sexta-feira, 29 de abril de 2016

A Liga Extraordinária, Volume II, Alan Moore & Kevin O'Neill

A Liga Extraordinária, Volume II (The League of Extraordinary Gentlemen, Vol. II), Alan Moore & Kevin O'Neill. 232 páginas. Tradução de Marquito Maia. Editora Livraria Devir, São Paulo, 2004.

Segunda parte da novela gráfica steampunk do festejado roteirista e escritor inglês Alan Moore, cuja história se passa numa realidade alternativa na qual os personagens da ficção fantástica existem de verdade.
A princípio, como foi visto no primeiro volume da mesma história, publicado no Brasil em três edições pela Editora Pandora Books em 2001, não estava muito claro até onde ia o delírio do autor. Nela protagonizavam uma quantidade restrita de personagens da fc&f europeia, quais sejam, o estoica Guilhelmina Murray (criada por Bram Stoker em Drácula), o aventureiro decadente Allan Quatermain (criado por Henry Rider Haggard em As minas do Rei Salomão), o pirata terrorista Capitão Nemo (criado por Jules Verne em Vinte mil léguas submarinas), o esquizofrênico Dr. Henry Jeckyll (criado por Robert Louis Stevenson em O médico e o monstro) e o psicopata Halley Griffin (criado por H. G. Wells em O homem invisível) que, em maio de 1898, são reunidos pela Inteligência Britânica numa espécie de comando suicida para enfrentar o perigosíssimo e louco Moriarty (o arqui-vilão criado por Arthur Conan Doyle para a série Sherlock Holmes), que pretende nada menos que dominar o mundo jogando a Inglaterra no caos com a ajuda de um exército de imigrantes chineses e a tecnologia desenvolvida por um certo Dr. Cavor (personagem que não aparece na história, exceto pela presença da cavorita, que é uma citação de Os primeiros homens na Lua de H. G. Wells).
Nesse volume já havia uma quantidade um tanto exagerada de citações que, a certa altura, aproximou-se perigosamente do pastiche. Nas mãos de um autor de talento menor, essa característica negativa certamente seria potencializada num resultado indigesto (como geralmente são as histórias que se apoiam em citações, homenagens e outras formas de colagem dramática), mas o roteiro elaborado de Moore manteve a consistência dos personagens já ricos e deu mais substância aos outros, como o caso da Srta. Murray que, em Drácula, tem uma presença apenas coadjuvante. O mais surpreendente é Nemo, com características bem diversas da adaptação para o cinema pela Disney, que é a versão mais popular do personagem.
Entretanto nesse primeiro volume o elemento principal era mesmo a história, a qual todos os personagens serviam. Essa qualidade narrativa, enaltecida pela arte criativa do ilustrador britânico Kevin O'Neill, rendeu sucesso imediato a obra que, em pouco tempo, chegou as telas de cinema numa adaptação bem abaixo das expectativas dos leitores.
A Liga Extraordinária II segue a história do ponto em que a primeira parou, uma vez que o último quadro daquela já antecipava o que viria, numa citação sutil a A guerra dos mundos de H.G.Wells.
A primeira sequência mostra a batalha final entre Lemuel Gulliver, John Carter e os exércitos marcianos para expulsar definitivamente de Marte a presença invasora e beligerante de uns alienígenas cefalópodes que haviam se instalado por lá. A batalha é bem sucedida para os marcianos, mas os alienígenas apontam seus módulos de fuga para a Terra e... bem, a Liga Extraordinária terá de entrar em ação novamente. Porém, desta vez as coisas serão mais difíceis.
Primeiro porque os invasores vindos de Marte têm uma tecnologia muito superior, contam com uma arma de calor poderosíssima e devastam rapidamente toda a região onde desembarcam. Segundo porque as relações entre os cavalheiros extraordinários está um tanto, digamos, abalada pelos eventos dramáticos da primeira aventura. E, finalmente, porque há um traidor entre eles.
Na busca por um modo de derrotar os invasores, enquanto Nemo, Hyde e Griffin ficam em Londres para combater os alienígenas e impedir seus trípodes de guerra de atravessarem o Sena e chegarem ao Parlamento, Quatermain e Murray são enviados a uma floresta densa, próxima a Watterloo, para encontrar um certo médico geneticista que lá é mantido secretamente pelo governo britânico. Com ele devem pegar uma arma experimental chamada de H142. É claro que eles vão encontrá-lo. É claro que a arma secreta lhes será cedida. E é claro que ela vai derrotar os invasores alienígenas, mas... desta vez o que menos importa é a história. Ela é apenas um background no qual Moore e O'Neill esbanjam suas artes.
