinema pois, como demonstra o autor, a paisagem visual se tornou a marca mais identificável do gênero, ou seja, também na publicidade e nos videogames. Ao contrário do que postula o autor, entretanto, não entendo que este aspecto tenha assumido o lugar principal do gênero em si, mas sim como fenômeno cultural e de mercado. Isso não é pouco, é claro, mas o núcleo central de criação do gênero, continua sendo a literatura. É ela que mais inova, e mais estabelece novas tendências que, se bem sucedidas, transbordam para outras artes, de consumo mais rápido. A maior parte dos artistas com maior influência no campo prossegue sendo os escritores.

E se, ao menos para mim, é na literatura que a FC continua a apresentar as ideias mais relevantes para o desenvolvimento do gênero, a sua “conquista das massas” se dá em termos mais populares, não necessariamente em termos de reconhecimento crítico. É verdade que nos EUA e na Europa a FC goza de certa respeitabilidade – e a publicação de um livro como este ilustra isso –, mas aqui em nossas paragens tropicais a realidade é outra, como bem observa Gilberto Schoereder no posfácio. O subtítulo da obra para a edição brasileira capta bem o alcance do argumento de Roberts, uma massificação popular e crítica, mas o mesmo não ocorre na ficção científica brasileira, ainda a lutar por espaço nas grandes editoras, por mais financiamento de produções audiovisuais e mais respeitabilidade crítica por parte expressiva da academia e do jornalismo cultural.

Se no centro anglo-americano teme-se por uma “evaporação” da FC junto ao mainstream – numa citação de Roberts ao influente crítico Gary K. Wolfe –, aqui ainda paira uma marginalidade em relação ao centro da produção e reflexão cultural. Nesse sentido, A Verdadeira História da Ficção Científica é útil também para colocar em perspectiva a realidade da nossa FC junto ao centro de produção do gênero.

Em termos editoriais, vale uma observação. No início da obra é informado que os livros publicados no Brasil viriam com o título nacional primeiro, e o título original entre parênteses. Isso é seguido por todo o livro, mas de forma errática. Identifiquei algumas obras publicadas em nosso país – e em Portugal, com grande tradição de consumo por parte do fã brasileiro –, sem o título em português. O caso é que existe pesquisa bibliográfica sobre as obras publicadas no Brasil e em Portugal, como, por exemplo, os dois volumes de Quem é Quem na Ficção Científica, de R.C. Nascimento.[3] Tiveram uma tiragem pequena, mas de acesso possível por parte da editora, já que ela teve contato com algumas pessoas oriundas do fandom. Fica a sugestão, caso haja uma segunda edição.

Do ponto de vista pessoal, ler este livro foi uma experiência estimulante, pois pude compartilhar com o autor impressões e opiniões sobre várias obras e autores, especialmente os das décadas de 1940, 1950 e 1960, em que boa parte da FC estrangeira foi disponibilizada no Brasil e em Portugal. Nem sempre com opiniões convergentes, mas ainda assim interessantes, me fazendo relembrar e reavaliar sobre muitas obras e autores. Como se vê, portanto, é um livro de História e análise literária, e menos de divulgação sobre o gênero e suas características.

Nesse sentido, não deixa de ser curioso que nestes últimos anos, em que muita FC tem sido publicada no Brasil, poucas obras sobre o gênero apareceram. Ao contrário dos anos 1980, quando o mercado editorial era pequeno e bons livros, mais de divulgação, foram lançados. Seja como for, a publicação de A Verdadeira História da Ficção Científica deve ser celebrada, pois aumenta significativamente o grau de conhecimento sobre o gênero para os brasileiros, incentiva o debate e a reflexão, e abre possíveis campos de pesquisas que possam dar continuidade e problematizar as ideias corajosas deste livro excelente.

 – Marcello Simão Branco



[1] Na verdade, livros de FC de autores brasileiros também contaram a história do gênero, mas como capítulos da obra, não como seu aspecto principal.  Dentre eles o mais próximo neste contexto é Introdução a Uma História da Ficção Científica, de Léo Godoy Otero. São Paulo: Lua Nova, 1987.

[2] O Brasil é citado duas vezes no livro, mas sem mencionar o gênero em si como um movimento presente no país. Primeiro com o livro Páginas da História do Brasil Escrita no Ano 2000 (1868-1872), de Joaquim Felício dos Santos – sobre a difusão global da FC já no século XIX – e a refilmagem de Robocop (2014), do diretor brasileiro José Padilha.

[3] O primeiro é Quem é Quem na Ficção Científica – Volume 1: A Coleção Argonauta. Editora Scortecci, 1985. E o segundo é Quem é Quem na Ficção Científica – Volume II: Catálogo de Ficção Científica em Língua Portuguesa 1921-1993 (1994). Edição de autor. Nascimento publicou ainda Argonauta 500: Uma Edição Comemorativa. Clube de Leitores de Ficção Científica/Qanat Fantasia e Ficção Científica, 1999.

As Torturas do Dr. Diabolo (Torture Garden, Inglaterra, 1967)

 


Produção inglesa do também cultuado estúdio “Amicus”, de Max Rosenberg e Milton Subotsky, rival da “Hammer”, com direção de Freddie Francis, de diversos filmes de horror dos nos 60 e 70 como “O Monstro de Frankenstein” (1964), “A Maldição da Caveira” (1965) e “A Essência da Maldade” (1973). 

Trata-se de uma antologia de contos de horror com roteiro de Robert Bloch, autor do clássico “Psicose”, e no elenco temos nomes consagrados como Jack Palance, Peter Cushing e Burgess Meredith. Com esses créditos indicando a qualidade dos realizadores, já dá para imaginar a diversão garantida.

