domingo, 24 de junho de 2018

O caminho do Louco, Alex Mandarino

Guerras do Tarot, Volume 1: O caminho do Louco, Alex Mandarino. 296 páginas. Avec Editora, Porto Alegre, 2016.

Um tema bastante explorado pela ficção de mistério são as sociedades secretas. Elas têm um carisma irresistível tanto entre autores quanto entre leitores, que fantasiam sobre o que acontece por trás das portas fechadas e das cortinas cerradas. Sinais secretos, roupas exóticas, divindades bizarras, rituais macabros, poderes insuspeitos e por aí vai. Uma aventura de James Bond não seria a mesma sem uma sociedade secreta.
Em O caminho do Louco, primeiro volume da série Guerras do Tarot, publicado em 2016 pela Avec Editora, o jornalista e tradutor carioca Alexandre Mandarino apresenta o conflito entre duas dessas sociedades, cada qual dotada de poderes sobrenaturais através dos quais pretendem controlar o mundo.
A história gira em torno de um documento misterioso, cuja simples leitura atrai a atenção de uma horda de assassinos sem alma que perseguem sem descanso o desavisado leitor, até matá-lo. Esses assassinos tenebrosos são tão ferozes quanto invisíveis, pois têm uma aparência de tal forma comum que passam despercebidos da atenção pública. Logo nas primeiras páginas, testemunhamos a ação de um deles quando encontra a sua presa, um padre que leu o que não devia. Mas o documento não estava mais com ele pois, minutos antes de ser atacado numa estação de trem na França, o encaminhara por correio a um importante bispo seu conhecido que, sem saber, vai se tornar o próximo alvo da horda assassina.
Enquanto um casal de ladrões com equipamentos de alta tecnologia invade uma empresa em Munique em busca de um certo documento, e um grupo de homens dotados de poderes sobre humanos rouba uma fortuna em ouro do banco do Vaticano, André Moire, jornalista brasileiro em crise existencial, abandona sua vida regrada e segura para embarcar num mochilão sem destino. Ele não sabe, mas está dando os primeiros passos no Caminho do Louco, que se insinua a ele em sonhos e visões enquanto caminha pelos sertões América. O mistério começa a se revelar quando André é finalmente confrontado, na cidade do México, por um agente do Tarot, sociedade secreta de objetivos incertos que afirma ser ele o novo Louco, o representante vivo desse arcano no baralho adivinhatório. Contudo, para ganhar seus poderes e assumir seu lugar na grande malha que sustenta a realidade, ele terá de cumprir uma peregrinação mística, visitando os avatares de cada um dos demais vinte e um arcanos maiores do Tarot espalhados pelo mundo. Ao longo de uma jornada sem muita convicção, instruído pelos arcanos O Mago, A Sacerdotisa, A Imperatriz e O Imperador, o Louco toma contato com os primeiros segredos dessa sociedade e tentar entender por que ele é tão importante nos planos dela.
Não faltam à história muitas cenas de ação com enfrentamentos violentos, incluindo lutas mortais com mestres em kung fu, parkour nos telhados de Paris e até perseguições de carros a quinhentos quilômetros por hora, tudo temperado com pitadas de super heróis e conspirações religiosas.
Mandarino, que atua como autor de contos desde os anos 1990, ficou mais conhecido no fandom a partir de suas contribuições à franquia Intempol, sendo que seu texto “O rabo da serpente” obteve boa classificação no Prêmio Argos de 2003. Mais recentemente, publicou nas antologias Sherlock Holmes: Aventuras secretas (2012, Draco) e Caminhos do fantástico (2012, Terracota), conto com o qual foi finalista no Argos 2013. Mandarino também foi editor da sofisticada revista eletrônica literária Hyperpulp, publicada entre 2011 e 2012. A redação de O caminho do Louco consumiu muitos anos de trabalho, pois Mandarino revelou que os primeiros esboços da história foram redigidos em 2001.
O autor demonstra grande domínio sobre as cenas de ação, com descrições vívidas e impactantes, próprias de quem vê a narrativa como um filme de cinema, com muitas explosões, correrias e lutas sangrentas, e os capítulos curtos dão bom ritmo à leitura. Há um grande número de personagens em diversas narrativas paralelas, que colabora para uma ampla percepção do mundo criado pelo autor. Contudo, o final do livro é inconclusivo pois, desde o princípio, fica clara a intenção do autor em escrever uma série. Para o bem ou para o mal, fica a garantia ao leitor ser impossível dar spoilers nesta resenha.
Cesar Silva

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Algo Sinistro vem por Aí


Algo Sinistro vem por Aí (Something Wicked this Way Comes), Ray Bradbury. 293 páginas. Tradução de Jorge Luiz Calife. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.


