sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

A cidade invisível, José Ronaldo Viega Alves

A cidade invisível, José Ronaldo Viega Alves. 58 páginas. Editora Opção2, Porto Alegre, 2006.

A cidade invisível é uma coletânea de crônicas inspiradas na história, nas paisagens e nos personagens da cidade de Sant´Ana do Livramento, onde Viega Alves reside desde o nascimento. Crônicas são peças raras na produção de ficção fantástica brasileira e é surpreendente a quantidade de boas ideias que o autor encontra em seus devaneios, muitas delas perfeitamente funcionais em qualquer outra cidade do Brasil ou do mundo. São 30 textos, todos entre 50 e 250 palavras, cada um discorrendo sobre um aspecto da cidade e do valor que imprimiu no imaginário do autor.
Algumas dessas crônicas também tratam do fascínio que Viega Alves nutre pelo cinema, seja pelos filmes como pelas salas exibidoras e as pessoas por detrás delas, tanto das películas quanto as que trabalham no cinema.
A edição artesanal é simples, mas revela muito carinho por parte do editor.
Um trabalho necessário num ambiente que, ao optar pela prosa mais convencional da pulp age, ignora formatos literários igualmente legítimos, como a poesia e a crônica que podem ser vistas aqui.
 Cesar Silva

Natureza móbile, José Ronaldo Viega Alves

Natureza móbile, José Ronaldo Viega Alves. 54 páginas. Ilustrações de José Ronaldo e Arthur Filho. Editora Opção 2, Porto Alegre, 2006.

Natureza móbile é uma coletânea poética de José Ronaldo Viega Alves, publicada em 2006 pela editora portoalegrense Opção 2, num acabamento artesanal simples e intimista.
Traz 28 poemas curtos, construções concretistas e haikais. Este formato já garante, por si, uma variação importante aos trabalhos de ficção fantástica publicados no Brasil, em que predomina a prosa. Mas não é apenas o aspecto formal que destaca Viega Alves, mas a sutileza que ele demonstra ao observar os detalhes do cotidiano à luz do maravilhamento próprio de quem aprendeu a se emocionar com as batalhas espaciais das histórias de ficção científica.
As poesias não são todas classificáveis como fantásticas, mas o conceito que as sustenta é muito identificado com aquele que se percebe nas histórias de fc&f. Como, por exemplo, neste pequeno poema chamado “Viajantes no tempo”: Quantos desses seres humanos / Com quem cruzamos / nas ruas diariamente / vivem no presente? Ou nesta frase, retirada de “O livro das 1001 perguntas”: Máquina do tempo enferruja?
Assim, de surpresa em surpresa, Viega Alves nos presenta em Natueza móbile sua visão de um mundo que mostra o maravilhoso no cotidiano.
O volume se une a outros títulos já publicados do autor, formando um mosaico multicolorido de impressões emocionantes de se contemplar.
Cesar Silva

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O 3o. Planeta, Levy Menezes

O 3º Planeta, Levy Menezes. 124 páginas. Prefácio de Antonio Olinto. Capa de Juarez Paraiso e ilustrações internas de Levy Menezes. Edições GRD – Coleção Ficção Científica GRD, n. 18, Rio de Janeiro, GB. Lançamento original em 1965.