Em “As Torturas do Dr. Diabolo”, um título nacional sonoro, uma atração de circo com foco no horror é apresentada pelo Dr. Diabolo (Meredith), que convida os espectadores a conhecer situações trágicas em seus destinos futuros, ao olharem fixamente para a imagem da deusa dos destinos Átropos (da mitologia grega). São apresentadas então quatro histórias de horror.

A primeira chama-se “Enoch” e mostra um homem ganancioso, Colin Williams (Michael Bryant) visitando o tio doente interessado na herança de sua misteriosa riqueza, e não imagina o terrível segredo que envolve sua casa, habitada anteriormente por uma bruxa. Em seguida temos “Terror Over Hollywood”, onde uma atriz ambiciosa, Carla Hayes (Beverly Adams), não mede esforços para conseguir um papel de destaque no cinema, envolvendo-se com um produtor, Eddie Storm (John Phillips) e um veterano e famoso ator, Bruce Benton (Robert Hutton), que também escondem um misterioso segredo sobre suas longevidades. O terceiro episódio, “Mr. Steinway”, apresenta um famoso pianista, Leo Winston (John Standing), que se apaixona pela bela Dorothy Endicott (Barbara Ewing), mas não consegue manter o romance por causa de um piano amaldiçoado. A última história, “The Man Who Collected Poe”, tem Jack Palance no papel de Ronald Wyatt, um obcecado colecionador de livros e objetos do cultuado escritor americano de horror Edgar Allan Poe. Ele visita outro colecionador, Lancelot Canning (Peter Cushing), que entre livros e manuscritos raríssimos, também esconde um terrível segredo sobre o próprio escritor Poe. 

Todos os episódios são muito bons, carregados de elementos de horror e até FC (no segundo episódio), e que ficam guardados por muito tempo em nossas memórias. Como o sinistro gato preto Balthazar, da primeira história, ou o piano assassino tocando a marcha fúnebre, do terceiro conto, ou ainda a dupla Palance e Cushing obcecada pela literatura sombria de Edgar Allan Poe, com graves consequências.

Curiosamente, “As Torturas do Dr. Diabolo” é o sucessor direto de outro filme de antologia de contos também produzido pela “Amicus” e dirigido por Freddie Francis, “As Profecias do Dr. Terror” (Dr. Terror´s House of Horrors, 1965), com Christopher Lee e Peter Cushing. 

(Juvenatrix – 27/12/13)






segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Sexta-Feira 13 (Black Friday, EUA, 1940, PB)


Quando nos deparamos com um filme com o título nacional “Sexta-Feira 13”, logo vem à cabeça a popular franquia “slasher” com o psicopata mascarado Jason Voorhees, um ícone da cultura pop, com seu primeiro filme lançado em 1979 (Friday the 13th). Porém, existe outro filme com o mesmo nome nacional e título original “Black Friday”, com fotografia em preto e branco, produção de baixo orçamento do longínquo ano de 1940, e com dois dos maiores astros do cinema de horror de todos os tempos, o inglês Boris Karloff (famoso principalmente pelo papel do “monstro de Frankenstein”) e o húngaro Bela Lugosi (eternizado como o vampiro “Drácula” nos filmes da “Universal”). Sexta-Feira 13” tem direção de Arthur Lubin e roteiro de Eric Taylor e do alemão Curt Siodmak, autor conhecido pelas histórias de diversos outros filmes como “O Lobisomem” (1941).

O cientista Dr. Ernest Sovac (Boris Karloff) está envolvido num trabalho de pesquisa de transplante de cérebros. Depois que seu grande amigo, o professor de literatura inglesa George Kingsley (Stanley Ridges) sofre um acidente terrível, sendo atropelado por um carro em fuga de uma perseguição com tiroteios, o cientista encontra uma oportunidade de fazer uma experiência para tentar salvar a vida do amigo gravemente ferido com uma lesão cerebral irreversível. O carro acidentado era dirigido pelo gangster Red Cannon (também Ridges), que fugia dos antigos parceiros de crime, após um roubo milionário. Fraturando a coluna no acidente, o criminoso teve partes de seu cérebro transplantadas para o cérebro do professor, numa experiência ilegal em seres humanos, e que o cientista só tinha realizado em animais.

O grupo de gangsters rivais, liderados por Eic Marnay (Bela Lugosi), ainda era formado por Frank Miller (Edmund MacDonald), William Kane (Paul Fix) e Louis Devore (Raymond Bailey). Numa conspiração com a namorada de Red Cannon, Sunny Rogers (Anne Nagel), eles tentam localizar e recuperar o dinheiro roubado. Em paralelo, a personalidade pacífica do Prof. Kingsley oscila drasticamente com a influência da mente do criminoso, que ao assumir o controle transforma-se num assassino, matando violentamente seus rivais e policiais que cruzam seu caminho.

Enquanto a filha do cientista, Jean Sovac (Anne Gwynne), junto com a esposa do professor, Margaret Kingsley (Virginia Brissac), tentam entender e ajudar no conflito de personalidades, o Dr. Sovac se interessa também pela fortuna em dinheiro, que financiaria seus trabalhos de pesquisas, com sua ganância tumultuando ainda mais a confusão gerada pela dupla personalidade do Prof. Kingsley.

“Sexta-Feira 13” tem apenas 70 minutos de duração e é uma mistura de filme policial com elementos de horror e ficção científica como pano de fundo, na ideia do tradicional “cientista louco” com suas experiências para o bem da humanidade, e que tem consequências desastrosas. Nesse caso, o transplante de partes de cérebros foi o responsável pela dupla personalidade do Prof. Kingsley com o gangster Red Cannon, alternando entre um homem pacato e um criminoso assassino, no estilo da clássica e popular história do Dr, Jekyll e Sr. Hyde, “o médico e o monstro” de Robert Louis Stevenson.

