sábado, 23 de março de 2024

O estranho oeste de Kane Blackmoon, Duda Falcão

O estranho Oeste de Kane Blackmoon
, Duda Falcão, 184 páginas. Porto Alegre: Avec, 2019.

Uma das primeiras manifestações editorialmente articuladas da literatura de gênero foi a Weird Fiction, que levou esse nome por estar associada à revista "pulp" Weird Tales, que circulou entre 1923 e 1954 nos Estados Unidos da América. Weird Tales era basicamente uma revista de contos de horror, mas como naqueles tempos pioneiros ainda não havia protocolos claros que estabelececem as características de cada um dos gêneros, os autores da revista costumavam misturá-los em receitas muito variadas, de modo que é quase impossível classificá-las em um gênero específico. São, portanto, Weird Fiction. Autores como H. P. Lovecraft, Robert E. Howard e Clark Ashton Smith são representantes destacados desse período. E como não havia limite algum, não raro os autores acrescentavam doses generosas de dramas épicos, e um dos período mais recorrentes era faroeste que, mais tarde, tornou-se também um gênero em si.
Para um autor americano do início do século XX, colocar histórias estranhas num ambiente de faroeste não era uma coisa incomum, afinal, em muitos lugares dos EUA, os cenários contuavam sendo os mesmos do século anterior. Contudo, esse tipo de narrativa acabou por ganhar corpo próprio, de forma a se tornar ele mesmo um gênero, que é hoje conhecido como Weird West. 
Pode parecer estranho um autor brasileiro se interessar por esse gênero tão estravagante e distante da cultura local, até porque temos ambientes similares ainda pouco explorados, como o visto na novela de horror O fascínio, de Tabajara Ruas, e o filme longa metragem Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Mas visto de dentro do fandom, é natural que um autor fã apaixonado pela Weird Fiction sinta o impulso de fazer algo nessa linha. Tanto que já tivemos, em anos recentes, as antologias Cursed City (2011, Estronho), Sagas Volume 2:  Estranho Oeste (2012, Argonautas) e os romances Areia nos dentes, de Antonio Xerxenesky (2008, Não) e O peregrino: Em busca das crianças perdidas (2011, Draco), de Tibor Moricz.
Este é também o caso de Duda Falcão, escritor gaúcho que há anos vem desenvolvendo uma robusta carreira como autor de horror sobrenatural. Sua especialidade são as narrativas curtas, que já reuniu em quatro volumes: Protetores (2012, Underworld)), Mausoléu (2013, Argonautas), Treze (2015, Avec) e Comboio de espectros (2017, Avec). Seu trabalho mais recente é justamente um fix-up (romance construído a partir de contos independentes de um mesmo contexto) de Weird West com o pitoresco título O estranho Oeste de Kane Blackmoon, publicado em 2019 pela Avec, editora que nos últimos anos tem executado um trabalho muito consistente no ambiente da ficção fantástica.
O estranho oeste de Kane Blackmoon conta a história de um mestiço de branco e índio que sustenta sua vida como caçador de recompensas. Numa de suas caçadas, Blackmoon conhece Sunset Bison, xamã lakota (sioux, para os inimigos) que pede sua ajuda na missão sagrada de recapturar um demônio e o inicia nos mistérios do xamanismo. Mas, na luta contra o ente sobrenatural que ocupava o corpo de um pistoleiro cruel, o xamã acaba por ser ferido de morte. Nos seus últimos momentos, Sunset Bison passa para Blackmoon a tarefa de encontrar e prender o demônio. Para isso, ele terá de desenvolver suas capacidades místicas ainda incipientes, pois o demônio não é nem de longe o único ente do mal que se arrasta pelos desertos e pradarias do oeste selvagem. 
O romance é composto de oito contos dispostos linearmente na ordem dos acontecimentos: "Homem-urso", Bisão do Sol Poente", "Armadilha", Resgate do mundo inferior", "Procurado", Sob os auspícios do Corvo", "Nevasca", "O trem do inferno". Não há pretenção de situar as histórias de Kane Blackmoon num contexto histórico realista, como acontece, por exemplo, na série italiana de quadrinhos Mágico Vento, na qual circulam personalidades famosas em ambientes e fatos historicamente reconhecíveis, que dão à narrativa um caráter elegante e sofisticado. Neste aspecto, o romance de Falcão tem uma pegada mais similar ao primeiro volume da série A Torre Negra, de Stephen King: o estranho Oeste de Blackmoon é uma ambiente mítico, totalmente descolado do real, no qual anacronismos não são relevantes e podem até ser elementos dramáticos que fazem parte das histórias. 
A leitura do romance é agradável, muito por conta do talento de Falcão em contar histórias. Percebe-se a preocupação do autor em criar um texto que possa ser prazeroso e compreensível para leitores de todas as idades. Não há cenas grotescas e sanguinolentas em exagero, e a violência intrínseca ao gênero tem a estética das histórias em quadrinhos. O resultado é mais para uma aventura de dark fantasy do que de horror gore, embora tenha potencial para isso. Ainda traz, em camadas mais profundas, a questão do preconceito, uma vez que o personagem é um pária tanto entre os brancos quanto entre os indígenas, mas esse tema não foi explorado em profundidade. 
Kane Blackmoon acaba por se tornar um dos personagens de referência da literatura nacional de horror e teve ótima repercussão quando do lançamento do livro, em 2019. Ainda que o romance tenha um desfecho bastante satisfatório, acredito ser possível dar sequência às suas histórias, pois o mal do mundo é inesgotável. Mas isso é lá com Duda Falcão.
— Cesar Silva