Moore deu extrema profundidade a cada um dos personagens, indo muito além da mera citação. Desta vez o que está no foco é a interrelação dos personagens da Liga, as paixões de cada um e as consequências, algumas vezes fatais, de suas atitudes. Cada personagem é individualizado como num romance e, apesar de haver muito mais citações do que no volume anterior (com espaço até para a tira de quadrinhos do Urso Rupert), elas caem para um plano secundário frente a dramaticidade exacerbada do roteiro, ampliada pelos desenhos de O'Neill que estão mais detalhados e grotescos do que no volume anterior.
Mas não é só. Quando a história acaba é que vem a melhor parte.
A editora Devir incorporou ao volume vários apêndices, como jogos e passatempos espirituosos, muitas páginas com ilustrações – incluindo as usadas nas capas das edições originais – e o surpreendente Almanaque do novo viajante, um guia de viagem de 50 páginas com ilustrações magníficas e inspiradoras de O'Neill. O Almanaque apresenta relatos de viagens pelo mundo da Liga Extraordinária, com depoimentos de Mina Murray, Lemuel Gulliver, Capitão Nemo e o ambíguo Orlando entre outros viajantes.
O texto tem mais de 50 mil palavras – um verdadeiro romance dentro do álbum –, no qual Moore usa e abusa de uma infinidade absurda de citações e homenagens, ultrapassando qualquer barreira que esse tipo de argumento poderia enfrentar, criando toda uma geografia alternativa para o nosso mundo, baseado em centenas de livros e mitologias. Todas as possíveis referências que um leitor perspicaz puder  imaginar lá estão, distribuídas em capítulos, um para cada continente.
No Almanaque do novo viajante Moore também nos apresenta pelo menos mais três formações da Liga Extraordinária: uma no século XVII que ficou conhecida como Os Homens de Próspero, liderados por um certo Duque de Milão. A segunda, no século XVIII, comandada por Lemuel Gulliver, na qual esteve também o americano Nutty Bumppo (criação do escritor americano James Fenimore Cooper). O grupo liderado por Mina Murray foi o terceiro, desmantelado após os eventos deste segundo volume, e teria havido ainda um quarto grupo que lhe sucedeu, ainda com a participação de Mina Murray, um misterioso " filho"  de Allan Quatermain a quem a Srta. Murray se refere como "A", e participações ocasionais de um tal Professor Challenger. Cita ainda a Expedição Bellman, um grupo formado em 1870 para explorar um buraco misterioso no qual uma garotinha (a Srta. A. L.) desapareceu por algumas horas. Neste caso não houve muito o que se registrar devido ao desastre final do projeto: todos os membros da Expedição Bellman enlouqueceram e/ou morreram depois de voltar do fatídico mundo subterrâneo. A Srta. A. L. também viria a enlouquecer e falecer em decorrência de uma doença estranha contraída numa segunda abdução, desta feita através de um espelho.
Por este breve relato dá para imaginar o universo delirante que Alan Moore desenhou para sua Liga, no qual não faltaram referências a Opar, Narnia, a Lagoa Negra, Arkhan, Laputa, Xanadu, Shagri-La e as Montanhas da Loucura. É claro que Moore não citou tudo, é impossível arrebanhar todas as mitologias e fantasias escritas pelo mundo, mas ele se esforçou bastante, citando até obras de Gabriel Garcia Marques e Jorge Luiz Borges entre muita coisa absolutamente inidentificável, e só posso imaginar até onde Moore iria se conhecesse metade da fantasia brasileira.
Após da leitura, chega-se a conclusão que só o Almanaque já faz valer o investimento na aquisição do volume, sendo ele uma das melhores fantasias já publicadas em língua portuguesa. Além do mais, o acabamento da publicação é caprichado, com capa cartonada, plastificada e com orelhas.
— Cesar Silva

Obs: A Devir publicou posteriormente outros volumes da saga: Século 1910, Século 1969 e Século 2009, além de republicar a série original. Contudo, segue inédita no Brasil a terceira e mais delirante parte da saga, The black dossier, por conta de diversos problemas que os autores enfrentaram com relação a cessão de direitos autorais de alguns personagens utilizados.  