Entre os principais livros de Ray Bradbury (1920-2012) Something Wicked this Way Comes foi o mais tardio a ser publicado no Brasil. E o mestre nos insere mais uma vez em uma pequena cidade do interior americano neste seu romance, publicado originalmente no já distante ano de 1962.
Romances, por sinal, são minoria na obra deste contista por excelência. Além deste escreveu Fahrenheit 451, um libelo a favor da liberdade e da civilização, publicado em 1953 – um livro, aliás, cada vez mais valorizado. Aqui no Brasil, desde 2017, inspira o nome de uma ótima revista de resenhas, a 451; nos EUA recebe em 2018 uma nova adaptação audiovisual, numa minissérie da HBO.
Alguém pode lembrar-se do celebrado As Crônicas Marcianas (1950), mas em verdade este livro é o que se costuma chamar de fix-up – um romance com pequenas histórias interligadas – e não propriamente uma única história longa, como o caso deste Algo Sinistro Vem por Aí, uma de suas obras mais longas – pelo menos no fantástico.
Esta história tem ecos diretos de sua obra-prima O País de Outubro (1955), uma das mais belas coletâneas já escritas, pois também acontece em um certo outubro. Bradbury começa o livro situando este mês em relação aos outros porque, para ele, seria tão especial e diferente, que poderia ser interpretado à luz do fantástico. As aulas já recomeçaram há um mês, já deu tempo dos jovens se reencontrarem e se acostumarem com a situação, estamos em pleno outono no hemisfério norte, e o desfecho promete uma inesquecível noite de Halloween.
Nesta cidadezinha não identificada, tão igual a centenas pelo interior profundo dos Estados Unidos, mas que poderia ser em qualquer país, o tal Halloween chegou antes no ano em questão. É a súbita chegada de um parque de diversões. Especialmente na vida de dois garotos, Will Halloway e James Nightshade, que ficam imediatamente fascinados. Verão pouco depois que a vida deles e de outros habitantes nunca mais será a mesma.
Não tarda para que eles adentrem ao parque e tomem contato com situações muito além de uma simples diversão para uma cidadezinha sem graça do interior. Coisas insólitas acontecem, primeiro com pessoas próximas a eles, como a professora Foley e o vendedor de para-raios. Mas sobretudo depois da experiência do carrossel, ao verem um homem girar para trás e rejuvenescer, eles estão como que tomados por um outro mundo, como num caminho sem volta.
Não é um parque normal, se é que algum é, mas possui poderes e modifica as pessoas, realizando, de alguma forma, seus desejos inconfessáveis. Os artistas e seres bizarros do parque disso se aproveitam para atrair, seduzir e, finalmente, capturar aqueles mais curiosos ou sensíveis às suas tentações.
O homem ilustrado – que já havia protagonizado um belo romance fix-up, Uma Sombra Passou por Aqui (1951) –, retorna neste livro como o mestre de cerimônias do parque, também chamado de Senhor Dark. Suas inúmeras ilustrações móveis pelo corpo fascinam a todos e ele como que hipnotiza os que dele se aproximam. Há ainda o Esqueleto, a Bruxa, o Anão, e o Senhor Cooger, que depois de ir para frente no carrossel quase morre de tão velho e numa sequencia fantástica – presenciada pelos garotos –, é ressuscitado em uma cadeira elétrica.
O romance é dividido em três partes: chegadas, buscas e partidas. A primeira fala basicamente do parque de diversão e o que desperta em alguns dos personagens. Desta forma, ele não é apresentado em termos narrativos, com suas atrações e personagens numa sequencia linear. Estes surgem por meio da interação com os habitantes da cidade, o que torna o relato mais intimista e particularizado, isto é, a partir do sentimento e ponto de vista de cada um que interage com, por exemplo, a sala dos espelhos, o carrossel, a bruxa ou o temível homem ilustrado.