O simples fato da presença de Boris Karloff e Bela Lugosi, dois expoentes máximos do cinema de Horror e Ficção Científica, já traz grande crédito para o filme, agregando valor com seus nomes reconhecidos e requisitados na época. Mas, curiosamente eles não contracenam juntos em nenhuma cena no filme, e Lugosi tem apenas um papel menor e secundário, aparecendo pouco como um dos gangsters, enquanto Karloff é o cientista responsável pelo elemento fantástico que gera o conflito na trama. E certamente um destaque é a atuação de Stanley Ridges na interpretação dupla do calmo professor e do inescrupuloso criminoso, simulando personalidades muito distintas de forma convincente.

Informações de bastidores reveladas pelo roteirista Curt Siodmak dizem que Karloff inicialmente ficaria com o papel do Prof. Kingsley e o cientista Dr. Sovac seria interpretado por Lugosi, mas que depois o famoso ator da “criatura de Frankenstein” desistiu da complexidade exigida na atuação de um papel duplo e tomou o lugar de Lugosi como o cientista. O ator de “Drácula” ficou então apenas com uma participação menor como o líder dos criminosos que estão atrás do dinheiro roubado.

Outra curiosidade é que Curt Siodmak é também o autor do conto “O Cérebro de Donovan” (1942), que recebeu algumas versões para o cinema como “A Dama e o Monstro” (1944) e “Experiência Diabólica / O Cérebro Maligno” (1953), cuja história é sobre um cérebro de um homem inescrupuloso morto, mas que é mantido vivo fora do corpo e ainda consegue manipular a mente das pessoas por telepatia.  

(RR – 14/09/20)





The Wizard of Gore (EUA, 1970)

 


O diretor americano Herschell Gordon Lewis (nascido em 1929) é conhecido e cultuado por seus filmes splatter ousados e carregados de violência e cenas sangrentas numa época ainda precursora do gênero (anos 60 e início de 70 do século passado), quando as produções não contavam com o apoio da computação gráfica e apenas os efeitos de maquiagem tentavam reproduzir a carne humana dilacerada. Filmes como “Banquete de Sangue” (1963), “Maníacos” (1964), “Color Me Blood Red” (1965), “The Gruesome Twosome” (1967), “The Wizard of Gore” (1970) e “Gore Gore Girls” (1972) são exemplos de sua obra cinematográfica de orçamentos reduzidos e sangue em profusão, deixada como legado para a história do gênero. 

Em “The Wizard of Gore”, temos um mágico ilusionista, Montag, o Magnífico (Ray Sager), que apresenta shows onde são escolhidas jovens mulheres na plateia para serem assassinadas no palco das maneiras mais brutais. Desde uma serra elétrica rasgando a barriga, ou o cérebro perfurado por uma talhadeira, passando por tripas dilaceradas por uma prensa hidráulica, até espadas que rasgam a boca e garganta de suas vítimas. Tudo como parte de um truque de ilusão, ou não... 

Em meio a tudo isso, como espectadores, está um casal formado por uma apresentadora de televisão, Sherry Carson (Judy Cler) e seu namorado, um jornalista esportivo, Jack (Wayne Ratay), que tenta investigar o mistério que envolve o espetáculo macabro do mágico e alguma conexão com o surgimento de mulheres mortas de forma violenta. 

O filme está longe de ser um exemplo de cinema de qualidade, com ritmo narrativo arrastado e efeitos toscos ao extremo e nitidamente falsos, além de atuações risíveis de um elenco inexpressivo. Mas, o que realmente destacam-se são as cenas do espetáculo de horror do “mágico do gore”, e a ousadia do diretor H. G. Lewis em explorar cenas sangrentas numa época de 50 anos atrás, num fato que deve ser enaltecido, tornando “The Wizard of Gore” uma preciosidade recomendável que faz parte das obras precursoras do “splatter”. 

Curiosamente, teve uma refilmagem lançada em 2007, com direção de Jeremy Kasten e com nomes importantes no elenco como Crispin Glover, Jeffrey Combs e Brad Dourif, recebendo por aqui o título de “O Mágico Sanguinário”.

(Juvenatrix – 17/09/14)




domingo, 13 de setembro de 2020

O Homem do Planeta X (The Man From Planet X, EUA, 1951, PB)

 


A quantidade de filmes bagaceiros de horror e ficção científica produzidos principalmente a partir de meados do século passado é imensa, para o deleite dos apreciadores do cinema fantástico de baixo orçamento. “O Homem do Planeta X” (The Man From Planet X) é um filme americano de 1951 dirigido por Edgar G. Ulmer que deve ser sempre resgatado e reverenciado, não pelas qualidades cinematográficas reservadas para os clássicos, mas pela nostalgia e garantia de entretenimento com mais uma história de invasão alienígena.

Com fotografia em preto e branco, duração curta de apenas 70 minutos (característica comum dos filmes similares de orçamentos reduzidos daquela distante período), um roteiro carregado de clichês e situações para favorecer a precariedade da produção, além de efeitos toscos da nave espacial e do bizarro alienígena humanoide com cabeça enorme, o filme é uma daquelas divertidas tranqueiras que investiam em promoção com posters exagerados com frases de efeito para chamar a atenção para seus elementos fantásticos, que impressionavam as plateias da época.

Na história, o cientista Professor Elliot (Raymond Bond) está com sua jovem filha Enid (Margaret Field) numa antiga torre de pedra localizada numa ilha remota da Escócia. A construção, erguida como proteção de ataques dos vikings, está servindo de observatório espacial para o cientista, que descobriu a aproximação misteriosa de um planeta até então desconhecido, identificado agora apenas como “X”. Ele tem o auxílio do Dr. Mears (William Schallert), um antigo aluno com passado suspeito e reputação duvidosa. E também recebe a visita de um amigo jornalista americano, John Lawrence (Robert Clarke), que informado por outro cientista, Dr. Robert Blane (Gilbert Fallman), sobre a descoberta do planeta ameaçador, decide viajar até a Escócia para investigar o evento. A ilha, sempre envolta em muita névoa espessa, seria o local na Terra mais próximo de um possível contato com o planeta em rota de aproximação.