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Trilogia da Fundação

Fundação (238 páginas), Fundação e Império (244 páginas) e Segunda Fundação (235 páginas), de Isaac Asimov. Tradução de Fábio Fernandes e Marcelo Barbão, capa e ilustrações de Delfin. Editora Aleph, São Paulo, 2009.

Como parte de sua proposta de relançar clássicos da ficção científica, a editora Aleph começou bem com Isaac Asimov em 2009, ao tornar disponível novamente nas livrarias os três volumes da Trilogia da Fundação. É a obra mais volumosa de Isaac Asimov (1920-1992) e uma das mais populares da história da ficção científica.
Isaac Asimov (1920-1992) é um dos principais autores da chamada Golden Age da ficção científica norte-americana, vivida basicamente nas páginas das pulp magazines, de meados dos anos 30 até o final dos anos 40. Uma plêiade de autores hoje considerados clássicos no modelo ainda hoje mais conhecido do gênero – com aventuras espaciais e abordagem hard (das ciências naturais) –, surgiu neste período como, por exemplo, Robert A. Heinlein (1907-1988) e A.E. van Vogt (1912-2000).



O romance em três volumes chamado Trilogia da Fundação é, na verdade, composto de cinco noveletas e quatro novelas publicadas entre 1942 e 1949 na mais influente revista da época, a Astounding Science Fiction, editada por John W. Campbell, Jr., o maior responsável por esta nova geração de autores. Apenas nos anos 50 é que as histórias foram reunidas em três volumes: Foundation (1951), Foundation and Empire (1952) e Second Foundation (1953). A publicação em formato de livro valorizou a obra e a popularizou ainda mais, para além do círculo dos fiéis apaixonados pelo gênero.
A popularidade da obra é indiscutível, como atesta estes dois exemplos. Em primeiro lugar, recebeu o Prêmio Hugo Especial de 1966, como “a melhor série de todos os tempos”, uma distinção única, criada à parte no mais importante prêmio do gênero. Em segundo aqui no Brasil, no restrito ambiente do fandom, foi escolhido por duas vezes, o “melhor romance de ficção científica de todos os tempos”, em votações dos leitores do fanzine Megalon, em 1991 e 1998. Mais recentemente, em 2013,  a revista norte-americana Locus – The Magazine of the Science Fiction and Fantasy realizou uma ampla pesquisa com seus leitores, que a considerou como o terceiro melhor romance de ficção científica do século XX.
A história é uma grande saga de dimensões épicas que procura mostrar a expansão humana por toda a Via Láctea. Neste universo não existem alienígenas e nos espalhamos por toda a galáxia construindo um gigantesco império formado por milhares de planetas, todos controlados pelo centro político, a capital Trantor. Se você pensou no Império Romano está correto pois a inspiração é assumida pelo próprio autor. Mas ele foi além ao apresentar como este poderoso império – a exemplo do romano – semeia em seu próprio esplendor as contradições internas que o levam à decadência e violenta dissolução, num retorno à “barbárie”.
Hari Seldon, um brilhante cientista, cria a ciência da psico-história como um antídoto para reduzir os efeitos catastróficos da queda do império, prevista por ele para acontecer em alguns séculos. É acusado de conspirador, mas seu plano é aceito e posto em prática. São estabelecidas duas colônias de cientistas nos extremos do império – as fundações – de motivações distintas, para preservar a sabedoria e a cultura, e continuar desenvolvendo a ciência e a tecnologia mesmo em tempos de barbárie. Para Seldon não será possível impedir a queda, pois o processo já estaria adiantado, mas permitir o ressurgimento em apenas mil anos de um novo e revigorado império galáctico.
A psico-história é uma ciência que lida com os fenômenos sociais de um ponto de vista coletivo, adotando, princípios filosóficos de indução e as ferramentas da estatística. Pode soar pouco crível, mas bebe na fonte das teorias dos jogos, que começaram a ganhar ímpeto nos anos 1940 e tem servido como um suporte metodológico importante para as ciências sociais desde então, em especial para a economia.


