quarta-feira, 20 de abril de 2022

Repique Macabro e Outras Histórias Estranhas

 

Repique Macabro e Outras Histórias Estranhas, de Robert Aickman. Traduções: Alcebiades Diniz, Bruno Costa, Oscar Nestarez e Ronaldo Gomes. Capa: Casa Rex/Tulio Caetano. Artigo: Cid Vale Ferreira. Posfácio: Philip Challinor. 286 páginas. São Paulo: Ex Machina/Sebo Clepsidra, 2021.

 


Em sua primeira publicação no Brasil, o britânico Robert Aickman (1914-1981) se diferencia enormemente do padrão médio das histórias sobrenaturais e fantásticas. Pode parecer um exagero, mas estamos diante de um autor que faz de suas histórias uma experiência para além de um bom entretenimento. E talvez por isso não tenha constituído uma carreira popular, mesmo em sua terra, que dirá de outras paragens mais distantes. Aickman tem um texto direto e fluente, mas, ao mesmo tempo, intrigante e desconcertante.

Autor de prestígio inegável e algumas obras-primas, selecionadas neste volume especial que ora tenho em mãos, é, também, um autor fora dos padrões convencionais. Suas histórias de horror têm componentes sobrenaturais, mas nada é óbvio. Pelo contrário, o leitor está sujeito a surpresas e momentos de puro desconcerto sobre o que acontece com o personagem e com si mesmo. Ao invés da construção de narrativas mais explícitas ou referentes aos padrões do gênero, Aickman os subverte. Estamos diante de um autor que faz da imbricação entre a riqueza de ambientação de cenários e o desenvolvimento de personagens complexos, o contexto para sugerir sensações, que podem ser de surpresa, medo, inquietação ou desconcerto total sobre as implicações. Talvez por isso e, ao que parece, sem querer parecer pedante, Aickman se definia como um autor de strange tales, em vez de simplesmente como de horror, ou ghost stories, como alguns críticos o definem. A sensação de estranhamento faz parte do seu ethos, presente em todas as histórias desta coletânea, com diferentes tons e desdobramentos.

Este volume contém nove de suas 48 histórias curtas publicadas em sua carreira, entre as décadas de 1950 e 1980. Não é informado, contudo, se elas foram selecionadas entre suas coletâneas originais, embora seja o mais provável, pois não achei nenhuma delas com o mesmo conteúdo da que foi traduzida para a língua portuguesa. Em todo caso, a seleção é de altíssimo nível. Uma amostra relevante do que de melhor escreveu Robert Aickman e do trabalho competente de escolha das histórias.

“The Hospice” (1975) abre o livro. É a história de um homem que, ao pegar um atalho para voltar para casa, se perde. Já no início da noite, se depara com uma espécie de pousada. Pretende apenas fazer uma refeição rápida e seguir seu rumo. Mas, ao entrar no local, o que parecia banal vai ganhando contornos cada vez mais estranhos. Um animal o morde e some; ao pedir um jantar frugal, lhe é servido um banquete; uma mulher bonita se oferece a ele; não há telefone e, sem gasolina no carro, é obrigado a passar a noite e dividir um quarto com um sujeito muito estranho, que sugere que a hospedaria é, na verdade, uma espécie de asilo. Ao amanhecer procura se esvair do local e, mais que isso, de uma experiência tão inusitada como perturbadora.

Se a primeira história fala de um sujeito que adentra numa realidade oculta, em “As Espadas” (“The Swords”; 1975) estamos diante de um jovem que vivencia sua primeira experiência sexual. Sem dúvida, uma situação no qual paira tanto a insegurança quanto o desejo. Mas esta tensão é levada ao paroxismo. Numa viagem de negócios por uma cidadezinha do interior, um jovem encontra um decadente parque de diversões. Entra numa tenda e se depara com um show no qual uma mulher é repetidamente trespassada por espadas. Confuso, deixa o local por receio de que possa chegar a sua vez de participar do espetáculo. Mas, ao reencontrá-la no dia seguinte, é tomado por um desejo incontrolável, que o fará levá-la ao seu quarto de hotel. Narrada em primeira pessoa, o que acentua o caráter confessional, pode parecer convencional, mas em se tratando de Aickman, o desfecho é não menos que intrigante.