O 3º. Planeta foi o antepenúltimo livro lançado pela clássica coleção do editor Gumercindo Rocha Dorea e o sexto e último de um autor exclusivamente brasileiro. O niteroiense Levy Menezes (1922-1991), um conhecido artista plástico e arquiteto, foi apresentado a Dorea por ninguém menos do que Antonio Olinto, escritor e, sobretudo, crítico literário de muito prestígio na época e que mais tarde seria imortalizado na Academia Brasileira de Letras. Se a indicação foi de peso, a responsabilidade sobre a obra também seria equivalente. Foi nutrindo esta expectativa que comecei a leitura desta coletânea de onze contos.
Se a maioria das coletâneas costuma trazer o título de uma das histórias para nomear o livro, o que se nota é que este não é o caso do livro de Menezes. A proposta não muito comum é que temos em mãos uma coletânea temática. Sim, porque os contos fazem referência a situações dramáticas do passado ou futuro da humanidade e do planeta Terra. Este diferencial torna a obra de saída interessante.
O livro ecoa os sentimentos e assuntos candentes dos anos 1960, na chave da ficção científica pura, isto é, com tons assumidamente legados da Golden Age, embora com uma reflexão crítica e humanista que podemos caracterizar como do autor e de uma tendência semelhante seguida por outros autores brasileiros que praticaram FC na época, como André Carneiro, Dinah Silveira de Queiroz e Rubens Teixeira Scavone, entre outros. A transformação da sociedade agrária exportadora em complexos urbano-industriais recebe uma visão desencantada, pouco entusiasmada e mesmo desconfiada, tanto quanto à eficácia dos avanços, como de sua extensão para a maior parte da sociedade.
Em alguns contos visitantes extraterrestres sondam a Terra e não são bem-sucedidos em seu contato com os terráqueos, que são ou caipiras do interior do Brasil, como no divertido “Ukk”, ou no passado muito distante, com homens que vivem em tribos e cavernas, mas que nutrem uma dureza crua que ameaça a sofisticação tecnológica de seres fisicamente frágeis do espaço, como na pungente narrativa de “Ugulú”. Estes dois contos, inclusive, estão entre os melhores do livro.
Por outro lado, Menezes assume um caráter crítico sobre a responsabilidade humana não só a respeito dos recursos naturais da Terra, como de outros mundos, como os casos de “Floralis” e “Pax Circense”, histórias de predação da vida nativa em respectivamente Vênus e Marte. Nesse aspecto, Menezes demonstra uma preocupação ambiental precoce dentro do panorama brasileiro da FC, já nos anos 1960. E com uma sensibilidade crítica aguda.
A conquista espacial estava na ordem do dia e não poderia faltar uma história sobre a chegada à Lua, como “Projeto ´Olho Lunar´”, em que uma equipe de cientistas instala um supertelescópio no satélite natural da Terra mas em sua primeira missão tem de desviá-lo para objetivos militares, dentro da lógica da Guerra Fria. Os cientistas rebelam-se e ganham apoio da opinião pública internacional, mudando mesmo o curso da disputa política. Narrado com vigor, talvez um exercício idealista, mas obviamente ingênuo e implausível.
Experiências científicas em seres humanos, como em “O Estranho Caso do Dr. Lebenthal” e no relacionamento entre homens e máquinas, mostrado na boa noveleta “Terra Prometida” dão um outro viés de reflexão sobre a condição humana em seu planeta natal. O primeiro, eivado de um humor que não se leva a sério, os humanos passam a ter uma cauda, com todas as consequências sociais e fisiológicas imagináveis. E em “Terra Prometida”, uma civilização de robôs ovóides terraformiza a Terra para torná-la totalmente metalizada, até que um grupo de androides se rebela e parte em busca de seus antepassados, chamados de “divinos”, os humanos que vivem em Marte depois da Terra ter se tornado inútil devido a um holocausto nuclear. Com mais desenvolvimento poderia render um bom romance.
Este volume contém ainda aquele que pode ser considerado o melhor conto de Levy Menezes, “O Último Artilheiro”. Também no contexto de fim de mundo, um solitário sobrevivente de uma praga radioativa acha um canhão poderoso junto a uma casa abandonada. Angustiado e só, ironicamente ele aprende a armar e atirar com o artefato, como se quisesse devolver ao mundo insano a violência dirigida contra ele e seus semelhantes que pereceram. Narrada em contagem regressiva e com sarcasmo e amargura, não há esperança para o sobrevivente e para a humanidade como um todo. Este conto foi selecionado por Roberto de Sousa Causo na sua celebrada antologia Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica (Devir, 2007), uma importante referência para o gênero no país.
Como em todo livro de contos há certa irregularidade na qualidade, mas no conjunto temos em mãos um livro que agrada e mantém alguma atualidade em temas que são atemporais, como o destino do planeta e da humanidade que o habita. Com relação à prosa, por vezes é meio truncada, endurecida quanto à construção de frases e com um encadeamento confuso de situações. Por outras vezes demonstra leveza e despojamento, principalmente quando insere humor e certo coloquialismo provincial, diria mesmo carioca.
Dentro do contexto dos anos 1960 e da “Geração GRD”, Levy Menezes tem uma voz própria e mereceria ser mais lido, conhecido e debatido. É certo que talvez seja prematuro analisar o autor por um único livro, mas ele demonstra ser um autor interessante, criativo quanto às ideias – o livro é bem diversificado a despeito de partir de uma premissa comum –, e criticamente especulativo com relação ao comportamento do homo sapiens, sempre girando em torno do conflito entre atitudes egoístas e dilemas morais.

– Marcello Simão Branco

The Man and the Monster / El Hombre y el Monstruo (México, 1959, PB)


Entre o final da década de 1950 e meados da seguinte, o cinema de horror gótico mundial recebeu a significativa e valiosa contribuição de muitos filmes mexicanos produzidos e estrelados por Abel Salazar (1917 / 1995), como “O Morcego” (The Vampire / El Vampiro, 1957), a sequência “O Ataúde do Vampiro” (The Vampire´s Coffin / El Ataúd del Vampiro, 1958), “Black Pit of Dr. M” (Misterios de Ultratumba, 1959), “The Brainiac” (El Barón del Terror, 1962), “The Living Head” (La Cabeza Viviente, 1963) e “A Maldição da Chorona” (The Curse of the Crying Woman / La Maldicion de la Llorona, 1963), entre outros.
Em “The Man and the Monster” (El Hombre y el Monstruo), uma produção em preto e branco dirigida por Rafael Baledón a partir de roteiro de Alfredo Salazar, temos a história sinistra de um pianista, Samuel Magno (Enrique Rambal), que vive na pequena cidade mexicana de San José. Ele fez um pacto com o diabo para se tornar o melhor músico do mundo, satisfazendo sua ambição paranoica e eliminando a frustração de ser considerado sempre inferior em relação à rival, a pianista Alejandra (Martha Roth). Porém, como pagamento da dívida eterna, sempre que ele toca ao piano uma determinada partitura sobrenatural, se transforma fisicamente num monstro deformado e assassino violento, voltando ao normal apenas com a intervenção da mãe severa e rude, Cornelia (Ofelia Guilmáin).
Transtornado pela maldição que carrega, o pianista frustrado enfrenta uma terrível luta interna para não ceder à tentação de tocar o instrumento, enquanto exerce a função de professor para outra jovem pianista, Laura (também interpretada por Martha Roth). Para complicar a situação, o jornalista Ricardo Souto (Abel Salazar) surge para fazer uma reportagem sobre a moça como promessa de sucesso, e descobre o mistério que envolve a ocorrência de assassinatos brutais e o segredo do pianista amaldiçoado, apesar das dificuldades em convencer a polícia local sobre a verdade, através do oficial encarregado das investigações (José Chávez).   
A caracterização do monstro é bem bagaceira, típica do cinema de baixo orçamento daquele período mágico do cinema fantástico. Mas, a diversão está garantida, entre outras coisas, justamente por esse trabalho tosco de maquiagem, onde o rosto e mãos deformados do pianista após a transformação lembram um lobisomem selvagem à procura de vítimas. Outros fatores que merecem destaque são a constante atmosfera de horror gótico num casarão sombrio e elementos do roteiro que nos remetem a uma mistura de “Fausto” com “O Médico e o Monstro”. Em “Faust” (1926), do alemão F. W. Murnau, temos a referência com oo acordo do músico com o diabo com consequências trágicas, e na clássica história “Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, de Robert Louis Stevenson, que teve várias versões para o cinema como as de 1932 e 1941, temos a transformação do protagonista em monstro sempre após tocar uma partitura específica amaldiçoada.
(Juvenatrix – 25/01/16)