Certa noite, ao vasculhar os arredores da torre de observação, eles encontram uma nave espacial pousada parecida com um sino de mergulho (a única diferença entre o espaço e a água é a densidade, justifica o Prof. Elliot), e são surpreendidos pelo contato com o alienígena do título (interpretado por Pat Goldin, não creditado), um humanoide com cabeça imensa e rosto com feições distorcidas, que usa um capacete transparente e aparelho respirador acoplado ao corpo, comunicando-se apenas com ruídos.

Após um contato inicialmente amistoso, o alienígena procura ajuda para seu planeta que está congelando, mas a confiança logo é quebrada graças às ações inescrupulosas do ganancioso Dr. Mears, criando um clima de animosidade com o “homem do planeta X”, que passa a usar como forma de retaliação um raio que controla a mente das pessoas. Dessa forma, ele recruta um grupo de escravos agindo como zumbis entre os aldeões de um vilarejo na ilha. Ao instaurar o medo pelo contato entre raças mal sucedido, a confusão acaba despertando a reação da polícia e de um pequeno grupo de soldados do exército que vieram do continente atendendo um pedido de socorro repassado por um navio que navegava próximo à ilha.

A temática da invasão alienígena sempre foi um interessante argumento nos filmes produzidos após o fim da Segunda Guerra Mundial, com seus roteiros influenciados pela paranoia da recém iniciada guerra fria entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética, através do medo crescente dos americanos de uma invasão comunista em sua sociedade. O intruso alienígena vindo do misterioso planeta X é considerado uma ameaça, porém com suas intenções ainda em análise. Mas, após contato com o assistente Dr. Mears, que pensa nos lucros que poderiam ser obtidos com o uso de uma tecnologia extraterrestre superior, o confronto é inevitável.

Em “O Homem do Planeta X” iremos encontrar os clichês dos filmes bagaceiros que exploram a ficção científica e horror, com personagens estereotipados como o tradicional cientista que descobre um planeta se aproximando da Terra, sua bela filha que terá um interesse romântico com um jornalista investigativo, além da presença de um vilão ganancioso para tumultuar e gerar os conflitos. Tem os elementos tradicionais indispensáveis como a nave espacial tosca e o monstro bizarro do espaço sideral, um invasor alienígena com feições humanoides que garante a diversão em todas as vezes que aparece em cena. Uma vez sendo uma produção de recursos escassos, as filmagens ocorreram em poucos dias utilizando cenários reaproveitados, e as soluções do roteiro são todas simplórias com resultados previsíveis. E justamente a somatória de todos esses fatores garantem a diversão.      

 (Juvenatrix – 13/09/20)





Retrato de Um Pesadelo (Night Gallery, EUA, 1969)

 


“Boa noite, e bem vindos à exposição particular de três quadros, expostos aqui pela primeira vez. Cada um deles é um item de colecionador a sua própria maneira, não por causa de alguma qualidade artística especial, mas porque cada um captura, suspenso no tempo e espaço, um momento gelado de um pesadelo”.

Essa é a introdução narrada por Rod Serling (o criador da série “Além da Imaginação”) para apresentação do filme piloto “Retrato de Um Pesadelo” (Night Gallery), que deu origem à série de TV “Galeria do Terror” (1970 / 1973), dividida em episódios com elementos de horror sobrenatural.

O filme piloto traz três histórias independentes, porém todas relacionadas com seus protagonistas enfrentando uma fúria vingativa em retaliação por seus atos de crueldade. Foi exibido originalmente em 08/11/1969 com os episódios “The Cemetery”, “Eyes” e “The Escape Route”, todos com roteiro de Rod Serling.

Na primeira história, com direção de Boris Sagal, um velho pintor rico, gravemente doente e recluso em sua enorme mansão, William Hendricks (George Macready), recebe a visita indesejada do único sobrinho, Jeremy Evans (Roddy McDowall), interessado apenas na herança e entrando em conflito com o fiel mordomo Osmund Portifoy (Ossie Davis). O jovem intruso, pensando na fortuna do tio, tem planos para abreviar o sofrimento do velho e aproximá-lo mais rápido da tumba, mas não esperava a ocorrência de uma misteriosa manifestação através das pinturas dos quadros mórbidos espalhados pela casa. Ótima história que lembra aqueles nostálgicos quadrinhos clássicos de horror e a típica ambientação sombria de uma imensa mansão com os mortos em busca de vingança para aliviar seus tormentos. 

Em “Eyes”, na estreia profissional de direção pelo hoje aclamado Steven Spielberg, uma idosa milionária, solitária, infeliz, arrogante e cega, Srta. Claudia Menlo (Joan Crawford), está disposta a pagar muito dinheiro por olhos que lhe dariam a visão por cerca de 12 horas, com o auxílio de um médico, Dr. Frank Heatherton (Barry Sullivan). O doador é um homem desesperado à beira da falência, Sidney Resnick (Tom Bosley), que aceita a cegueira em troca de amenizar suas dívidas. Mas as coisas não funcionam exatamente como planejado. Os nomes de Spielberg e Crawford já anunciam a qualidade do resultado, numa história escura (literalmente), e repleta de amargura, onde o dinheiro não compra a paz e felicidade. 

No último episódio, “The Escape Route”, dirigido por Barry Shear, temos um ex-oficial alemão, Josef Strobe (Richard Kiley), refugiado ilegalmente na América do Sul e que está sendo perseguido pela polícia por seus crimes nazistas durante a Segunda Guerra Mundial nos campos de concentração. Ele vive atormentado por fantasmas de seu passado de cruéis assassinatos. Depois que é reconhecido por um velho sobrevivente judeu, Bleum (Sam Jaffe), tenta fugir, visitando constantemente um museu onde admira uma pintura de um pescador. Seu desejo é entrar no quadro, mas não imagina que está mais perto do inferno do que da tranquilidade de um lago rodeado de montanhas. É o episódio mais fraco dos três, mas ainda assim interessante e com um desfecho perturbador.