Em “Repique Macabro” (“Ringing the Changes”; 1964), a história que serve de título ao livro, um jovem casal recém-casado decide passar a lua-de-mel numa pequena e desconhecida cidade litorânea da Inglaterra. Mas ao chegar ouvem o badalo incessante de sinos, além da total ausência de pessoas na rua. No hotelzinho que reservaram estranham ao saber que só uma pessoa está hospedada – e há muito tempo. E os sinos aumentam em quantidade e volume. Chega a noite sem luar e as coisas ficam cada vez mais obscuras. Sem aguentar mais os sinos e o comportamento estranho da dona do hotel e seu filho, eles resolvem ir embora. Mas não há ninguém para conduzi-los a lugar algum. Em certo momento da noite, os sinos silenciam, mas começa então uma procissão de pessoas gritando, cantando e dançando nas ruas, até invadirem o hotel. Um verdadeiro pesadelo de medo se estabelece, numa situação tão surpreendente quanto aterradora, que pegou de surpresa um casal convencional que só queria um lugar tranquilo para se amar. Há muito tempo que não ficava tão envolvido com uma história de horror. Como se fosse próxima, fiquei apreensivo ao virar mais uma página, num drama que envolve o despertar dos mortos. Obra-prima.

O tom de estranheza se acentua ainda mais em “Ravissante” (1968). Anos após fazer amizade com um pintor fracassado, um sujeito recebe uma carta informado a morte do artista e de que ele era um dos beneficiários do testamento. Além do valor de 100 libras – relevante na época –, ele levou também um quadro e uma maleta com seus escritos, cedidos por sua esposa. Ela sempre ausente e antipática à época em que ele conviveu com o casal. Ao abrir a maleta, o sujeito encontra um relato de viagem feita pelo pintor à Bélgica, onde conheceu a enigmática Madame A., viúva de um pintor que ele admirava. Pois ela, mesmo idosa, acabou por envolvê-lo num jogo de sensualidade assustador, por meio do contato com as roupas íntimas de sua filha adotiva. É uma história dentro de uma história que aborda os meandros do fazer artístico e suas motivações, muitas vezes incompreensíveis ao próprio artista. Além de um estranho jogo de poder e erotismo entre uma mulher que se revela poderosa – como uma bruxa? – ante um sujeito que se submete de forma desconcertada e inexorável.

A noveleta seguinte, “Niemandswasser” (1975), acentua o aspecto sobrenatural. Um príncipe tem uma desilusão amorosa, vê seu amigo sofrer um acidente que lhe decepa uma das mãos e, deprimido, se isola da sociedade à espera de seu fim. Neste contexto mórbido, ele descobre que o acidente com seu amigo foi provocado por uma mulher tão linda quanto terrível, que saiu de dentro de um lago, onde, eventualmente, ele também terá de encarar seu destino. Estamos diante de um conto sobre a lenda de uma sereia, e o aspecto fatalista torna a leitura um pouco sufocante.

O que não é o caso de “Páginas do Diário de uma Menina” (“Pages from a Young Girl´s Journal”; 1975), primeiramente publicada em The Magazine of Fantasy & Science Fiction, em 1973 e vencedora do World Fantasy Award em 1975, quando da publicação na coletânea Cold Hand in Mine. Segue a linha das duas histórias anteriores, com mulheres poderosas, ainda que no caso desta o desenvolvimento seja progressivo e não aparente. Em viagem pelo interior da Itália com seus pais, no início do século XIX, uma menina pré-adolescente inglesa registra os fatos e sentimentos em seu diário. Após eles chegarem à cidade de Ravena, são hospedados num casarão por uma condessa, e depois de uma festa, a jovem sofre uma transformação brutal ao conhecer um cavalheiro estranho que lá compareceu. De uma garota tímida e sensível, se transforma numa predadora movida a sangue e desejo. De maneira muito hábil somos expostos à construção de uma vampira, mas o que mais chama a atenção é a completa mudança de personalidade da protagonista. A ponto de não mais ser reconhecida por seus próprios pais. Excelente narrativa de horror vampírico, ao mostrar o ponto de vista de alguém que passa de vítima a algoz. Esta história é complementada no livro pelo bom ensaio “Páginas de uma Iniciação pelo Sangue”, de Cid Vale Ferreira.