As diversas aventuras situadas nos três volumes mostram as turbulências entre o fim do império e o surgimento de vários pequenos estados despóticos, assim como o desenvolvimento das duas fundações, que tem por objetivo restaurar a glória perdida.  Contudo, aparece uma situação não planejada pelas equações da psico-história, um poderoso mutante com poderes mentais chamado O Mulo, que ambiciona assumir o controle da galáxia.
 Se é verdade que estamos diante de uma clássica história ao estilo space opera – colonização espacial, futuro de consenso, grandes períodos de tempo, ritmo de aventura e personagens pouco densos, em sua maioria – percebe-se o quão complexa é a trama e as várias nuances que surgem ao longo dos três romances. Chama a atenção que a ênfase do enredo esteja no processo histórico e nas mudanças na sociedade, ou seja, discute-se as relações humanas numa aventura de space opera, que é mais afeita também à exploração de grandes engenhos tecnológicos. Em Fundação eles apenas fazem parte do pano de fundo, aceitos como integrantes da civilização. Deste modo, Asimov descola a ênfase das ciências naturais para as sociais, utilizando, contudo, o uso de uma nova ciência que alia História e Matemática.
Há quem veja também em Fundação os efeitos do contexto político em que a história foi criada, pois estávamos em plena Segunda Guerra Mundial. Talvez Asimov especulasse sobre o destino do modo de vida dominante à época, primeiramente desafiado pelo colapso da balança de poder entre as potências europeias (na Primeira Guerra Mundial) e anos depois por um regime totalitário que a todos queria subjulgar. Assim, talvez as duas fundações pudessem representar as democracias e seus valores civilizatórios em perigo.
Já para a figura de Seldon e seus colaboradores seria possível estabelecer um paralelo com a idéia de Platão, de sábios a conduzir o destino da sociedade, em que a ciência teria as melhores soluções para os conflitos inerentes da natureza humana. Aqui poderíamos compreender as implicações da história de um ponto de vista mais autoritário.
Seja qual interpretação for mais relevante – ou outras, a depender da interpretação de cada um –, o fato é que a Trilogia da Fundação é uma obra significativa, pois vai além do tradicional das histórias de exploração do espaço que, procuravam mostrar muito da visão anglo-americana de como se constituir a melhor forma de sociedade. Em Fundação tais alicerces são construídos para depois serem questionados, a partir de desafios políticos e surpresas do destino.
Durante os anos 1980 esta obra foi publicada pela editora Hemus, de São Paulo, em um único volume. A edição era modesta, mas simpática e, melhor, econômica. O relançamento ocorre em três volumes separados, o que encarece a compra. Ainda mais porque a edição é bem produzida, com uma tradução melhor do que a anterior, ainda que as ilustrações de capa destoem do espírito da obra. Quem tem a edição da Hemus deve preservá-la já que ela é única também com relação ao conteúdo, pois é a tradução da obra original escrita nos anos 1940. Já a da Aleph contempla uma revisão realizada por Asimov em meados dos anos 1980 para padronizá-la em relação ao conjunto de suas obras de ficção científica, já que ele passou a escrever outras aventuras dentro deste universo. Seja por qual edição for, o excitamento pelo entretenimento inteligente ou por debates políticos-filosóficos subjacentes, garante uma leitura rica e ilustrativa da própria evolução do gênero no século XX.

– Marcello Simão Branco

sábado, 16 de abril de 2016

Dampyr, Mauro Boselli e Maurizio Colombo

Dampyr (Dampyr), Mauro Boselli e Maurizio Colombo, ilustradores diversos, Sergio Bonelli Editore, 98 páginas. Tradução de Julio Schneider. Editora Mythos, 2004.