(Juvenatrix – 19/08/14)


quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Queen of Blood (EUA, 1966)

 


Ficção científica bagaceira dos anos 60 do século passado, com direção e roteiro de Curtis Harrington, o mesmo de outras tranqueiras como “O Planeta Pré-histórico” (Voyage to the Prehistoric Planet, 1965). O elenco tem nomes conhecidos como o veterano Basil Rathbone e os sempre presentes John Saxon e Dennis Hopper. A produção é de Roger Corman e Samuel Z. Arkoff, e foi distribuído pela “AIP” (American-International Pictures). 

A história é ambientada em 1990 (no futuro da época de produção), e a humanidade trabalha unida numa agência espacial international. Eles recebem uma transmissão de rádio com uma raça alienígena se comunicando informando a intenção em visitar nosso planeta. Porém, a nave deles sofre um acidente e cai no caminho em Marte, forçando o envio de uma equipe de resgate da Terra. Sob o comando do cientista Dr. Farraday (Basil Rathbone), coordenando os trabalhos na base, uma nave terráquea é enviada levando os astronautas Anders Brockman (Robert Boon), Paul Grant (Dennis Hopper) e Laura James (Judi Meredith). Após não encontrarem sobreviventes na nave alienígena, outro foguete pousa num satélite de Marte, com os astronautas Allan Brenner (John Saxon) e Tony Barrata (Don Eitner), e lá eles localizam uma pequena nave auxiliar alienígena com misteriosa mulher de pele verde (Florence Marly), que é resgatada. Os astronautas humanos então se encontram e rumam de volta para casa, porém a hóspede de outro planeta revela um desejo mortal pelo sangue dos humanos (daí um dos títulos originais do filme). 

Produção de baixíssimo orçamento com todos os clichês típicos dos filmes bagaceiros (e por isso mesmo divertidos) de FC com elementos de Horror das décadas de 1950 e 60. Os efeitos especiais das naves viajando pelo espaço foram retirados de filmes russos do mesmo período. Curiosamente, temos a presença numa ponta do colecionador e editor Forrest J. Ackerman, responsável pela revista “Famous Monsters of Filmland”, como o ajudante do Dr. Farraday. Já o renomado ator Basil Rathbone teve uma participação especial tanto neste como no anterior “O Planeta Pré-histórico”, emprestando seu prestígio para a produção. No Brasil, segundo o livro “Ficção Científica” (1986), de Gilberto Schoereder, o filme recebeu o nome de “Planeta Sangrento”.

(Juvenatrix – 23/07/13)


Guerra dos Mundos (War of the Worlds, EUA, 2005)

 


(Texto escrito em Julho de 2005 e publicado originalmente no fanzine Juvenatrix # 98 versão impressa e # 178 versão em PDF)

O escritor inglês Herbert George Wells (1866-1946) foi o autor, entre o final do século XIX e início do XX, de várias obras que se tornaram referências para a realização de grandes filmes de ficção científica com elementos de horror. “A Guerra dos Mundos” é considerado um de seus mais importantes trabalhos e o que gerou uma produção maior em torno de seu tema, com filmes, programa de rádio, série de TV e revistas de histórias em quadrinhos.

O livro de Wells, escrito em 1898, enfatiza uma pertinente crítica social ao imperialismo europeu que na época era praticado sobre os países pobres africanos, cujo único objetivo era se apossar dos valiosos recursos naturais das colônias.

Em 1938, o cineasta Orson Welles adaptou a história de H. G. Wells para o rádio, com resultados “devastadores”, pois milhares de pessoas acreditaram realmente que nosso planeta estava sendo invadido por criaturas hostis vindas de Marte, gerando histeria e pânico na população.

Já em 1953, foi a vez do produtor George Pal (de preciosidades do início dos anos 50 como “Destino à Lua” e “Colisão de Planetas”) e do diretor Byron Haskin, que juntos criaram um filme que tornou-se um clássico absoluto do cinema fantástico, com um destaque para os impressionantes efeitos especiais de destruição das cidades, muito imponentes na época e até hoje impressionantes, tanto que o filme foi vencedor do Prêmio Oscar nesta categoria, independente de podermos visualizar os fios que sustentavam as máquinas de guerra voadoras (na verdade, as naves eram suspensas por raios invisíveis que geravam um fluxo magnético que as mantinham acima do solo).

Aliás, a obra literária de Wells serviu de base para vários filmes cultuados como “A Ilha do Dr. Moreau” (com versões em 1933 e 76, além de uma refilmagem em 96 com Marlon Brando), “O Homem Invisível” (33), “Daqui a Cem Anos” (36, adaptado do livro “The Shape of Things to Come”), “Os Primeiros Homens na Lua” (64), “A Fúria das Feras Atômicas” (76, este baseado no livro “O Alimento dos Deuses”), “A Máquina do Tempo” (60 e refilmagem em 2002 com Guy Pearce), entre outros.

E entre 1988 e 1990 foi lançada uma série de TV baseada no filme, mostrando eventos posteriores à invasão marciana, com uma qualidade inferior e que também teve alguns episódios lançados em vídeo VHS por aqui.

Já faz alguns anos que o cineasta Steven Spielberg tinha planos para adaptar novamente a história de um ataque marciano imaginado por H. G. Wells para o cinema, mas com o lançamento em 1996 de “Independence Day”, outro filme que também mostrava uma invasão alienígena com imenso poder de destruição, o famoso diretor adiou a idéia até conseguir efetivar o projeto agora em 2005, com um lançamento mundial em 29 de Junho e nos cinemas brasileiros em 01 de Julho de sua versão de “Guerra dos Mundos” (War of the Worlds), que traz um elenco formado pelo astro Tom Cruise, a jovem e talentosa Dakota Fanning e a bela australiana Miranda Otto, além de Tim Robbins e a narração da introdução e desfecho do experiente Morgan Freeman.