sábado, 23 de janeiro de 2016

A Bolha Assassina (The Blob, EUA, 1988)


Nota do Autor: Esse texto foi publicado originalmente no fanzine “Megalon” # 3, em 1989, com o título “A Volta da Bolha”. E agora foi levemente revisado recebendo o nome “A Bolha Assassina”.

Em 1958, o cineasta Irwin S. Yeaworth dirigiu o filme “A Bolha”, um pequeno clássico de ficção científica e horror que acabou se tornando um “cult movie”. Esse antigo filme da “Paramount” foi produzido por Jack H. Harris e trazia no elenco Steve McQueen (em seu primeiro grande papel), Anneta Corseaut e Earl Rowe.
Trinta anos depois, Chuck Russell (que estreou na direção em 1987 com o filme “A Nightmare on Elm Street 3: The Dream Warriors” ou “A Hora do Pesadelo 3: Os Guerreiros do Sonho”) resolveu fazer uma refilmagem da história original. Ele foi apoiado pelo mesmo produtor da primeira versão, Jack H. Harris (que possuía os direitos do filme) e para a satisfação dos apreciadores de Horror dos tempos mais modernos, temos essa nova versão bem mais violenta e sangrenta, sustentada por excelentes efeitos especiais.
A propósito, muitos cineastas já usaram essa fórmula em outras refilmagens de clássicos dos anos 50. Citando dois exemplos, temos a recente versão do filme “A Mosca da Cabeça Branca” (The Fly, Fox, EUA, 1958), que trazia no elenco David Hedison, o grande Vincent Price e Patricia Owens. Esse filme de Kurt Neumann mostrava as experiências de um cientista com a desintegração da matéria. O eficiente David Cronenberg (de “Scanners” e “Videodrome”) refilmou esse clássico em 1986, com Jeff Goldblum e Geena Davis, utilizando poderosos efeitos especiais, que tornaram o filme bem mais “podre” e assustador. Outro exemplo é o clássico “O Monstro do Ártico” (The Thing, RKO, EUA, 1951), dirigido por Christian Nyby e estrelado por Robert Cornthwaite, Kenneth Tobey e Margaret Sheridan. Um monstro alienígena que é encontrado congelado no Ártico, desperta e ataca uma expedição de pesquisadores. Em 1982, John Carpenter (de “Halloween” e “Starman”) dirigiu uma nova versão com Kurt Russell e T. K. Carter, utilizando também mais violência e efeitos especiais de primeira qualidade.
Voltando à refilmagem de “A Bolha”, que recebeu agora o nome de “ A Bolha Assassina”, podemos dizer que é um dos bons e significativos filmes produzidos nos anos 80, com uma considerável dose de cenas de violência e sustos. Com um orçamento de US$ 19 milhões (mais da metade gasto só com os efeitos especiais), o filme não foi bem recebido pela crítica brasileira, porém fez grande sucesso entre o público. O competente diretor Chuck Russell (que iniciou sua carreira produzindo o filme “Back to School” e co-escrevendo a ótima FC “Dreamscape”), contou com a ajuda de Lyle Conway na criação dos efeitos da bolha e de Tony Gardner no comando dos outros efeitos especiais.
Na pequena cidade fictícia de Arborville, a pacata população é atacada por um monstro gelatinoso vindo do espaço através de um meteorito. Inicialmente de pequeno porte, a bolha aumentava seu volume progressivamente ao dissolver e engolir as pessoas que entravam em seu caminho.
A nova bolha está bem mais dinâmica que a sua antecessora original, pois podia criar tentáculos quando quisesse, ajudando muito seus ataques mortíferos. Mais tarde descobriu-se que a gosma viva era fruto de uma fracassada experiência para a guerra bacteriológica e os cientistas responsáveis isolaram a cidade para tentar capturar a criatura com vida. Enquanto muitas mortes violentas ocorrem, um casal, Kevin Dillon (de “Platoon”) e Shawnee Smith, tentavam praticamente sozinhos salvar a cidade.
Entre os destaques, temos as cenas em que um funcionário de uma lanchonete entra literalmente por um cano e para o final interessante com o fanático reverendo Meeker (Del Close, que aliás é o único ator que já participou de outro filme da bolha, a fraca sequência “Son of Blob”, de Larry Hagman, filmada em 1972 e mais voltada para o humor).
Enfim, “A Bolha Assassina” é uma refilmagem interessante, apresentando um roteiro com muita violência explícita, sangue em profusão e cenas assustadoras, mas ainda assim não chega a superar o “charme” do clássico original, que foi produzido com baixo orçamento e é um dos mais lembrados exemplos do cinema fantástico da década de 50 do século passado. (Juvenatrix - 1989)
  
