sábado, 28 de agosto de 2021

Tripulação de Esqueletos

 

Tripulação de Esqueletos (Skeleton Crew), Stephen King. Tradução: Louisa Ibañez. Capa: Silvana Mattievich. 854 páginas. Rio de Janeiro: coleção Ponto de Leitura/Objetiva, 2011. Lançamento original em 1985.



Esta é a terceira coletânea de histórias publicada por Stephen King. A primeira foi Sombras da Noite (Night Shift; 1978) e a segunda foi Quatro Estações (Different Seasons; 1982). Em relação a elas, Tripulação de Esqueletos é muito maior no número de páginas e também na quantidade de histórias. E é também mais variada em termos temáticos e de experimentação de estilo. Temos 22 histórias, a maioria de horror, mas há também algumas de ficção científica e outras em que os gêneros se misturam, uma característica que se afirmaria ao longo de sua carreira. King apresenta, ainda, dois poemas, um deles, “Para Owen” (1985), dedicado a um de seus filhos.

A história que abre o livro é uma de suas mais conhecidas e impactantes, “O Nevoeiro” (1980), originalmente publicada na antologia Dark Forces. É difícil crer que algum leitor do gênero fantástico não a conheça, até porque recebeu uma ótima adaptação ao cinema em 2007, dirigida por Frank Darabont e virou uma minissérie em 2017.

Após uma forte tempestade uma localidade litorânea no Maine fica completamente devastada. Queda de árvores, destruição parcial de casas e carros, ruas e estradas interditadas e colapso da energia elétrica e nas comunicações. David Drayton, sua esposa e seu filho pequeno tentam se achar em meio ao caos em sua residência, quando avistam, de súbito, uma névoa estranha se aproximando no horizonte. Estranha porque ela é perfeitamente perpendicular e, aparentemente, se aproxima de maneira uniforme. David, seu filho e um vizinho partem para o centro da cidade, Bridgton, para comprar comida e suprimentos. Mas, depois de entrarem no supermercado, não conseguem mais sair, pois o nevoeiro tomou conta de toda a paisagem. Pois a questão não é a névoa em si, mas o que ela traz em seu interior.

Estranhos e terríveis monstros habitam o interior da neblina, e aqueles que deixam o supermercado são devorados quase que instantaneamente. Há seres semelhantes a aranhas enormes, polvos, ptrossauros e outros cada um mais aterrorizante que o outro. David, seu filho e as demais pessoas do supermercado vivem a fase da descrença, da resistência e, finalmente, do desespero. Como a energia e as comunicações estão cortadas, eles estão, literalmente, isolados dentro do local e cercados por forças apavorantes. Alguns se evadem do local e morrem, outros cometem suicídio, um outro grupo segue a Sra. Carmody, uma fanática religiosa que relaciona o fenômeno a uma vingança divina contra os pecadores. No meio desta confusão, David, seu filho e alguns outros tentam resistir ao perigo interno e externo. A violência pode explodir entre as pessoas e o mercado pode ser invadido a qualquer momento pelos monstros. O que fazer? O desespero e, por fim, um sentimento de fatalidade se instala. Mesmo assim, David lidera um grupo que tentará sair do local em busca de ajuda e explicação para um horror insólito como este. Esta história impõe um suspense dos mais intensos que já li. E ele é assim também porque conforme os acontecimentos irão se desenrolando participamos do horror dos personagens, pois fica claro que não haverá escapatória para ninguém. Contudo, David e seu grupo saem do mercado em direção à cidade de Hartford, pois ele teria ouvido uma voz do outro lado da linha de um telefone ainda no mercado. Mas King deixa o desfecho sem solução, o que, de certa forma, me angustiou ainda mais.

Depois de uma história como esta dificilmente o livro, por melhor que fosse, poderia manter o nível e, talvez, a decisão mais correta seria colocar “O Nevoeiro” como a última da coletânea. Tal é seu impacto que tive que dar um tempo para voltar ao livro, pois os efeitos ficaram reverberando sem que eu conseguisse me concentrar novamente. E isso mesmo já tendo conhecido previamente a história por meio do filme.