Na história, Ray Ferrier (Tom Cruise), é um operador de guindaste que precisa ficar com seus filhos por um final de semana, enquanto sua ex-esposa, Mary Ann (Miranda Otto, dos dois últimos filmes da trilogia “O Senhor dos Anéis”), vai fazer uma visita aos seus pais em Boston junto com o atual marido, Tim (David Alan Basche). Os filhos são o adolescente Robbie (Justin Chatwin) e Rachel (Dakota Fanning, de “O Amigo Oculto”), os quais demonstram pouca intimidade com o pai, num relacionamento marcado pela distância entre eles.

Porém, ninguém imaginaria que o simples final de semana se transformaria num caos quando uma misteriosa tempestade proporciona um efeito climático curioso e a queda de diversos raios em um mesmo ponto, no meio de um cruzamento de ruas próximo à casa do estivador. E do local da queda dos raios surgisse uma imensa máquina de guerra vindo diretamente debaixo da terra, apoiada por três imensas pernas mecânicas articuladas, comandada por alienígenas hostis vindos de Marte com o propósito de aniquilar impiedosamente a humanidade e tomar nosso planeta para ser sua nova moradia.

Disparando raios desintegrando pessoas e destruindo prédios com imensa facilidade, uma frota de naves de guerra se formava para um ataque planejado e devastador onde nossos exércitos e armas pareciam pouco eficazes contra o poder de destruição dos invasores alienígenas. Suas máquinas de guerra ainda possuíam enormes tentáculos que capturavam as pessoas para utilizar seu sangue como alimento.

Ray então é obrigado a mudar sua conduta e aproxima-se dos filhos, o rebelde Robbie e a pequena Rachel, que sofre de claustrofobia, para tentar salvá-los da invasão marciana numa fuga desesperada em busca de abrigo e segurança em meio ao caos de uma “guerra dos mundos”, sem contar que ainda ele teria que enfrentar a paranóia de um motorista de ambulância, Ogilvy (Tim Robbins), quando ficaram isolados em sua casa num sítio cercado pelos alienígenas com suas máquinas de destruição.  

COMENTÁRIOS E COMPARAÇÕES COM O FILME DE 1953 


Atenção: os comentários a seguir contém spoilers e detalhes reveladores das histórias de ambos os filmes de 1953 e 2005.

A versão de Spielberg de “Guerra dos Mundos” tem uma metragem de quase duas horas com intensas seqüências de devastação filmadas com grande realismo e contando com o apoio de incríveis efeitos especiais. Os principais destaques certamente são os ataques das máquinas de guerra marcianas, a cena do naufrágio da balsa, o trem incendiário, o avião derrubado sobre a casa da mãe das crianças, e a aparição dos alienígenas na casa em destroços da fazenda do lunático Ogilvy, revelando suas aparências asquerosas.

Ao contrário de algumas críticas sobre o filme alegarem que não, existe sim bastante violência na história. É claro que o tipo de destruição em massa que ocorre em cena poderia ser mais bem ilustrado com uma maior quantidade de sangue e corpos destroçados, porém isso seria bastante inviável pelo caráter comercial do filme. Podemos considerar que fatos como pessoas sendo desintegradas impiedosamente, cadáveres boiando num rio, e a pulverização de nuvens de sangue das vítimas humanas, seriam um bom motivo para considerar o filme violento e marcado por uma guerra devastadora.

Os efeitos especiais são excelentes, mostrando as naves de guerra dos marcianos como imaginado por H. G. Wells, ou seja, trípodes enormes que capturam os seres humanos com tentáculos. O filme de 1953 apresentava naves similares a cisnes ou arraias que voavam vagarosamente (ou melhor, eram suspensas por um campo magnético), e soltavam raios de calor desintegradores através de um tentáculo central, sendo que elas não tinham pernas mecânicas e nem tentáculos para capturar as pessoas. As naves de guerra chegaram ao planeta com a aterrissagem de cilindros que pareciam meteoros vindos do espaço. Já no filme de Spielberg, os trípodes foram soterrados há muito tempo atrás pelos marcianos e estavam apenas aguardando o momento certo de serem operados e emergirem debaixo da terra para atacar a humanidade, sendo que os alienígenas invasores chegaram à Terra através de uma série de raios gerados por uma tempestade misteriosa. 

A cena da casa destruída da fazenda onde uma câmera alienígena percorre seus interiores à procura de sobreviventes e a conseqüente aparição dos marcianos investigando o local, é similar em ambos os filmes, só que no clássico dos anos 50 apareceu um único marciano, com um só olho de três cores e que ainda toca com a mão de três dedos no ombro da mocinha, a atriz Ann Robinson, tornando-se uma das mais famosas cenas da história do cinema de ficção científica.

Aliás, os marcianos também são retratados de forma diferente, pois por motivos óbvios o filme de Spielberg teve bem mais recursos tecnológicos para poder criar alienígenas mais convincentes do que os da década de 50, tanto que o orçamento milionário atingiu cifras superiores a US$ 130 milhões.

A versão de 2005 centraliza toda a ação numa invasão marciana aos Estados Unidos (que eles sempre procuram retratar como o centro do mundo). Já o clássico de 1953 mostra um pouco da invasão em outros países, tentando mostrar um trabalho internacional em conjunto da humanidade na tentativa de combater o ataque dos alienígenas. Quando as máquinas de guerra começaram a cair, apareceram cenas de vários locais ao redor do planeta, com direito até a uma passada rápida pelo nosso Rio de Janeiro, com o Cristo Redentor aparecendo ao fundo, e uma máquina de guerra marciana derrubada.