A novela a seguir é “O Quarto Interior” (“The Inner Room”; 1966), das mais fascinantes do livro. Lene – novamente uma menina –, ganha uma casa de bonecas no seu aniversário. Comprada numa loja de antiguidades, não é propriamente um brinquedo, mas uma espécie de maquete. De estilo gótico e assustador era mobiliada e habitada por várias bonecas. De tão grande, teve de ser transportada por uma perua. A história se passa no período entre guerras e, por meio da casa, a vida de Lene e sua família é contada, com diferentes destinos para cada um, a maioria estranhos e nada felizes. Já adulta e viúva, num certo dia Lene se perde em um bosque ao tentar pegar um atalho para chegar numa vila. E, em meio à chuva, relâmpagos e trovões, se depara com a casa. Mas não é tudo. O que é realmente incrível é quem ela encontrará em seu interior, e que consequência poderá trazer para a ela. Pois através da casa, no qual a realidade e o sobrenatural se sobrepõe, Lene vive uma revelação sobre suas culpas e terrores, que, aparentemente, estavam controlados.

 Sensação semelhante é mostrada na novela “Bosque Adentro” (In the Wood; 1968). O casal Harry e Margareth Sawyer viaja para a Suécia, onde ele trabalha na construção de uma estrada. Após passar alguns dias em Sovastad, ele tem de ir a Estocolmo, e ela pede para ficar hospedada num lugar que havia visto num dos passeios com os casais colegas de trabalho. Margareth ficara encantada com Kurhus, uma hospedaria localizada próximo ao topo de uma montanha e rodeada por bosques. De início tudo parecia belo, mas a estranheza só fez crescer à medida que ela adentrou no recinto. Não há serviços adequados e o lugar fica vazio a maior parte do tempo. Mesmo assim, ela conhece outra hóspede inglesa, e fica a saber que em Kurhus ninguém dorme. Nunca. Era um lugar habitado por insones. Sem esperança de cura, para o que era, de fato, uma doença.

Menos que alarmada, Margareth ficou intrigada, ainda mais com o estranho bosque, onde os insones vagavam feito zumbis. Incomodada e, aos poucos, assustada, ela foi embora no dia seguinte para Sovastad, onde aguardaria o retorno do marido. Mas, tão estranho ao que ela experimentou na hospedaria, foi a reação das pessoas à sua presença, de volta ao mundo dos normais. Tratada de forma seca, rude e com certa pena, como se ela fosse uma condenada, tal qual os perdidos da hospedaria. Novela perturbadora, no qual o horror se apresenta de forma singular, numa situação limítrofe entre o psicológico e o sobrenatural, ou melhor, estranho, e se acentua de forma desestabilizadora. Tanto para os personagens, como para o leitor. O melhor texto da coletânea, ao lado de “Repique Macabro”. E, que me deixou perplexo, ao reverberar pelo resto do dia as implicações sobre a transformação de Margareth.

A coletânea é concluída com “O Mar Cor de Vinho” (The Wine-Dark Sea; 1966). Em mais uma das quatro histórias com viajantes, somos apresentados a Grigg, um turista inglês em viagem pelas ilhas gregas. Apesar dos cenários paradisíacos, ele estava entediado, até que, ao ver um barco chegar a uma pequena ilha, ficou interessado em conhecê-la. Principalmente depois das seguidas negativas das pessoas, dizendo que seria impossível ir até lá, pois ninguém teria interesse no lugar. Ele acaba por furtar uma lancha sem dono e vai para a ilha. Mas o que ele encontra no lugar está além de qualquer experiência de viagem – ou mesmo de vida – que ele jamais poderia imaginar. A ilha é uma antiga cidadela de origem antiga e desconhecida, habitada por três mulheres lindas que se identificam como feiticeiras, pois assim são chamadas pelas pessoas do lugar onde Grigg havia viajado. Elas não são gregas – os abominam como “estúpidos” –, mas tampouco turcas ou albanesas. Vivem de forma despojada e em contato íntimo com a natureza, desprovidas de luxo e de desejos materiais. Até que um evento terrível e decisivo mudará o destino de todos eles. Mais uma história intrigante, cheia de significados e abertas a muitas interpretações. Grande desfecho para o livro.

Podemos dizer que o que mais caracteriza as ficções de Aickman mostradas nesta coletânea, é tanto o estranhamento em si, quanto a inadequação entre a vida moderna, e algumas coisas que existiam e meio que ficaram para trás, ou à margem. Mas que, contudo, continuam presentes como uma espécie de passivo e se revelam em toda a sua força e desestabilidade quando descobertas por pessoas com alguma sensibilidade para além do lugar-comum da mediocridade cotidiana. Mas, infelizmente para elas, pagam um preço alto demais para suas crenças, identidade e, em alguns casos, suas próprias vidas.