Em todo caso, como estamos diante de Stephen King, o nível médio da coletânea manteve-se mais do que adequado. Seguem-se mais 19 peças de ficção e dois poemas. E a maioria das histórias são noveletas, maiores do que um conto e menores que uma novela, como “O Nevoeiro”.

O perfil das histórias do livro está distribuído de forma aleatória, então o leitor não sabe previamente que tipo de tema virá a seguir. Isso, permite uma experiência estimulante e, por vezes, surpreendente, embora soe também meio desequilibrado, como se as histórias tivessem sido juntadas de qualquer forma.

Entre as narrativas de horror mais explícito há algumas realmente poderosas e até indigestas. Como, por exemplo, “Sobrevivente” (1982). Um cirurgião sobrevive a um naufrágio e vai parar numa ilha deserta. Não há comida disponível e, então, ele se utiliza do seu próprio corpo para se manter vivo por mais tempo. Deu para perceber do que estou a falar? É uma narrativa difícil de ler até o final, pois vai ficando insuportável. Até King chegou a dizer que havia sido demais mesmo para ele.

Outra história de horror surpreendente e fatalista é “A Balsa” (1982). Um grupo de adolescentes vai até uma praia deserta e, após subir num pequeno bote é cercado por uma estranha mancha escura que surge de repente. A princípio pensam que se trata de um óleo vazado de algum lugar, mas quando ela os ataca eles percebem que estão diante de um horror desesperador. De novo, King não alivia para os personagens e o leitor. E talvez por isso seja uma das melhores histórias da coletânea.

O Macaco” (1980) remete àquele tipo de horror relacionado com símbolos e objetos da infância. É um relato sobre um macaco de brinquedo sobrenatural, que provoca a morte dos entes queridos de Hal Shelburn, quando ele era criança. Muitos anos depois, o macaco reaparece, assombrando sua vida de novo. História sinistra.

Também sinistra é a noveleta “Vovó” (1984). Relato de um menino que se vê sozinho em casa com a avó muito doente. Chama a atenção pelo seu alto grau de detalhismo das situações e do medo que se instala na criança. Pois, para além de eventualmente ter de lidar com a situação de ter de socorrê-la, ou dela morrer, há um histórico estranho e mal contado da avó, que, através da manipulação de livros obscuros, teria conseguido engravidar, após seguidos insucessos. Paira mesmo na família um sentimento de temor e desconforto por ela. Para completar, o desfecho sai do horror psicológico e adentra o sobrenatural. Grande história.

Como disse acima, há três narrativas de FC: “A Excursão” (1981), “O Atalho da Sra. Todd” (1984), e “Um Mundo de Praia” (1984). Todas muito boas, embora o eixo condutor da narrativa esteja voltado ao suspense e ao horror. A primeira delas aborda um tema hard, o do teletransporte. Às vésperas de embarcarem para Marte, um pai conta a seu filho como aconteceu descoberta tão revolucionária. Depois de várias tentativas frustradas com ratos, o inventor descobre que para que dê certo, é preciso estar inconsciente. Caso contrário, as consequências podem ser muito desagradáveis. Fascinado, o menino resolve tirar a prova. “O Atalho da Sra, Todd” é uma história agradável e surpreendente, sobre o tema do universo paralelo. No caso, é o da personagem do título que desaparece subitamente, ao procurar o atalho perfeito pelas estradas vicinais do estado do Maine. King disse ter se inspirado em sua esposa, que também sempre procura por atalhos na mesma região em que vivem. E a terceira, “ Um Mundo de Praia” volta a flertar com o horror. Uma pequena nave cai num planeta desconhecido e os dois tripulantes sobreviventes percebem que só há areia em toda sua superfície. A premissa é ótima e o desenvolvimento não menos que perturbador. Como se vê, ela dialoga com “O Sobrevivente”, comentado antes.