Um outro detalhe interessante é que no filme dos anos 50, os militares contam com a ajuda de um cientista (protagonizado por Gene Barry) e tentam destruir os marcianos com um ataque nuclear, mas nem a temível e tão poderosa bomba atômica conseguiu detê-los. Era uma época conturbada da guerra fria e os realizadores fizeram questão de explorar o medo das pessoas pelos efeitos de uma catástrofe nuclear. E também os produtores não perderam a oportunidade para explorar a paranóia de uma invasão comunista à América, onde muitos países foram citados no filme como vítimas dos marcianos menos a poderosa União Soviética, que na época representava a maior ameaça à liberdade dos Estados Unidos.   

O final também é parecido em ambos os filmes, com exceção daquela cena desnecessária com a família reunida na versão de 2005, pois num determinado momento uma máquina de guerra invasora cai no chão e dela sai um marciano agonizando vítima de uma simples bactéria da qual a humanidade já está imunizada.

O desfecho do filme dirigido por Steven Spielberg (que, vale lembrar, cometeu um erro grotesco ao relançar em 2002 “E.T. – O Extraterrestre” com os policiais segurando nas mãos um rádio comunicador em vez de armas de fogo, como na versão original de vinte anos antes), é tão dispensável que chega a incomodar, pois além de escolher um perfil idiota para o adolescente Robbie, que queria acompanhar o exército no combate aos invasores, ainda faz com que ele reapareça em segurança no final na casa da mãe, num evento bastante improvável já que ele se separou do pai no meio de um ataque mortal dos marcianos.

Curiosamente, a atriz Ann Robinson participou tanto do clássico dos anos 50, como em três episódios da série de TV em 88, em ambos os casos fazendo o papel da professora Sylvia Van Buren, e agora também do filme de Spielberg como a avó de Rachel e Robbie Ferrier (aparecendo apenas numa ponta no final), tornando-se uma especialista em “Guerra dos Mundos”. Aliás, essa participação, assim como a do ator Gene Barry, que foi o cientista Dr. Clayton Forrester, especialista em astrofísica e física nuclear da “Pacific Tech” no clássico de 53, como o avô das crianças, foi uma interessante homenagem dos produtores.

E o ano de 2005 teve além da versão de Steven Spielberg, a produção de uma outra refilmagem, dessa vez com bem menos impacto comercial, com direção e roteiro de David Michael Latt e elenco liderado por C. Thomas Rowell.

O DVD duplo de “Guerra dos Mundos” (War of the Worlds, 2005), de Steven Spielberg e com Tom Cruise e Dakota Fanning, foi lançado no mercado brasileiro em 11/11/05, pela “Paramount”. Entre a infinidade de extras, temos vários documentários e materiais interessantes: “Revisitando a Invasão”, “O Legado de H.G. Wells”, “Steven Spielberg e a Guerra dos Mundos Original”, “Personagens: O Núcleo Familiar”, “Pré-vizualização”, “Diários da Produção: Costa Leste - O Início”, “Diários da Produção: Costa Leste - O Fim”, “Diários da Produção: Costa Oeste – Destruição”, “Diários da Produção: Costa Oeste – Guerra”, “Desenhando o Inimigo: Tripods e Alienígenas” e “A Música de Guerra dos Mundos Nós Não Estamos Sós”.

 Guerra dos Mundos (War of the Worlds, Estados Unidos, 2005). Paramount. Duração: 116 minutos. Direção de Steven Spielberg. Roteiro de David Koepp e Josh Friedman, baseado em obra homônima de H. G. Wells. Produção de Kathleen Kennedy e Colin Wilson. Produção Executiva de Paula Wagner. Música de John Williams. Fotografia de Janusz Kaminski. Desenho de Produção de Rick Carter. Direção de Arte de Tony Fanning, Andrew Menzies, Tom Warren e Edward Pisono. Edição de Michael Kahn.. Elenco: Tom Cruise (Ray Ferrier), Justin Chatwin (Robbie Ferrier), Dakota Fanning (Rachel Ferrier), Tim Robbins (Ogilvy), Miranda Otto (Mary Ann Ferrier), David Alan Basche (Tim), Ann Robinson (Avó), Gene Barry (Avô).

NARRANDO A GUERRA DOS MUNDOS (1953)

                 “Durante a Primeira Guerra Mundial, e pela primeira vez na história do Homem, as nações lutaram entre si com primitivas armas da época. A Segunda Guerra Mundial envolveu todos os continentes do globo e os homens se voltaram para a ciência, para novos aparelhos de guerra, que atingiram um nível inigualável em sua capacidade de destruição. E agora, providos com armas terríveis da super ciência, ameaçando toda a humanidade, cada criatura da Terra, aí vem A Guerra dos Mundos.”

                 O primeiro filme sobre a famosa “Guerra dos Mundos” escrita por H. G. Wells foi produzido há mais de meio século atrás, num processo que durou cerca de dois anos de filmagens. A invasão marciana é apresentada principalmente sob o ponto de vista de uma pequena cidade americana do Estado da Califórnia, e depois avança a devastação para a grande capital Los Angeles.

O filme é narrado em três partes, no início, meio e fim, pelo ator Sir Cedric Hardwicke. Para efeito de curiosidade, essa narração explicando a origem e motivos da invasão marciana, suas estratégias de combate e sua derrota, segue transcrita na íntegra nesse artigo, reproduzida da cópia dublada do filme que foi exibida na televisão.

Considerado um dos grandes clássicos do cinema de Ficção Científica, “A Guerra dos Mundos” felizmente para os colecionadores está disponível no mercado brasileiro de DVD lançado pela “Paramount”, primeiramente somente com distribuição através das lojas especializadas e depois também nas bancas de jornais, encartado na revista “This is Paramount – Cinema e DVD” ano I, número 2 (Julho de 2005), da “NBO Editora”, com um preço mais popular. O disco traz como material extra um trailer de cinema de dois minutos e meio de duração e sem a opção de legendas em português. Aliás, o filme também não tem a opção da dublagem brasileira.