sábado, 2 de março de 2024

Portal de Capricórnio




 Portal de Capricórnio, Ursulla Mackenzie. Capa: Denise Didelet. 219 páginas. São Paulo: Uiclap, 2019. Lançamento original em 2012.

 

Este livro me chegou em mãos através da própria autora, uma conhecida de anos do fandom brasileiro de FC&F. O leitor mais desavisado pode estar a estranhar o nome, mas se trata, na verdade, do nome artístico utilizado nos últimos anos por Márcia Olivieri. Inclusive, a edição original desta obra saiu com seu próprio nome.

É sua obra de maior fôlego até o momento, um romance muito movimentado sobre a descoberta de uma jovem, Dru River, de um livro antigo que traz consigo, além de segredos sobre as origens da humanidade, o acesso a um passado longínquo. Mas antes disso, ela, fascinada com o livro achado numa casa aparentemente abandonada no litoral paulista, justamente no meridiano do Trópico de Capricórnio, reúne, através de um amigo, vários pesquisadores para estudarem a obra. É então que Dru River, ao levá-los até o local onde o livro foi encontrado, é transportada subitamente junto com eles para um outro local, muito distante e totalmente diferente de tudo o que já conheciam e viveram. Confusos e transtornados, eles têm de entender onde estão, como foram parar lá, que relação há com o livro e, mais importante, como voltar para suas realidades.

Estas e outras perguntas irão movimentar os objetivos e ansiedades dos personagens que, aos poucos, e devido aos perigos repentinos que enfrentam, lutarão principalmente por sua sobrevivência num local que, pelo que vão percebendo, não faz parte do mundo que eles conhecem. Ambientes radicalmente diferentes se sucedem: ora um deserto branco e traiçoeiro, ora uma floresta densa e cheia de surpresas, ora planícies abertas, mas não menos perigosas. A temperatura também muda de forma abrupta, mas o mais terrível são as criaturas com que se deparam: seres rastejantes, ciclopes, monstros marinhos, tal como um kraken, seres centauróides, duendes e pássaros gigantescos semelhantes a seu ancestral pterosauro etc.

Mas que lugar é este e como foram para lá? Dru River e seus amigos transpassaram um portal do tempo, indo parar há 22 mil anos no passado da Terra. Mas podemos dizer que este passado do nosso planeta está muito mais próximo de um mundo de conto de fadas do que algo próximo do que seria verossímil por tudo que se conhece em termos científicos. Isso porque o romance, embora use o recurso da viagem no tempo, o faz apenas como meio de exploração de um lugar fantástico e mágico, mais próximo da mitologia do que da arqueologia.