Um recurso recorrente neste livro é o das histórias dentro de histórias. Ou seja, o personagem principal conta aos outros algum fato ou experiência que ele mesmo viveu e, desta, forma, é a história pretérita a verdadeira trama apresentada. Vale a pena comentar, especialmente duas: “O Homem que Não Apertava Mãos” (1981) e “A Balada do Projeto Flexível” (1984). Na primeira temos o triste relato de um homem assombrado por uma praga, proferida pelo pai de um menino que ele, acidentalmente, matou num acidente de carro. O que se discute é o quanto pode estar sozinho um homem? E como lidar com uma maldição?

Já “A Balada do Projétil Flexível”, a segunda história mais longa do livro, trata do tema da loucura e do suicídio de escritores. Talvez seja uma das primeiras abordagens de King sobre o estado mental e a condição do seu próprio ofício, que teria pelos anos posteriores algumas histórias que se tornariam clássicas como, por exemplo, Angústia (Misery; 1987), A Metade Negra (The Dark Half; 1989) e Janela Secreta, Jardim Secreto (Secret Window, Secret Garden; 1990).

Em A Balada...” um editor conta a história de um jovem escritor de sucesso que cometeu suicídio, após acreditar que haveria uma conspiração no mundo contra ele e seus seres imaginários, os fornits, que seriam os verdadeiros autores dos textos que ele escrevia. Seres minúsculos que movimentariam as teclas da máquina de escrever. Na tentativa de ajudar o autor a superar seus horrores internos, o próprio editor, em crise pessoal e profissional, também acabou embarcando na loucura. Bom, se ele está a contar a história ele não morreu. Mas seu preço também foi muito alto. É um relato desconcertante sobre como uma desordem mental pode se instalar na mente de uma pessoa e tornar sua vida um inferno. Esta novela foi capa da edição de junho de 1984 de The Magazine of Fantasy & Science Fiction – veja a capa acima.

Outras narrativas do livro adotam um tom marcadamente intimista, quase mainstream, em que o fantástico é apenas um leve fio condutor, como em “Nona” (1978), “Festa de Casamento” (1980) e “O Braço de Mar” (1981). Mas todas impressionam pelo vigor narrativo e a habilidade de construção das tramas e personagens, uma das principais qualidades do autor.

A edição de Tripulação de Esqueletos que li é a segunda lançada no Brasil, décadas depois da primeira, de 1987, pela Francisco Alves Editora, em sua célebre coleção Mestres do Horror e da Fantasia. Esta foi uma das pouquíssimas edições do King desta coleção que não tive a chance de comprar, e acabei por ler uma edição de bolso. Ruim de manusear, devido ao peso e o volume gigantesco de páginas. Em todo caso, com as facilidades de pesquisa permitidas pela internet creio que acabarei por encontrar a edição para completar a coleção.

Numa prova de seu impacto e qualidade Tripulação de Esqueletos venceu o Prêmio Locus e foi finalista do World Fantasy em 1986, ajudando a consolidar a reputação de King na época. Isso só ilustra o fato de que a coletânea apresenta ao leitor um cardápio dos mais variados, servindo como uma introdução segura aos principais temas e interesses do mestre contemporâneo do horror. Mas mesmo para os leitores mais experientes de sua vasta obra, há sempre algo novo a se descobrir num autor tão talentoso e que sempre pode nos surpreender e desestabilizar.

Marcello Simão Branco


terça-feira, 3 de agosto de 2021

O Vagabundo das Estrelas

O Vagabundo das Estrelas (L´Orphelin de Perdide), de Stefan Wul. Tradução de Mário Henrique Leiria. Capa de Lima de Freitas. 154 páginas. Lisboa: Editora Livros do Brasil, Coleção Argonauta, n. 60, 1960. Lançamento original de 1958.

 

Este pequeno romance é o sétimo dos doze da carreira de Stefan Wul. E talvez aquele que escreveu mais rápido, em apenas três semanas. Como os demais, também foi primeiramente publicado na clássica coleção francesa de FC, Fleuve Noir.