O mito do vampiro parece ser um manancial inesgotável. Desde as histórias folclóricas dos romenos, passando pelos monstros góticos de Sheridan Le Fannu e Bram Stoker, pelas centenas de filmes de cinema mais ou menos inspirados neles, até os livros de Anne Rice e Stephen King, os chupadores de sangue sobreviveram a todo tipo de intempérie, incluindo o talento discutível e o gosto duvidoso de muitos  artistas que ousaram se utilizar do mito ao longo desse tempo.
Há alguns anos ocorre no Brasil uma espécie de culto aos vampiros, formado a partir do jogo de representação Vampiro: A máscara (Vampire, the masquerade) de Mark Rein Hagen, publicado em 1991, em nome do qual já foram registrados até assassinatos verdadeiros. O jogo expandiu-se de tal forma que se tornou um gênero particular dentro dos jogos de representação, superando inclusive o interesse pelas aventuras baseadas em mitologias celtas e medievais que originaram esse tipo de jogo.
O interesse dos jogadores de Vampiro expandiu-se para além do jogo. Em busca de novas aventuras, os gamers buscaram inspiração nos romances, gerando uma onda de consumo de literatura vampiresca. Os autores oportunistas manifestaram-se imediatamente, sendo que alguns realmente atingiram uma espécie de estrelato, com títulos listados entre os dez mais vendidos por semanas seguidas.
Autores brasileiros e estrangeiros ousaram dar roupagem diversa aos seus vampiros, instalando-os em outros gêneros como fantasias históricas, ficção científica e histórias alternativas. Nas histórias em quadrinhos eles também ganharam versões tradicionais e criativas. Há vampiros tanto como vilões quanto como heróis.
Mas não tem jeito, um vampiro é sempre um vampiro e não passa mesmo de uma variação, nem sempre sutil, do velho Conde Drácula, não importa o que lhe façam. Por isso, são muito interessantes as histórias de Dampyr, revista de quadrinhos originalmente italiana (fumetti), produzida pela Sergio Bonelli Editore  e primeiro traduzida no Brasil pela Mythos Editora.
Dampyr não é exatamente um vampiro, mas um meio-vampiro. Uma abominação, filho de vampiro e humana, personagem lendário tanto entre os vampiros quanto entre humanos, pois quando esse tipo de união profana acontece, o fruto é um vampiro de vampiros, um ser superpoderoso que pode destruir os vampiros apenas com o contato de seu sangue que, para qualquer vampiro, é um veneno potente.
O dampyr desta história chama-se Harlan Draka, e ele não sabe que é um dampyr. Entretanto ele ganha a vida fingindo ser um, visitando aldeias em algum lugar no Leste Europeu e ludibriando os aldeões com pantomimas de exorcismo combinadas com seu colega de trapaças, Yuri. Harlan tem visões estranhas e aterrorizantes, que ele imagina serem algum sintoma de desequilíbrio mental.