A Bolha Assassina (The Blob, Estados Unidos, 1988). Tri-Star Pictures. Duração: 92 minutos. Direção de Chuck Russell. Roteiro de Chuck Russell e Frank Darabont. Fotografia de Mark Irwin. Música de Michael Hoenig. Edição de Terry Stokes e Tod Feuerman. Efeitos Especiais de Tony Gardner. Efeitos da Criatura de Lyle Conway. Efeitos Visuais de “Dream Quest Images” (supervisão de Hoyt Yeatman). Produção Executiva de Andre Blay. Linha de Produção de Rupert Harvey. Produção de Jack H. Harris e Elliott Kastner. Elenco: Kevin Dillon (Brian Flagg), Shawnee Smith (Meg Penny), Donovan Leitch (Paul Taylor), Joe Seneca (Dr. Meddows), Paul McCrane (Bill Briggs), Del Close (Reverend Meeker), Jeffrey De Munn, Candy Clark, Sharon Spelman, Beau Billingslea, Rick Goldin, Art La Fleur.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A mão que cria, Octávio Aragão

A mão que cria, Octávio Aragão. 160 páginas. Editora Mercuryo, coleção Unicórnio Azul, São Paulo, 2006.

A mão que cria é o romance de estreia do escritor carioca Octávio Aragão, até então conhecido no ambiente restrito do fandom brasileiro por fundar e dirigir o projeto multimídia Intempol, um universo compartilhado por vários autores. Antes de A mão que cria, Aragão publicou cerca de meia dúzia de contos, de bons a muito bons, em fanzines e antologias. Quem acompanhou sua trajetória, recebeu o romance com uma expectativa positiva. Finalmente, uma editora de porte apresentava um livro inédito assumidamente de fc&f de autor brasileiro. Isso porque a editora Mercuryo, que já teve em seu catálogo best-sellers como a série Operação cavalo de Troia, de J. J. Benitez, já havia flertado com a literatura fantástica quando publicou coleções extensas de novelizações de X- Files e Star trek, além da breve coleção de banca Conan: Espada e magia, com contos de Robert E. Howard, L. Sprague de Camp e Lyn Carter.
A mão que cria é arrojado na temática – não muito habitual na literatura brasileira – conhecida como ficção alternativa. Esse tipo de história constrói seus enredos utilizando personagens de outros autores, geralmente muito conhecidos e, preferencialmente, em domínio público. Muitos escritores importantes da fc&f internacional já usaram esse expediente, entre os quais o americano Philip José Farmer em The other log of Phileas Fogg, no qual reconta A volta ao mundo em 80 dias, de Júlio Verne, e o britânico Brian Aldiss em Frankenstein unbound, uma espécie de continuação delirante ao clássico de Mary Shelley.
O prefácio, assinado por Gerson Lodi-Ribeiro, conta rapidamente a história da ficção alternativa e sugere que este romance de Aragão seria o precursor do gênero no país. Passou perto. Alguns anos antes, mais exatamente em 1995, José J. Veiga e Jô Soares apropriaram-se do Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle em seus respectivos romances O relógio Belisário e O xangô de Baker Street. Contudo, A mão que cria não tem a mesma proposta daqueles autores. Enquanto Veiga e Soares tinham em mente a produção de uma obra original, com um toque sutil de ficção alternativa, Aragão mergulhou completamente na apropriação de personagens alheios: praticamente não há um único personagem original em toda a trama.
Em A mão que cria, o panorama mundial, especialmente o europeu, foi alterado para abrigar diversos personagens reais e literários emprestados de Júlio Verne e H. G. Wells. O próprio escritor francês torna-se ainda mais importante na medida em que, nos primórdios do século XX, é eleito presidente da França. Usando sua influência, Verne recruta todos os cientistas malucos que seu país pode pagar e lá instala o centro do mundo. O exercício de reconstrução histórica é minucioso e exaustivo, sendo o grande mérito do autor no trabalho.
Nesse ambiente, enfrentam-se dois antagonistas. Um deles, chamado Ariano, é uma versão livre do Caveira Vermelha, vilão das histórias em quadrinhos do Capitão América. Tão livre, aliás, que por muito tempo tive a impressão de que se tratava do monstro de Frankenstein. O outro é Lours, uma espécie de humano híbrido com golfinho, também inspirado em uma personagem das histórias em quadrinhos, possivelmente Aquaman ou Namor.
Gigantes entre os homens, Ariano e Lours competem pela liderança do mundo, apoiados por novas espécies inteligentes sobre a Terra: Ariano encontrou no meteoro caído em Tunguska em 1908, o elemento que precisava para criar sua própria raça de seguidores, os desmortos (inspirados nos zumbis do filme A noite dos mortos-vivos de George Romero), enquanto Lours comanda toda uma população de híbridos alterados geneticamente, como ele mesmo, a partir dos estudos de um certo Dr. Moreau (emprestado de A ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells).
O conflito entre Ariano e Lours inicia-se a partir de um triângulo amoroso apenas sugerido na trama, desdobra-se ao longo do século 20, atravessando duas guerras mundiais (ligeiramente diferentes por conta da presença das tecnologias imaginárias) e culminando num confronto definitivo nos dias atuais. O romance é tão repleto de citações e homenagens que o autor decidiu inserir um apêndice relacionando boa parte delas.
O foco varia continuamente, sem fixar uma personagem condutora. As duas personagens principais cumprem apenas o papel de antagonistas uma da outra. Inumanas e sem qualidades morais, o leitor não consegue identificar-se com qualquer delas. Algumas personagens coadjuvantes demonstram empatia, mas surgem apenas para serem destroçadas poucas páginas adiante.
A narrativa usa períodos entrelaçados e sobrepostos, saltando do passado para o presente, depois para um passado ainda mais distante, para em seguida voltar tudo de novo, embaralhando a percepção do leitor, e parece ter confundindo também a da editora, que comprometeu o resultado final com gralhas de diagramação, revisão e continuidade.
Ainda que não seja de fato um romance longo, seu final parece chegar rápido demais e sem um grande clímax. O autor até reservou uma boa cena para ele, mas a sequência ininterrupta de ação intensa ao longo de todo o romance nivelou a narrativa num patamar tão elevado que não deixou margem para tal.*
Octavio Aragão é um contista talentoso e demonstrou isso mais de uma vez, porém, neste trabalho, uma narrativa convencional enfatizaria melhor o estranhamento e o vigor narrativo que A mão que cria inegavelmente tem. Até porque o romance, ainda que ágil e empolgante, já exige do leitor uma boa dose de cultura pop internacional e de conhecimento das raízes da literatura de fc&f, sem o que não percebe as inúmeras citações e homenagens que o autor plantou.
Contudo, penso que entendi a ideia geral: que é muito bom que o nosso mundo não tenha seguido o caminho que Octávio Aragão imaginou.
Cesar Silva