As editoras Ex Machina e Sebo Clepsidra fizeram uma grande contribuição ao conhecimento literário do fantástico e sobrenatural ao lançarem Robert Aickman no Brasil. É um bom exemplo de que há autores importantes, com algo realmente valioso a mostrar a serem lançados no mercado editorial brasileiro. E o fato de serem editoras de nicho, com um trabalho editorial de alta qualidade, só vai de encontro ao perfil literário do próprio autor. Ele mesmo um escritor influente entre uma pequena elite literária em língua inglesa, conhecido ainda por poucos, mas que merece sair de certo ostracismo. Como salienta o verbete sobre ele em The Encyclopedia of Fantasy (1997): “… Aickman é de interesse absorvente em nosso contexto porque demonstra a gama de significados que podem ser extraídos de dispositivos de qualquer forma de literatura fantástica, quando esses dispositivos são tratados com seriedade por um escritor de alta qualidade.” Assim, se sua ficção estranha, de fato, pode provocar ou consternar leitores mais comuns, ele merece ser lido e apreciado por aqueles que buscam, justamente, uma literatura que tem uma prosa refinada, mas ainda mais, encaminha o leitor para lugares e situações absolutamente desconcertantes. Ninguém que leu este livro será o mesmo depois de terminá-lo.

 Marcello Simão Branco

 

terça-feira, 5 de abril de 2022

Uma Breve História do Somnium

 

Marcello Simão Branco[1]

 

Capa do número 58, dezembro de 1992.


Quando o Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC) foi criado, em dezembro de 1985, uma de suas principais molas mestras foi uma publicação que divulgasse as atividades da entidade, dos sócios e a própria ficção científica.

Assim, rapidamente, cerca de um mês depois, em janeiro de 1986 foi lançado o Boletim do Clube de Leitores de Ficção Científica. Nesta edição não havia um logotipo para a publicação e o editorial do fundador do clube, R.C. Nascimento (1943-2013), anunciava dois concursos: 1) para a escolha do nome definitivo do boletim e 2) para a criação de um logotipo oficial para o clube.

Assim, até o número seis, a publicação não teve um nome definido, até que o número sete estampava no alto da capa: Somnium. Belo nome que se refere ao conto de mesmo nome do astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), responsável também pelas leis fundamentais da mecânica celeste, que recebem, justamente o seu nome. O conto é importante para o desenvolvimento histórico da ficção científica, ao imaginar, por meio de sonhos, a chegada humana à Lua.

A sugestão do nome foi do sócio carioca José dos Santos Fernandes e venceu com quatro votos, entre os 20 sócios que votaram. Isso porque houve uma dispersão entre os nomes votados: FC Boletim 3 votos; Jornal dos Aficcionados, Andarilhos do Amanhã e Terceiro Planeta, todos com dois e Orbit News, Panfletária, FC em Notícias e Science Fiction Explorer com um, além de uma abstenção.[2] Observando os nomes, ao meu ver, é até de espantar que “Somnium” tenha vencido de forma tão apertada, pois é, de longe, o nome mais bonito e representativo do que é ser um fã do gênero.

Embora seja um fanzine, em termos técnicos, digamos assim, o Somnium é um clubzine. Ou seja, uma revista de clube. Na prática apenas diferencia um fanzine que é produzido por uma associação de fãs, de outro que é fruto da iniciativa de um ou mais sócios de maneira independente. A maioria doa fanzines editados teve esta característica mundo afora, e também no Brasil. Neste sentido, o Somnium pode ser identificado, em termos históricos, como o quarto clubzine da história da ficção científica brasileira (FCB). O primeiro foi o O Cobra, da Associação Brasileira de Ficção Científica (ABFC), de meados dos anos 1960, de São Paulo; o segundo o Boletim Antares, do Clube de Ficção Científica Antares, do início dos anos 1980, de Porto Alegre (RS) e o terceiro, praticamente junto com o gaúcho, o Star News, da Sociedade Astronômica Star Trek (SAST), também de São Paulo, que existiu por cerca de dez anos. Mas nenhum deles teve a relevância e longevidade do Somnium, que extrapolou sua condição de clubzine para se tornar uma publicação de referência para toda a FCB.