Desse modo, Harlan Draka viveu sem conhecer seu destino, até que se vê diante da guerra. Uma guerra terrivelmente brutal mas ainda humana (não é claro, mas nota-se referências à guerra na Bósnia). Mercenários a soldo do governo marcham contra a aldeia de Yorvolak para fincar posição no território inimigo, mas a encontram abandonada. Apenas uma senhora idosa é encontrada, que tentar alertá-los para procurar um dampyr, pois um perigo terrível assola o lugar, mas ela é imediatamente assassinada. Liderando os mercenários está Kurjak, um veterano impiedoso mas consciente de suas obrigações militares. Ele tem dificuldade em dominar a tropa acostumada a fazer o que bem entende, e precisa impor sua autoridade pela força.
Kurjak não acredita em demônios, por isso surpreende-se ao ter de enfrentar um bando de vampiros que ataca ao anoitecer. Lembra-se então do aviso da velha e manda dois de seus homens buscarem ajuda. E eles encontram Harlan Draka, que se dizia um dampyr, levando-o a força para Yorvolak.
Na aldeia abandonada, Harlan confronta Kurjak e descobre que o mercenário havia capturado um dos vampiros, uma garota chamada Tesla. Para sua sorte, a vampira quer abandonar o bando, pois é muito maltratada pelo seu mestre, o impiedoso Gorka, um dos vampiros originais. E assim, desse encontro bizarro surge o trio que vai se tornar companheiro ao longo da saga do dampyr.
Nem preciso dizer como a aldeia será atacada por Gorka e seu bando e que será difícil para Harlan e seus novos amigos enfrentá-los. Assim como a forma como Yuri é morto por Gorka e volta da morte como seu escravo, para destruir seu antigo amigo Harlan.
Ao longo desta aventura introdutória em duas edições, Harlan descobrirá que é realmente um dampyr, filho Draka, um dos vampiros originais mais poderosos. A cada história seguinte, que vai se desenvolver em diversas partes do mundo, Harlan enfrentará um desses arcanos senhores da morte para reunir todos os fragmentos de sua vida, pois ele pode absorver o poder e a memória bebendo o sangue dos vampiros que derrota. No processo também enfrentará a pior escória da humanidade, como guerrilheiros sádicos, gangues urbanas, mafiosos e respeitáveis membros da alta sociedade, sempre com a ajuda valiosa e muito bem armada de Kurjak, que desertou de sua guerra suja, e de Tesla, sempre de grande auxílio nos combates corpo a corpo.
Os desenhos dos dois primeiros número de Dampyr, subtitulados "O filho da vampiro" e "A estirpe da noite", são de Mario "Majo" Rossi, ilustrador de primeira linha que elabora imagens de uma crueza tremenda, com um realismo pouco visto nos quadrinhos modernos. Armas, veículos e edificações são apresentados em todos os detalhes como bem se recomenda às histórias de guerra, com o clima pesado da narrativa gótica ressaltado pela técnica perfeita de claro/escuro, especialidade dos artistas dos fumetti.
O número três, "Fantasmas de areia", é desenhado por Luca Rossi e o número quatro, "A guerra dos vampiros", tem a arte assinada por Maurizio Dotti, e ambos mantém a excelência do trabalho.
Dampyr aproveita cada detalhe das tradicionais histórias de vampiros, mas não deixa de também se utilizar de abordagens criativas e conceitos ainda não vistos nas milhares de histórias de vampiros já narradas.
No Brasil, a revista Dampyr durou apenas até o número 12, quando foi suspensa, mas na Itália, seu país de origem, continua a ser publicada e tem mais de 190 edições.
Cesar Silva