O popular contrabandista e viajante espacial Max, a bordo de sua nave, Grande Max, recebe uma mensagem de um amigo antigo, vindo do planeta Perdide. Desesperado, Claude pede ajuda para resgatar seu filho pequeno, após ele e sua mulher sofrerem um ataque de vespas gigantes. Este início é o melhor da história, o momento mais dramático. O suspense em torno da fuga do pai e seu filho é impactante, ainda mais quando só o menino sobrevive, tendo como meio de comunicação um aparelho chamado de micro, uma espécie de drone ovóide, capaz de vencer as barreiras do espaço para estabelecer uma conversa imediata. Uma espécie de ansível antes do recurso tecnológico ser melhor desenvolvido pela escritora norte-americana Ursula K. le Guin (1929-1918).

E é por meio do aparelho que Max passa a orientar a criança e decide partir até Perdide para salvá-lo. Mas não será tão simples, já que ele estava em viagem transportando um casal (Martin e Belle) para o planeda Sidoine. Mas em nome da amizade ele muda a rota para Perdide, com a promessa de depois levá-los ao seu destino, ainda que sob protestos de Martin, um sujeito egoísta e com ciúmes de sua bela esposa, mesmo que Max não demonstre maior interesse nela. Aliás, é curioso também como Wul se debruça em descrever fisicamente Max em várias páginas, como um negro bonito, alto e musculoso que anda seminu em sua nave.

Perdide é muito longe e para encurtar a viagem de 85 dias numa velocidade crescente em direção à da luz, Max resolve utilizar o recurso de pegar carona gravitacional em outros corpos celestes. Assim, a Grande Max chega ao paradisíaco planeta Devil-Ball, cheio de belezas naturais, onde encontra outro velho amigo, Silbad. Este, tocado pelo drama, resolve acompanhá-los na tentativa de resgatar o menino. Mas, antes ainda param em Gama 10, onde Martin foge, após ser flagrado tentando orientar o menino a entrar num lago para se afogar. Na tentativa de capturar o infeliz, Max e Silbad são raptados por uma horda nativa, que é liderada por um sujeito chamado de Mestre, que conserva o seu poder ao manter cativa uma fera monstruosa que se alimenta, entre outras coisas, de carne humana. Quem o desobedece vira comida do bicho. Eventualmente, eles conseguem escapar e retomar sua rota original.

Como se percebe, há uma quebra de expectativas, pois ao leitor é sugerido que o objetivo imediato da história é a tentativa de resgate do menino e suas consequências. Mas uma série de situações novas e arriscadas acontecem sem que se perca, contudo, o fio condutor do enredo. É que com este recurso, é mostrado o estilo de vida despojado de Max, conhecido quase que como uma lenda pela galáxia.

Mas Wul ainda reserva uma surpresa no final do livro, pois ao finalmente chegarem a Perdide são surpreendidos por uma frota espacial em órbita. Eles descobrem que o planeta está amplamente habitado e urbanizado, ao contrário do que conheciam dele. Não encontram mais o menino, pois percebem estupefatos que foram vítimas de uma dilatação temporal que produziu um atraso de um século em sua jornada. Mas Wul deixa tudo mais ou menos no ar, sem dar detalhes dos motivos da ocorrência do paradoxo temporal, o que enfraquece o efeito.

Esta aventura destoa do restante de sua obra, pois o contexto é mais assumidamente juvenil, com uma space opera explícita. Não há o desenvolvimento de um enredo em torno de um evento coletivo dramático ou complexo, e com um subtexto político mais ou menos evidente, por meio do qual os personagens se movem, entremeados por soluções criativas e surpreendentes. Ora, características todas vistas nos seus seis livros anteriores – ver as resenhas aqui. Pois O Vagabundo das Estrelas é todo pulp, mas num sentido fraco, pois o próprio final pode ser vislumbrado por um leitor mais atento ou experiente.

Este livro também foi adaptado para o cinema de animação, com o nome de Time Masters (1982), por René Laloux, o mesmo realizador de Fantastic Planet (1973) – adaptação de O Mundo dos Draags (Oms em Série; 1957), premiado no Festival de Cannes. Isso é uma mostra do fascínio que Wul provocou na ficção científica francesa da segunda metade do século passado, e não sem razão, embora o diretor tenha escolhido talvez a sua história menos inspirada.

Marcello Simão Branco