Mas antes disto se tornar realidade, em suas primeiras edições, o Somnium tinha o perfil mais interno de uma publicação corporativa, ao divulgar basicamente os comunicados da diretoria, lançamentos de livros, cartas dos sócios e os novos membros que adentravam à associação a cada edição. Mas, não demorou muito para que passasse a publicar em suas páginas material inédito produzido pelos sócios, principalmente artigos e contos. Pois foi quando este conteúdo passou a fazer parte do principal das páginas do Somnium, é que ele começou a adquirir sua identidade e importância, primeiramente para a valorização do CLFC e seus sócios, e depois para o gênero como um todo no país.

Desde os primórdios, uma característica editorial se impôs: a de publicar somente colaborações inéditas e se de estrangeiros, com a devida autorização. Desta forma, o Somnium começou a adotar uma linha editorial de aspecto profissional e de busca pelo ineditismo e qualidade em suas páginas. Pode-se dizer que esta decisão influenciou a maioria dos fanzines que surgiram depois, inclusive o meu próprio, o Megalon.[3]

Desta forma, incentivou-se o envio de colaboração para as páginas do Somnium, principalmente artigos e contos, mas também resenhas e ilustrações. A iniciativa deu certo, pois em pouco tempo, a publicação era menos um clubzine do que um fanzine na prática. Ou seja, a divulgação institucional diminuiu em prol de uma vívida e volumosa quantidade de material produzido pelos sócios. Nascimento, que no início acumulava as funções de presidente e editor do Somnium, também inovou ao criar colunas e seções fixas dentro do fanzine. Por um lado, uma decisão pragmática, já que garantia a cada edição um espaço definido, sem correr o risco de faltar material devido ao não envio dos sócios, e de outro, definir espaços de crítica e reflexão em cada seção ou coluna definida. Esta característica também se espraiou por outros fanzines, cada um com seu perfil e linha editorial específica.

Assim, ao longo da primeira década, colunas importantes surgiram, como a de resenhas de Gilberto Schoereder – credenciado por seu importante estudo Ficção Científica (Francisco Alves Editora, 1986) –, outra de crítica aos contos publicados no próprio Somnium, ocupada na maior parte do tempo por Fábio Fernandes, que também se ocupou de outra coluna com análise dos livros traduzidos no Brasil; outra sobre livros, “Colecionando”, de Caio Luiz Cardoso Sampaio, a respeito das coleções publicadas no Brasil e em Portugal, uma fonte de informação preciosa e útil ainda hoje; uma com a análise sobre um escritor, o “Autor do Mês”, revezada entre alguns sócios, mas escrita principalmente por Kleverson Bicalho Neves; e a mais esperada de todas, “As Crônicas do André”, com comentários, causos e anedotas do mais celebrado escritor brasileiro de FC André Carneiro (1922-2014), que estreou em abril de 1987. Outras vieram posteriormente, mas pode-se dizer que estas estabeleceram a estrutura editorial que alicerçou o fanzine.

Também ajudou na rápida consolidação destas características editoriais a regularidade, pois em pelo menos os quatro primeiros anos, o Somnium foi mensal. Até onde sei este foi o único fanzine brasileiro de FC, com tal abrangência de assuntos e seções, a estabelecer esta marca. Não falhava: sempre na terceira semana de cada mês chegava em casa pelo correio o envelope pardo com o Somnium! Imagine o que era isso na segunda metade dos anos 1980, quando o intercâmbio com as notícias sobre o gênero quase não existia fora do ambiente restrito do fandom, e não havia a internet. Eu pessoalmente vibrava quando o Somnium chegava em casa, ávido para ler as novidades e os artigos, contos, ilustrações e os textos dos colunistas. E a chegada na terceira semana do mês não era casual, pois acontecia uma semana antes do último sábado do mês, quando ocorria a reunião mensal do clube. Assim, parte da reunião era dedicada, justamente, a repercutir o conteúdo publicado.


Capa do número 65, dezembro de 1996.


O Somnium e outros fanzines eram muito procurados por colaboradores nos primeiros dez anos da Segunda Onda da FCB, pois eram raros os espaços de publicação profissional, especialmente em editoras. Assim, uma nova geração de jovens escritores e críticos se exercitou regularmente nas páginas do Somnium, nomes que se tornariam destaques e a maioria com carreiras posteriores como, por exemplo, Ataíde Tartari, Braulio Tavares, Carlos Orsi Martinho, Cesar Silva, Fábio Fernandes, Finísia Fideli, Gilberto Schoereder, Gerson Lodi-Ribeiro, Ivan Carlos Regina, José Carlos Neves, José dos Santos Fernandes, Lúcio Manfredi, Martha Argel, Miguel Carqueija, Roberto de Sousa Causo, Roberto Schima, Sylvio Gonçalves e outros.