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Um vulto nas trevas, Simone Saueressig

Um vulto nas trevas, Simone Saueressig. 80 páginas. Coleção Asa Negra, edição da autora, Novo Hamburgo, 2004.

Há alguns anos a cultura brasileira de fc&f ignoraria qualquer título que estivesse alinhado com o mercado infanto-juvenil. É claro que isso nunca passou de chauvinismo de fã e ele ainda existe e se aplica em diversos segmentos do fandom, mas desde há algum tempo tem se tentado também prestar atenção a esse tipo de literatura que, de mais a mais, não tem nada de desprezível, ao contrário, identifica-se como uma luva com o tipo mais promissor de leitores de fc&f, o adolescente.
Por isso mesmo não é de se admirar que uma das mais completas autoras brasileiras de fc&f seja uma frequente colaboradora de coleções infantojuvenis. Simone Saueressig é gaúcha de Novo Hamburgo, com muitos livros publicados por editoras importantes, tais como O palácio de Ifê (L&PM, 1989), A fortaleza de cristal (L&PM, 1993), A máquina fantabulástica (Scipione, 1997) e Receita para um dragão (Scipione, 1999), entre outros.
Simone confessa ter sido obrigada a publicar Um vulto nas trevas sozinha, pois as editoras não se dispunham a fazê-lo. Temos que agradecer à autora a iniciativa por publicar este que certamente é um de seus melhores trabalhos, dentro de uma galeria de obras maravilhosas.
Trata-se de uma novela de mistério com características de horror sobrenatural gótico, devidamente adaptada ao moderno ambiente brasileiro urbano e claramente orientada ao leitor jovem, ainda que tenha apelo bastante forte ao leitor adulto pela qualidade da narrativa.
É a história de Beto, um garoto de cerca de dez anos que, junto com seu primo Inácio, de 14 anos, vai passar o final do ano com o avô, Seu Chico, num casarão tão velho quanto estiloso em Gramado. Beto já passara outras férias ali e guardava muitas memórias e impressões das outras estadas.
Seu Chico é viúvo e mora apenas com sua filha adotiva Clarisse, uma jovenzinha muito magra e de aparência débil, mas que realizava praticamente todas as tarefas domésticas no casarão.
Logo na primeira noite, Beto tem uma experiência bizarra que vai pautar todo o drama da narrativa. Sem sono, o garoto levanta tarde da noite para beber água e, da janela da cozinha, avista um vulto diáfano dançar no jardim, flutuando ao redor do poço e desaparecendo num salto. De quem seria aquele fantasma? Por que rondava a casa nas noites claras de verão?
Aterrorizado, Beto passa a ver assombrações em todas as partes do casarão, que se presta perfeitamente a essas coisas. Desse modo, o casarão assume o posto de quinto personagem da história, com suas salas vazias, portas rangedoras, gradil enferrujado e muitas, muitas frestas e goteiras.
Numa das explorações no segundo pavimento da casa, fechado ao uso por estar demasiadamente deteriorado pela falta de manutenção, os garotos encontram um embrulho misterioso que os leva a crer que seja um videogame que o avô estaria escondendo para lhes fazer uma surpresa no Natal. Acreditando que poderão passar os dias divertindo-se com o presente do avô, decidem pedir o adiantamento da entrega do mesmo. Sem alternativa, Seu Chico consente.
Beto e Inácio estão certos em quase tudo. Sim, aquele era mesmo o presente de Natal do avô. Sim, eles vão se divertir muito (talvez um pouco mais do que isso), mas... não é um videogame.
Ao abrirem o pacote, encontram um livro enorme e pesado. Não um livro qualquer, mas um antigo livro de recortar e montar a miniatura de cartão de um casarão chamado "Das Voguel Haus" em alemão - "A casa dos pássaros" em português – exatamente onde eles estavam hospedados naquele momento, o mesmo velho casarão de seu avô.
Desenxabidos e sem muito mais para fazer, Beto e Inácio passam a ajudar o avô a montar a maquete, uma representação exata em cada detalhe do projeto original do casarão.
Eles não sabem, mas esse quebracabeças guarda a resposta da visão assustadora que Beto teve naquela noite de insônia e que continua a atormentar-lhe a imaginação.
Todos os mistérios serão desvendados a seu tempo, não sem uma boa dose de coragem, desprendimento e afeição de ambos os garotos com relação ao seu avô e sua prima que, ao início da história, pareciam tão sem graça.
Um vulto nas trevas é uma história de amadurecimento, de um rito de passagem. Para Beto é a passagem da infância para a adolescência. Para Inácio, a passagem da adolescência para a vida adulta. E para todos os leitores, é uma história de como os laços humanos mais diáfanos são reforçados na tragédia.
Simone trata cada um dos personagens com a maturidade de uma escritora experiente. Todos são perfeitamente caracterizados, críveis e verdadeiros em cada detalhe. Os cenários são descritos com clareza e o leitor percebe-se caminhando pelos corredores da Casa dos Pássaros junto aos garotos, explorando seus recônditos mais obscuros, janelas e portas e móveis que bem poderiam abrir para dimensões tão loucas e perigosas como um guardarroupas de C. S. Lewis ou um buraco no jardim de Lewis Carrol.
Só uma coisa a lamentar neste livro de Simone: ele é muito breve. Esse era um livro que deveria ter mais páginas, só para se demorar a acabar. Prova definitiva que é mal negócio ignorar qualquer dos ambientes criativos da nossa literatura, sob o risco de se perder a melhor parte.
Cesar Silva