As “Buscas” da segunda parte são realizadas pelos seres, que saem do parque pelas altas horas da noite, em perseguição aos dois garotos. É que eles perceberam o que este parque de fato representa, muito mais do que uma simples e inocente diversão. Os seres querem as pessoas, recrutá-las como suas possíveis novas atrações, seduzindo-as com os poderes que oferece, como o mais irresistível deles, a fonte da juventude.
Will e Jim contam com a ajuda de Charles, o pai de Will, um solitário zelador da biblioteca pública da cidade. Pesquisando nos jornais antigos eles descobrem que o parque já esteve outras vezes por lá, e que retorna em média a cada 50 ou 60 anos. Quase depois de uma geração inteira de vida da própria cidade. Com a memória coletiva esmaecida o parque retorna, captura alguns poucos dos seus habitantes, mantém para os demais a fachada de um parque de diversões como os outros e parte para outras paragens da mesma forma que chegou neste, para depois de anos retornar ao mesmo local.
Charles, Will e Jim se defrontam com os seres da noite, tanto no interior da biblioteca, nas ruas escuras da cidade e, principalmente, no interior do parque para onde são fatalmente levados. Em “Partidas” temos uma viagem de autodescoberta sobre os valores importantes da vida: humildade, desprendimento, solidariedade, confiança e, sobretudo, alegria. Pois como os três descobrem, a única arma de que dispõe é a alegria, é o bem-estar, pois o Senhor Dark e seus seguidores são fortes e quase imortais porque se alimentam da inveja, do egoísmo, da vaidade e da maldade humana.
É uma história rica em significados que, por si mesma, já evoca imagens fortes no imaginário das pessoas. A atração por um parque de diversão – ou de um circo – é como uma abertura para que entremos em um mundo de fantasia, de realização de sonhos e anseios impossíveis de se alcançar na vida cotidiana, tão modorrenta e cheia de responsabilidades.
A escolha de uma dupla de garotos de 14 anos é oportuna, ainda mais por eles estarem na adolescência, aquela fase da vida onde somos invadidos por várias dúvidas, curiosidades, angústias e possibilidades. Remete à ideia de que a iminência da vida adulta é cheia de riscos e de que é hora de caminhar sozinho. Também por aí se pode interpretar que a chegada de uma atração estranha a uma cidade pequena e de hábitos previsíveis, representa um risco de desestruturação da ordem.
Por este aspecto, também o ato do tal parque ser do mal poderia ser interpretado de uma forma conservadora, no sentido de que não devemos ir muito longe em nossas fantasias, porque elas nos tiram do eixo e nos levam para caminhos errados ou que não mais controlamos. Dizendo de outra forma, tornar-se adulto ou ir embora com o parque. Mas com Bradbury tal viés não se dá, porque os próprios seres de outono são carentes, solitários e contraditórios. Pois se alimentam de nossas fraquezas e isso é o que está subjacente na obra: a valorização da amizade, da confiança e, principalmente, o sentimento de alegria. Para muito além de regras e códigos do que é socialmente visto como “certo”.
O posfácio é interessante porque Bradbury revela a razão de dedicar o livro ao ator e dançarino Gene Kelly (1912-1996). É que o autor escreveu um roteiro para Kelly dirigir. Mas este não encontrou nenhum produtor que se interessasse, fazendo com que Bradbury transformasse o roteiro em um romance. Posteriormente, em 1983, foi produzido o longa-metragem, dirigido por Jack Clayton (1921-1995).
 Embora Algo Sinistro Vem por Aí tenha como protagonistas uma dupla de garotos e o pai de um deles conserve um espírito jovial, é um romance para um público adulto. Pode ser classificado como um dark fantasy (ou fantasia sombria, se preferir), com fortes elementos sobrenaturais. E narrada por um escritor tão naturalmente talentoso, que pode agradar a qualquer tipo de leitor. Seja o aficcionado pelo gênero, ou pelo autor, ou simplesmente por uma narrativa bem escrita e bem contada.

Marcello Simão Branco