Tal profusão de talentos em suas páginas deu frutos rapidamente, pois já em 1987, na primeira edição do Prêmio Nova de Ficção Científica, criado por Roberto de Sousa Causo, o Somnium venceu na categoria “Melhor Fanzine”. Tal feito se repetiria mais três vezes: em 1989 – empatado com o Megalon –, 1991 e 1994 – aqui não como fanzine, mas como “Melhor Publicação Semi-Profissional”. O Nova existiu até 1996, por dez edições, portanto, e talvez a irregularidade verificada a partir do início dos anos 1990 tenha prejudicado a chance de vencer por mais vezes, mas também porque a concorrência com outros fanzines da época era forte, principalmente com o Megalon, que também por sempre se manter regular, de certa forma ocupou a ausência do Somnium, e levou o prêmio por sete vezes.

Mas em termos de ficção o Somnium foi o maior vencedor. Foram oito, das dez edições. Entre os principais trabalhos, alguns se tornaram clássicos como, por exemplo: “Pela Valorização da Vida”, (1987) e “A Derradeira Publicidade do Hebefrênico Alfredo” (1988), ambos de Ivan Carlos Regina, “Sympathy for the Devil”, de Braulio Tavares (1989), “Tocar os Anjos”, de Roberto de Sousa Causo (1991) – que também venceu o Prêmio Tapìrài 1992 –, e “O Vampiro de Nova Holanda”, de Gerson Lodi-Ribeiro (1996). A publicação levou ainda um Prêmio Argos em 2000 com o conto “Sete Vezes Besta, Sete Vezes Homem”, de Ivan Carlos Regina.

E ainda que não tenha vencido um prêmio – porque no ano em questão não havia a categoria para artigo – vale lembrar do “Movimento Supernova: Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira”, escrito por Ivan Carlos Regina, publicado no número 30, em junho de 1988. Quase que instantaneamente se tornou a peça mais polêmica e influente da FCB, além da principal marca distintiva da Segunda Onda: a busca por uma ficção científica com características brasileiras, em termos de identidade e qualidade.

Além disso, para se ter uma noção de seu impacto no fandom, entre fins dos anos 1980 e início dos 1990, o Somnium tinha tal evidência, que chegou a ser parodiado, com outro fanzine chamado Zomnium, publicado por sócios do Rio de Janeiro. Assim, a publicação passou por fases diferentes, sendo esta primeira, de longe, a mais importante. Isso porque, como já indicado, a partir do momento que começou a ter dificuldades em manter-se regular, começou a perder relevância para outros fanzines. Contribuiu para isso também, um certo renascimento do espaço editorial para os autores, com a publicação da revista Isaac Asimov Magazine (IAM) – versão brasileira de sua homônima norte-americana – entre 1990 e 1993. Pois houve uma colaboração próxima e intensa de vários dos mais destacados sócios do clube com a publicação, com contos, artigos e traduções de histórias. Mas após o fim súbito e traumático da IAM, o fandom se desarticulou, pois voltou a ter menos espaço e com uma crise na sua principal associação e seu fanzine. Mesmo assim, o Somnium teve bons momentos nas mãos de outros editores, pois nunca abdicou de sua principal marca: a qualidade do conteúdo e a relevância de seus colaboradores.

Estes editores do que podemos chamar de uma segunda fase, pós-IAM foram: Carlos André Mores, Christiano de Melo Nunes, Luís Marcos da Fonseca, Marcello Simão Branco – editei três números: 63, 64 e 65, em 1996 –, Alfredo Keppler, Cesar Silva e Matias Perazoli, e ainda um período com vários editores em conjunto: Alfredo Keppler, Ataíde Tartari, Matias Perazoli, Roberto de Sousa Causo. Todos eles ainda proporcionaram números importantes, pelo menos até meados dos anos 2000, quando finalmente entrou no que poderíamos chamar de uma terceira fase, a digital, que se estende até os dias de hoje.[4]