Neste mundo, talvez de um universo paralelo, embora isso não seja explicitado, poderes mágicos e aparentemente sem explicação são possíveis, além do fato da própria presença de seres só conhecidos das lendas e fábulas – nesse sentido, senti a falta de um dragão. Daria um toque a mais de excentricidade ao conjunto de seres reunidos neste passado muito estranho.

Além de tentar sobreviverem, o grupo descobre porque, afinal, havia parado por lá. Um certo sujeito chamado Hans, representante de um Governo da Coalizão Mundial, lidera um plano secreto de colonizar este passado remoto. Mas resolveu usar dos serviços de Dru River e seu pessoal, por assim dizer, para que estes pudessem descobrir os segredos da principal civilização do tempo remoto, os Kathumaran que, por meio da magia e saberes ocultos, conseguem se manter protegidas e pode representar uma ameaça para os objetivos imperialistas.

Após conhecer Bram, o explorador dos Kathumaran e sua civilização, o grupo tenta voltar à nossa época, mas é surpreendido por Hans e seus soldados, que condicionam o retorno e sobrevivência, à revelação dos segredos da civilização. Eles voltam, mas resolvem adentrar o portal novamente para encontrar parte do grupo que havia se separado, além de tentar impedir os objetivos sinistros de Ham. Esta é uma espécie de ponto de virada da obra, pois ao retornar muitas das novidades são apenas repetidas, o que, de certa forma, diminuiu o impacto da obra até o seu final.

Mesmo assim, o leitor percebe que a história é cheia de reviravoltas. Se beneficia da tradição da fantasia do conto de fadas, com seus lugares fantásticos, personagens poderosos, magias e monstros, e em diálogo com os mundos imaginários criados por Burroughs e Tolkien. O perfil é voltado ao público infanto-juvenil, mas pode agradar a pessoas de qualquer idade, pois o forte é o entretenimento. A autora é competente nesse quesito que acaba, inclusive, reduzindo o impacto de possíveis senões presentes no enredo e seus desdobramentos, que poderiam se mais trabalhados e trazidos de forma mais importante à trama. Como, por exemplo, os detalhes desta coalizão mundial, como se formou, e descobriu o portal, e, talvez também, menos maniqueísta em seus objetivos. Ou então, a exposição do próprio passado, que fica apenas mostrado por meio das impressões dos viajantes, e não em si mesmo. Do jeito que está, parece mais, de fato, pertencente a um universo paralelo ou alternativo, mas poderia ter sido um pouco mais elaborado.

Há também alguns excessos de estilo, como o uso em demasia de pontos de exclamação na fala dos personagens. Um trabalho de edição poderia melhorar este aspecto, tornando a prosa com menos ruídos de interjeições. Como a primeira edição foi publicada em 2012, e esta teve relançamento em 2019, é possível que a autora tenha feito alguma revisão da obra, embora as duas edições, salvo engano, tenham o mesmo número de páginas. Mais importante, ela informa que escreveu uma segunda parte, onde responde às pontas soltas deixadas, e finaliza a aventura.

A paulistana Márcia Olivieri, já uma veterana da Terceira Onda da FCB, tem publicado contos em antologias de prestígio como, por exemplo, Vinte Voltas ao Redor do Sol (2005) e Fractais Tropicais (2018), além de também já ter aparecido no exterior, em países como Alemanha, Argentina, Espanha e Estados Unidos. Inclusive, tem em vista um novo romance, que deve ser publicado em breve. Tudo isso só comprova que estamos diante de uma autora de carreira contínua e séria, que tem procurado se aprimorar e dar novos rumos à difícil e incerta carreira de escritora. Ainda mais de FC e fantasia. Talvez por isso tenha adotado um pseudônimo estrangeiro? É possível, pois vários outros brasileiros já tentaram esta estratégia para auferir mais êxito.

Seja como for, Portal de Capricórnio é um romance de fantasia, mas com ênfase weird interessante, que poderia, inclusive, ser adotado como livro didático em escolas, pois além de um bom entretenimento, inclui também um leque de informações corretas, em termos de dados históricos e/ou mitológicos, que poderiam ser úteis em atividades para crianças e adolescentes.

Marcello Simão Branco