*Aragão tem anunciado nas redes sociais que está finalizando uma sequência para A mão que cria, cujo título seria A mão que pune, ainda sem previsão de publicação.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Tropas Estelares (Starship Troopers, EUA, 1997)


Escrito em Fevereiro de 2004 e publicado originalmente na edição 83 do fanzine “Juvenatrix”. 
Revisado em 27/01/2006 e 19/01/2016 

“No futuro ainda existirão guerras em nome da honra, da glória e da sobrevivência. Só o inimigo mudará.”

O diretor holandês Paul Verhoeven, conhecido por ótimos trabalhos no cinema fantástico como “Robocop, o Policial do Futuro”, com Peter Weller, “O Vingador do Futuro”, com Arnold Schwarzenegger, e “O Homem Sem Sombra”, com Kevin Bacon, também é o cineasta responsável por um dos mais divertidos filmes de Ficção Científica com elementos de Horror desde o clássico “Alien, o Oitavo Passageiro” (1979), de Ridley Scott. 
Trata-se de “Tropas Estelares” (Starship Troopers, 1997), baseado em livro homônimo de Robert A. Heinlein escrito em 1959, e que pode ser considerado um dos ápices da filmografia de FC com o Horror em seu estado mais puro, associado à violência insana da guerra. Pois não faltam cenas impressionantes de batalhas entre homens e insetos alienígenas, com direito a um enorme volume de sangue jorrado em profusão, com uma infinidade de corpos mutilados, desmembrados, dilacerados e destroçados de uma forma extremamente selvagem, evidenciando a fragilidade dos corpos dos seres humanos, entre carne, sangue, músculos e ossos.    