domingo, 3 de abril de 2016

Quebra-Queixo Technorama, Volume 1, Marcelo Campos, Octávio Cariello

Quebra-Queixo Technorama, Volume 1, Marcelo Campos, Octávio Cariello & ilustradores diversos. 80 páginas. Editora Devir, São Paulo, 2004.

Já recomendavam em 1922 os participantes da Semana de Arte Moderna que o caminho da identidade da arte brasileira deveria passar pela deglutição e posterior digestão dos produtos culturais estrangeiros. É inevitável que a cultura brasileira tenha que fazer isso, porque somos um povo formado pela justaposição de culturas locais e estrangeiras de quase todos os continentes. Não há praticamente nada brasileiro que não tenha pelo menos um dos pés em alguma tradição cultural ou mitológica estrangeira, em maior ou menor grau de dependência. Com a fc não poderia ser diferente e ainda mais com a fc em quadrinhos.
Temos uma tradição no que se refere a arte fantástica, mas ela não é suficientemente madura, tampouco foi suficientemente explorada, ao ponto de ter digerido por completo as influências estrangeiras, que aparecem vivamente nos produtos modernos, como é o caso de Quebra-Queixo.
Esta hq de fc apareceu pela primeira vez em 1991, na revista Pau-Brasil da Editora Vidente, que apresentou aos leitores várias séries, personagens e autores novos. Marcelo Campos, matogrossense de Três Lagoas, criador de Quebra-Queixo, apresentava desde então um potencial promissor como artista de quadrinhos. Já fizera carreira com personagens infantis nas revistas da editora Abril e desde 1989 fazia ilustrações para quadrinhos americanos. Campos foi um dos únicos que continuou a dedicar atenção ao seu personagem depois do cancelamento do periódico.
Quebra-Queixo é um super herói futurista que atua em Buracópolis, megalópole superpovoada, com altos níveis de desenvolvimento tecnológico e decadência moral. O herói é uma espécie de força da natureza, acionado pela polícia para manter tolerável a desordem da cidade. Brutal e sem qualquer escrúpulo, Quebra-Queixo manda porrada em tudo e em todos os que julgar merecedores do pesado punho da lei.
O clima geral das histórias é cômico e niilista, e remete ao seriado britânico Judge Dreed, ao seriado americano American Flagg e a vários trogloditas dos comics, tais como o Coisa, Hulk, Hellboy e similares.
Boas ideias de fc permeiam as aventuras de Quebra-Queixo. As histórias são crônicas urbanas extrapoladas: Buracópolis espelha desavergonhadamente os problemas da Grande São Paulo, que é, de fato, a personagem principal da história; Quebra-Queixo lá está apenas para permitir que conheçamos melhor as contradições deste absurdo urbano e essa boa sacada redime todo e qualquer pecado narrativo do autor.
Marcelo Campos convidou vários amigos para elaborarem as histórias que compões Quebra-Queixo Technorama, Volume 1. Ao todo são cinco histórias, três delas apresentam outros personagens que vivem nos bairros temáticos de Buracópolis: o ciborgue Zédulixo, o super técnico de manutenção Nego Simão, e a heroína virtual Abantesma Jones. Da mesma forma que Quebra-Queixo, estes paladinos são apenas coadjuvantes das maravilhas urbanas ensandecidas de Buracópolis.
"Seja você, sendo eu", com roteiro e desenhos de Marcelo Campos, abre o volume, recontando a primeira aventura do personagem publicada na Pau-Brasil. Foi totalmente refeita para incorporar as mudanças que o autor queria na história e para atualizar o estilo gráfico, uma vez que a versão anterior tendia mais para o pastiche de super heróis. A confusão se instala em Buracópolis quando a lei reconhece o direito das pessoas adotarem a identidade que bem entenderem, mesmo que sejam baseadas em personagens de ficção ou em pessoas reais, o que abre um perigoso precedente jurídico que precisa ser resolvido no tapa.
A segunda história é "Presente imperfeito" com roteiro de Octávio Cariello e desenhos de Rael Lyra. O ciborgue mutante Zédulixo, que é horroroso mas tem uma boa alma, tenta a seu modo ensinar uma jovem que há lugares em Buracópolis aonde pessoas "normais" não devem ir.
Abantesma Jobes é a protagonista de "A verdade confusa", com roteiro de Octávio Cariello e desenhos de Weberson Santiago. Abantesma é uma jovem milionária excêntrica que depois de testemunhar o assassinato de seus pais, guarda uma identidade secreta de paladina noturna – uma óbvia citação a você sabe quem. Sua zona de ação é uma espécie de mundo virtual que está um tanto confuso porque um vilão roubou a verdade.
"O ponto de fuga", com roteiro de Octávio Cariello e desenhos de Fernando Cintra, conta a história de Nego Simão, um técnico de manutenção de Buracópolis que, auxiliado por Andy, um novato na profissão, vai passar maus bocados para conter um vazamento de lubrificante que pode apagar a realidade.
O melhor episódio é o último, "Plano divino", com roteiro de Octávio Cariello e desenhos de Jefferson Costa. Mama Vodru, um pai de santo do mal, está fechando espiritualmente bairros inteiros de Buracópolis, transformando seus habitantes em zumbis. Para garantir que os impostos e taxas continuem fluindo, a administração da cidade envia Quebra-Queixo para acabar com a festa, mas os poderes de Mama Vodru são superiores: o herói é aprisionado e transformado em seu brinquedo sexual. Para sair dessa fria, só com a ajuda de outro pai de santo, o não tão poderoso mas do bem, Pai Santo Zambelê.
Cada história vem acompanhada de uma capa individual, textos de apresentação dos artistas do episódio e uma vinheta com um jogo de cartas inventado por Campos, citando regras tão absurdas quanto incompreensíveis, o que ilustra perfeitamente o conteúdo do trabalho.
Quebra-queixo é o que podemos chamar de uma fc pós cyberpunk muito refinada, que não tem pretensão se tornar um jogo de rpg ou um seriado de televisão. Não há racionalidade ou pontos de apoio e identificação confiáveis para o leitor dominar o universo de Quebra-Queixo. Neste caso, não é uma deficiência do autor, mas uma característica da urbanidade pós moderna em que tudo é tão fragmentado, incompleto e absurdo que a atitude arrasaquarteirão do herói passa a ser a única ligação com a normalidade conhecida. O que também não deixa de ser um absurdo.
Cesar Silva