“Ninguém acreditaria que no meio do século XX, os afazeres humanos estavam sendo atentamente observados por uma inteligência superior à do Homem. Porém, através do espaço sem fim, no planeta Marte, inteligências grandes, frias e inamistosas, olhavam nossa Terra com olhos invejosos, lenta e seguramente fazendo seus planos contra nós.

Marte está a mais de 228 milhões de quilômetros de distância do Sol, e durante séculos tem estado nos últimos estágios de extinção. À noite,  a temperatura desce muito abaixo de zero, até em seu Equador. Os habitantes desse planeta agonizante olharam através do espaço com seus instrumentos e inteligências com as quais mal sonhamos, procurando por outro mundo para o qual pudessem emigrar. Eles não podiam ir para Plutão, o mais distante de todos os planetas. É tão frio que sua atmosfera fica gelada na superfície. Não podiam ir para Netuno ou Urano, mundos gêmeos de noite eterna e frio perpétuo, ambos circundados por uma atmosfera irrespirável de gás metano e vapor de amônia. Os marcianos consideravam Saturno um mundo atraente, com muitas luas e belos anéis de poeira cósmica, mas sua temperatura chega a 110 graus abaixo de zero e o gelo tem vinte e quatro mil quilômetros de profundidade na superfície. Seu próximo mundo seria o gigantesco Júpiter, onde existem monstruosos rochedos de lava e gelo, com hidrogênio queimando no topo, onde a pressão atmosférica é terrível: milhares de quilogramas por centímetro quadrado. Eles não podiam ir para lá. Nem podiam ir para Mercúrio. O planeta mais próximo do Sol. Ele não tem ar e a temperatura de seu Equador é a de chumbo derretido. De todos os mundos que as inteligências de Marte podiam ver e estudar, apenas na nossa Terra morna, havia o verde de vegetação, o brilho da água, e possuía uma atmosfera nebulosa, eloquente de fertilidade. Não ocorreu à humanidade que uma mudança de destino pudesse estar pairando sobre nós, ou que da escuridão do espaço infinito, estávamos sendo observados e estudados. Até a época de nossa maior aproximação da órbita de Marte, durante a agradável estação do verão.”

“Os marcianos tinham calculado sua descida em nossa Terra com impressionante perfeição e sutileza. Quanto mais seus cilindros vinham das profundezas misteriosas do espaço, suas máquinas de guerra, estranhas em sua força e complexidade, criaram uma onda de medo que se espalhou por todos os cantos do mundo. Em todos os países, os governos oficiais se reuniram em conclaves desesperados, procurando meios para coordenar suas defesas com outras nações. O governo da Índia, partindo de Nova Delhi, se reuniu num vagão de ferrovia, enquanto populações maciças indianas se dirigiam para a imaginária segurança do longínquo Himalaia. Os terríveis exércitos finlândes e turco, batalhões chineses e bolivianos, trabalharam e lutaram furiosamente. Todo o esforço contra o tremendo poder de seus antagonistas de outro mundo terminou na mesma rota frenética. Enquanto os marcianos queimavam campos e florestas e as grandes cidades caíam diante deles, grandes populações foram retiradas de suas casas. A corrente de refugiados rapidamente tornou-se uma torrente. Tornou-se um gigantesco estouro. Um grande silêncio caiu sobre metade da Europa e todas as comunicações foram interrompidas. Quando a primeira rádio-foto de fora de Paris chegou ao gabinete francês exilado em Strasburgo, eles tiveram a idéia de usar jatos de alta velocidade como correio. Sem armamentos e cheios de combustível, estes aviões mantinham conecção com os países escandinavos, o norte da África, os Estados Unidos, e principalmente a Inglaterra. Estava claro que os marcianos gostavam da posição militar estratégica das ilhas britânicas. O povo inglês enfrentou magnificamente os invasores, mas de nada valeu. Conforme os marcianos se moveram para o norte em direção à Londres, o gabinete britânico se manteve em sessão, coordenando cada item de informação que podia ser reunido, passando-os às Nações Unidas em Nova Iorque. De lá, as notícias eram dadas à Washington. Era o único ponto estratégico que permanecia inatacado.”

           “Os marcianos não tinham resistência às bactérias de nossa atmosfera, as quais há muito tempo somos imunes. Uma vez que respiraram o nosso ar, os germes que não mais nos afetam começaram a matá-los. O fim veio rapidamente. Em todo o mundo, suas máquinas começaram a parar e cair. Depois do que tudo que os homens podiam fazer falhou, os marcianos foram destruídos e a humanidade salva, pela menor coisa que Deus, em sua sabedoria, colocou na Terra.”

A Guerra dos Mundos (The War of the Worlds, Estados Unidos, 1953). Paramount. Duração: 85 minutos. Direção de Byron Haskin. Roteiro de Barré Lyndon, baseado em obra homônima de H. G. Wells. Produção de George Pal. Música de Leith Stevens. Fotografia de George Barnes. Efeitos Especiais de Gordon Jennings, Wallace Kelly, Jan Domela, Paul Lepae, Ivyl Burks, Irmin Roberts. Sonoplastia de Gene Garvin. Cenários Astronômicos de Chesley Bonestell. Direção de Arte de Hal Pereira e Albert Nozaki. Assistente de Direção: Michael D. Moore. Elenco: Gene Barry (Dr. Clayton Forrester), Ann Robinson (Sylvia Van Buren), Sir Cedric Hardwicke (narração), Lewis Martin (Pastor Dr. Matthew Collins), Les Tremayne (General Mann), Charles Gemora (Marciano), Robert Cornthwaite (Dr. Pryor).

(Juvenatrix - Julho de 2005)