A história é ambientada num futuro onde a humanidade está em guerra com uma raça alienígena de insetos e as pessoas são classificadas entre civis e cidadãos, não existindo mais a democracia que fracassou através dos cientistas sociais que levaram o caos ao planeta, passando o comando aos militares, chamados de veteranos. Os cidadãos são aqueles que se alistam no exército aceitando a responsabilidade pelo corpo político e defendendo-o com suas próprias vidas. Na televisão são exibidas aquelas mensagens de convocação da população para o alistamento militar, verdadeiros comerciais para o recrutamento de soldados, tipicamente inspirados nas propagandas políticas fascistas, explicando ao civil porque ele deve se unir às Tropas da Federação. A televisão também é um meio de propagação da violência, onde execuções de criminosos na cadeira elétrica são transmitidas ao vivo. 
Enquanto isso, os insetos alienígenas são uma espécie de aracnídeos que evoluíram em milhões de anos chegando a colonizar planetas, com a vantagem de não demonstrarem medo, enfrentando a morte com frieza, e sendo liderados por um cérebro inteligente. Eles possuem uma estrutura hierárquica militar similar aos exércitos humanos e são muito mais fortes fisicamente e extremamente violentos, não fazendo prisioneiros e sendo abatidos apenas quando seus sistemas nervosos são atingidos. Os insetos são oriundos de outra galáxia, do planeta Klendathu, que orbita um sistema estelar duplo cujas forças gravitacionais produzem uma infinidade de meteoros na forma de um cinturão de asteroides. Eles utilizam esses meteoros para atacar a Terra, causando uma guerra definitiva entre as espécies para a sobrevivência apenas de uma das raças.
Dentro desse contexto conturbado, a ação volta-se para o chamado “paraíso latino”, numa escola em Buenos Aires onde estudam o jovem filho de uma família rica, Johnny Rico (Casper Van Dien), sua namorada filha de um militar, a bela Carmen Ibanez (Denise Richards), que pretende ser piloto da frota, e dois amigos em comum do casal, o sensitivo e inteligente Carl Jenkins (Neil Patrick Harris), e a bela Dizzy Flores (Dina Meyer), apaixonada por Johnny e que pretende se alistar na infantaria. Para impressionar a namorada, e contra a vontade de seus pais, Johnny se alista na Infantaria junto com Dizzy, enquanto Carl é recrutado para servir na Inteligência Militar e Carmen vai para a Aeronáutica seguir carreira.   
Os treinamentos têm início. Enquanto Johnny e Dizzy conhecem na Infantaria outros soldados como Ace Levy (Jake Busey), sendo coordenados pelo severo Sargento Zim (Clancy Brown), Carmen encontra na frota um antigo colega de escola e agora instrutor, Zander Barcalow (Patrick Muldoon), além de conhecer a Capitã Deladier (Brenda Strong), onde juntos fazem parte da tripulação da enorme nave estelar “Rodger Young”.
Durante o período de treinamentos, um ataque catastrófico dos insetos alienígenas ao enviarem um asteroide para aniquilar Buenos Aires, é o impulso definitivo para decretar a guerra. Um planejamento estratégico organizado pelo governo militar é então preparado e os humanos realizam uma forte investida contra o planeta dos insetos. Porém, uma vez subestimando a capacidade de defesa dos inimigos aracnídeos, os pelotões de infantaria são terrivelmente massacrados com mais de 300.000 soldados mortos em poucas horas de combate, além de outras perdas significativas da frota com ataques de plasma enviados da superfície do planeta pelos insetos tanque.
Após reorganizar seus exércitos com uma nova estratégia de combate, a humanidade parte para uma nova ofensiva contra os insetos, na tentativa de capturar o líder e cérebro dos inimigos. Através de um bombardeio aéreo seguido de um ataque por terra com a infantaria, liderada pelo Tenente Jean Rasczak (Michael Ironside), numa série de confrontos determinantes para a sobrevivência de apenas uma espécie.

“Pensar por si próprio é a única liberdade que temos.” – Jean Rasczak, professor e Tenente da infantaria 

“Tropas Estelares” apresenta a união de uma temática de ficção científica com fortes elementos de horror e guerra, num conjunto determinante para uma história bastante intensa de ação e violência de um campo de batalha. Com a vantagem dos eventos ocorrerem num universo fictício num confronto dos humanos contra insetos alienígenas, não deixando de lado uma oportuna crítica à “irracionalidade” conhecida da humanidade em idolatrar as armas e a guerra, preferindo resolver seus conflitos sempre com a violência e enaltecendo os vários modelos políticos militares baseados em repressão.
Olhando apenas pelo lado da diversão, objetivo maior do cinema, “Tropas Estelares” garante duas horas do mais puro entretenimento, principalmente pelas cenas de batalha e os corpos dos soldados sendo destroçados pelos insetos. O filme pode ser dividido em duas partes, sendo a primeira bem inferior, voltada para a apresentação dos personagens, na maioria formados por jovens preocupados também com amores adolescentes. Aqui temos os pontos negativos do filme, com o roteiro abusando do uso daqueles clichês descartáveis, enfatizando demais os relacionamentos amorosos de um grupo de jovens divididos entre a escola e o alistamento militar. Nessa primeira metade do filme ocorre também a introdução de alguns elementos importantes da história como a existência dos insetos alienígenas ameaçadores para a sobrevivência da Terra e a consequente guerra com a humanidade. A segunda parte, a partir da metade, é bem melhor ao evidenciar a brutalidade insana da guerra, com as realistas cenas de batalhas aéreas e na superfície, com os brutais massacres tanto de insetos (espalhando seu sangue verde) quanto principalmente de homens (manchando a tela de vermelho), tendo suas carnes frágeis sendo rasgadas por enormes garras afiadas. Nesse momento, “Tropas Estelares” atinge um ritmo frenético de violência digno de se manter na eterna lembrança dos apreciadores do cinema fantástico. 
Duas cenas em especial merecem registro pela intensidade de ação e impecável produção. A primeira é quando o soldado Johnny Rico consegue a proeza de explodir um enorme inseto tanque, ao conseguir depositar em seu interior uma bomba. A outra cena é a eletrizante e incrível carnificina ocorrida no Forte Whiskey, uma estrutura de defesa construída pelos humanos em solo alienígena. Um pequeno grupo de soldados é encurralado numa emboscada por um imenso exército de insetos, que promovem um massacre devastador, numa sequência que rivaliza com a fantástica batalha no “Abismo de Helm” em “O Senhor dos Anéis: As Duas Torres” (2002), que mostra uma imensidão de flechas voando pelos ares e escadas cheias de orcs tentando invadir as estruturas de pedra de uma fortaleza guardada por humanos e elfos. E também com a cena de abertura de “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), que mostra a invasão dos aliados na França, na costa da Normandia durante a Segunda Guerra Mundial, sendo recebidos à bala pelos alemães num massacre perturbador. Essas são três das mais intensas sequências de guerra produzidas pelo cinema, independente de ser ou não uma história de fantasia com personagens fictícios, ou a reprodução de um fato real e sangrento da história da humanidade, com destruidoras armas de fogo matando homens. Analisando exclusivamente como cinema de guerra, esses exemplos caracterizam o que mais próximo seria o horror de um campo de batalha. O inferno existe e é a guerra.
É curioso notar que “Tropas Estelares” também não deixa de explorar a rivalidade existente entre a infantaria e a frota, onde os primeiros são treinados exclusivamente para matar os inimigos ou morrer tentando, e já os pilotos são considerados como uma elite superior pela responsabilidade em conduzir as aeronaves. Uma frase indignada de Johnny Rico reforça bem essa ideia: “A infantaria morre enquanto a frota voa.”          