Pois foi justamente após a histórica centésima edição, editada por Alfredo Kepler, que ocorreu a mudança para o formato digital, com a edição seguinte (101), editada por Ana Cristina Rodrigues, em 2008. Assim, o Somnium foi impresso até o número 100 (1986-2007) e tem sido digital, de 2008 em diante. Nesta nova fase, três características têm se destacado: a irregularidade, o grande número de páginas e um tema principal para cada edição. O número 103, por exemplo, homenageou Ray Bradbury (1920-2012) e o 110 Issac Asimov (1920-1992). Já o de 113, homenageou o escritor brasileiro Max Mallman (1968-2016), e o 114 foi dedicado ao criador do CLFC e o mais importante editor da história da publicação: R.C. Nascimento. Nesta fase do século XXI, houve também mais editores em menos edições, com nomes como Daniel Borba, Ricardo Guilherme dos Santos, Ricardo Herdy e Marcelo Biguetti, o mais recente. Uma característica de relevo que tem se mantido é o espaço aberto para os autores brasileiros – sócios ou não – publicarem e divulgarem seus trabalhos, principalmente os surgidos dos anos 2000 em diante.

Em suma, o Somnium é uma instituição histórica da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira, sendo o mais antigo fanzine brasileiro de FC publicado de forma ininterrupta, de 1986 até os dias de hoje, mesmo ressalvando a irregularidade que passou a fazer parte de sua trajetória, de meados dos anos 1990 em diante. Mas o mais significativo é a sua resiliência, ao manter viva uma linha de continuidade entre a Segunda e a Terceira Onda da FCB, e ilustrando neste aspecto, não só suas mudanças de forma e conteúdo, mas também de geração, com novos colaboradores e talentos que tem se firmado nestes anos recentes.

 

Referências:

Borba, Daniel, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 102, 2012.

Branco, Marcello Simão. “Nova: Uma História de Polêmicas e Realizações”, Prêmio Nova de Ficção Científica: Os Primeiros Dez Anos, Marcello Simão Branco, org. Biblioteca Essencial da Ficção Científica Brasileira, volume 3, 1998.

Branco, Marcello Simão. “Uma História dos Prêmios Brasileiros de Ficção Científica”, Silva Cesar; Branco, Marcello Simão, eds., Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2008. Tarja Editorial, 2009.

Branco, Marcello Simão. “30 Anos do Clube de Leitores de Ficção Científica”. In: Almanaque da Arte Fantástica Brasileira, 2015.

Herdy, Ricardo, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 113, 2017.

Keppler, Alfredo. Somnium: Índice Remissivo: Números 1 ao 78, Clube de Leitores de Ficção Científica, 2000.

Keppler, Alfredo, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 100, 2007.

Nascimento, R.C. Boletim do Clube de Leitores de Ficção Científica, números 0 a 6, Clube de Leitores de Ficção Cientitica, janeiro a maio, 1986.

Rodrigues, Ana Cristina, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 101, 2008.

Santos, Ricardo Guilherme, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 110, 2014.

Silva, Cesar. “Somnium 114”. In: Mensagens do Hiperespaço, 2018.

 



[1]  Sócio número 83, entrou no CLFC em maio de 1987.

[2] Mais nomes foram sugeridos, mas sem votação. São eles: Albedum, Aldebaranis, Bofísica, Crepúsculo Estelar, Enfírio, Escalar Infinitus, Galaxian, Linha Base, Luzestrela, Pressão Braquial, Science Fiction Journal, Selenews, Sonda Planetária, Star´s Explorer e Vento Solar. Um total de 24 sugestões, num quadro associativo de 34 sócios.

[3] Criado em setembro de 1988 por mim e Renato Rosatti, e editado apenas por mim a partir de 1991, teve 71 edições regulares até maio de 2004, e mais uma edição extra (72), em dezembro de 2017. É o mais premiado fanzine da história da FCB, com 7 prêmios Nova, três prêmios Argos e um prêmio Tapìrài.

[4] Na segunda metade dos anos 1990, para suprir a irregularidade crônica do Somnium, que gerava muitas críticas e cobranças por parte dos sócios, foi criado o Informativo Mensal CLFC. Um segundo clubzine, de caráter mais noticioso, sobre as atividades do clube e dos sócios, além de lançamentos de livros e eventos. Eventualmente, também publicou contos. Manteve-se regular por cerca de cinco anos, sob a edição de nomes como Adriana Simon, Ataíde Tartari, Daniela Bittencourt, Fábio Barreto, Humberto Fimiani, Matias Perazoli e R.C. Nascimento, mas no início dos anos 2000 foi descontinuado.