Com um orçamento em torno de US$ 100 milhões, o filme recebeu uma merecida indicação ao cobiçado prêmio “Oscar” pelos excelentes efeitos especiais, os quais levaram cerca de um ano para serem finalizados, entre a construção das belíssimas naves espaciais (sob a responsabilidade de Scott E. Anderson), e a criação do exército dos insetos alienígenas, dividido entre a infantaria (soldados), tanques (insetos de mais de 30 metros de comprimento), e a aeronáutica (insetos voadores), num precioso trabalho supervisionado por Phil Tippett. Os trabalhos com os efeitos visuais foram obtidos numa combinação de esforços entre as empresas “Sony Image Works”, “Industrial Light and Magic” e “Boss Film”.  
“Tropas Estelares” foi lançado em DVD no Brasil pela “Buena Vista Home Entertainment”, num disco repleto de interessante material extra em aproximadamente 30 minutos, e quase tudo legendado em português. Além de poder conferir o filme, temos acesso a vários bônus como um trailer; testes de duas cenas com os personagens Johnny Rico e Carmen Ibanez; uma apresentação com informações de bastidores da produção; um documentário com a elaboração de algumas cenas com comentários do diretor Paul Verhoeven, como a destruição de uma nave enorme num ataque dos insetos, a sequência onde Rico explode um inseto tanque, e a cena onde um soldado é perseguido e morto violentamente por um inseto; além de cinco cenas excluídas da edição final do filme. Como material extra ainda temos a exibição do filme com comentários em áudio do diretor, porém em inglês sem legendas.   

“O único inseto bom é um inseto morto.”

O diretor Paul Verhoeven nasceu em 1938, e em sua carreira destacam-se outros filmes interessantes como “Conquista Sangrenta” (1985), “Robocop” (1987), “O Vingador do Futuro” (1990), “Instinto Selvagem” (1992) e “O Homem Sem Sombra” (2000). Ele também dirigiu em 1995 “Showgirls”, muito criticado e considerado o seu pior trabalho.
O roteiro de “Tropas Estelares” é de Ed Neumeier, que também foi o autor da história de “Robocop”, inspirando uma franquia com mais três filmes e duas séries de TV. Ele utilizou como base para o filme o livro homônimo do escritor americano Robert A. Heinlein (1907 / 1988), um dos mais cultuados autores de Ficção Científica da história do gênero, figurando num grupo seleto formado ainda por Isaac Asimov e Arthur Clarke, entre outros nomes consagrados. Entre outros trabalhos importantes no cinema, Heinlein escreveu o roteiro do clássico de FC “Destino: Lua” (Destination Moon, 1950), baseado em sua própria novela chamada “Rocketship Galileo”.
O elenco é formado basicamente por jovens pouco conhecidos na época como Casper Van Dien, Denise Richards, Dina Meyer e Jake Busey, sendo liderados pela experiência de Michael Ironside, ator canadense nascido em 1950 e dono de um currículo com mais de 230 filmes, entre eles, “Scanners – Sua Mente Pode Destruir” (1981), de David Cronenberg, “Baile de Formatura 2” (1987), “O Vingador do Futuro”, “Highlander 2” (1991), e “Colheita Maldita 7” (2001), além da série televisiva “V – A Batalha Final” (1984).
Casper Van Dien é americano nascido na Florida em 1968, tendo uma filmografia com mais de 100 participações, e entre elas, no divertido filme “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” (1999), de Tim Burton. Denise Richards nasceu em 1971 no Estado americano de Illinois, e entre seus filmes estão “Garotas Selvagens” (1998), “007 – O Mundo Não é o Bastante” (1999) e o descartável thriller de horror adolescente “O Dia do Terror” (Valentine, 2001). Já Dina Meyer nasceu em 1968 em New York e entre seus filmes estão “Johnny Mnemonic” (1995), “Coração de Dragão” (1996), “D-Tox” e “Star Trek: Nêmesis” (ambos de 2002). E Jake Busey nasceu na California em 1971, sendo filho do veterano ator Gary Busey. Entre seus filmes podemos citar a comédia de horror “Os Espíritos” (1996), de Peter Jackson, a FC “Contato” (1997), e o excepcional thriller “Identidade” (2003). 

“Em todas as épocas os motivos para se lutar sempre foram do próprio Homem, mas no futuro a maior ameaça para a nossa sobrevivência não será o Homem. Agora a juventude do amanhã precisa viajar através das estrelas para encarar um inimigo muito mais devastador do que todos que já foram imaginados.”   

O início de uma franquia

O sucesso de “Tropas Estelares” acabou impulsionando uma franquia com várias produções. Tivemos uma série de animação produzida para a televisão em 1999 (“Roughnecks: The Starship Troopers Chronicles”) e o filme de animação “Tropas Estelares: Invasão” (2012). Além também do lançamento de duas continuações: “Tropas Estelares 2” (Starship Troopers 2: Hero of the Federation, 2004) e “Tropas Estelares 3” (Starship Troopers 3: Marauder, 2008).


“Tropas Estelares 2”
“Como consequência ao cruel ataque aracnídeo à Buenos Aires, forças federais aniquilaram o inimigo em Tango Urilla e capturaram um inseto inteligente no planeta P. Agora, armados com vitória, os heróicos homens e mulheres da infantaria móvel entram na zona de quarentena aracnídea e travam a luta contra o inseto.”
“Tropas Estelares 2” teve direção de Phil Tippett (um dos produtores e supervisor dos efeitos visuais dos insetos no filme original), e novamente roteiro de Edward Neumeier. O elenco foi formado por jovens desconhecidos como Richard Burgi, Colleen Porch, Bill Brown, Ed Quinn e Drew Powell, entre vários outros, exceto pelo veterano Ed Lauter, que interpretou um General. Curiosamente, a atriz Brenda Strong, que fez a Capitã Deladier no original, e que morreu na queda de sua nave num ataque dos insetos, voltou na continuação interpretando outro personagem, a Sargento Dede Rake.
A história do novo filme é ambientada cinco anos após os eventos do primeiro e acrescenta algumas novidades ao já conhecido universo ficcional dos insetos alienígenas, que agora são capazes de introduzir pequenas criaturas dentro dos corpos dos humanos, transformando-os em hospedeiros sob seu controle, com um plano de disseminar a praga no alto escalão militar da Federação. Eles ainda não foram dominados totalmente na guerra com a humanidade e as ações se passam dessa vez num remoto planeta, com mais algumas cenas de batalhas sangrentas.
Um pelotão da infantaria móvel é encurralado pelos insetos e se refugia num posto avançado que estava abandonado após uma batalha. Lá, eles se organizam para a defesa sob a liderança do General Jack Gordon Shepherd (Ed Lauter), enquanto aguardam um possível resgate aéreo. Entre os combatentes sobreviventes temos uma sensitiva, a soldado Lei Sahara (Colleen Porch), que tem visões pessimistas envolvendo os aracnídeos alienígenas. Por sorte, eles encontram no local, preso numa fornalha, o Capitão V. J. Dax (Richard Burgi), que fará o papel do herói do subtítulo original, na tentativa de deter um plano de contra-ataque dos insetos inimigos.
Infinitamente inferior, essa sequência foi produzida com bem menos recursos e sem a participação dos atores do filme original, resultando em menos cenas de batalhas, apesar de ainda ter boas doses de violência com mortes sangrentas. Porém, a história concentra-se quase que na totalidade num ambiente claustrofóbico de um posto avançado cercado pelos insetos, os quais dessa vez possuem um plano inteligente de contra-ataque. Até diverte um pouco se considerarmos como apenas mais um filme comum envolvendo elementos de guerra, horror e ficção científica. Mas, certamente se sustenta exclusivamente por trazer a marca “Tropas Estelares” no título, pois caso contrário estaria relegado ao limbo. Analisando como continuação, não tem como evitar um sentimento de decepção.      


“Tropas Estelares 3”
 “It´s a good day to die. When you know the reasons why. Citizen we fight for what is right.”
Em 2008 tivemos outra sequência, “Tropas Estelares 3”, numa co-produção entre EUA, Alemanha e África do Sul, que dessa vez além da autoria do roteiro, teve também a direção de Edward Neumeier, estreando no ofício. Além do retorno do ator Casper Van Dien do filme original, que depois de ser considerado um herói pela batalha vitoriosa no planeta P, trazendo como recompensa a captura de um cérebro inteligente dos insetos, subiu na hierarquia militar e transformou-se no agora Coronel Johnny Rico.
Ele comanda uma instalação militar na colônia de Roku San e recebe a visita do Delegado Espacial Omar Anoke (Stephen Hogan), que além de político influente na Federação, tem também muita popularidade como cantor de músicas que incitam o alistamento para a guerra contra os aracnídeos do espaço, como exemplificado na transcrição de um trecho no início do parágrafo. Ele está acompanhado do General Dix Hauser (Boris Kodjoe), antigo companheiro de Rico, e da Capitã Lola Beck (Jolene Blalock), que também conheceu Rico após os eventos do primeiro filme.
Depois de um violento confronto com os insetos na colônia de Roku San, onde os humanos foram aniquilados por causa de uma falha na cerca elétrica que os protegia na instalação militar, ocasionando uma invasão em massa dos inimigos, Rico foi injustamente considerado culpado pela derrota e encaminhado para uma prisão. Porém, uma vez resgatado da forca pelo General Hauser, ele é convocado para liderar uma equipe especial de pilhagem (o “Marauder” do subtítulo original), numa missão secreta de resgate no planeta OM-1, dominado pelos insetos, e cujos resultados de extrema importância política poderiam mudar os rumos da guerra, envolvendo a tirania da Almirante Enolo Phid (Amanda Donohoe) e questões de manipulação religiosa.  
Com uma produção bem melhor e história mais desenvolvida, essa parte 3 da franquia representa aquilo que a parte 2 falhou. Ou seja, um filme com a participação de algum personagem importante do original (o agora Coronel Rico), apresentando mais relações com o primeiro filme (tem até a participação do cérebro alienígena capturado), e mais cenas de batalhas sangrentas com naves cruzando o espaço. É verdade que tem várias questões que também incomodaram como o exagero nas propagandas políticas militares, as trapalhadas do jovem General Hauser como soldado, nitidamente mais à vontade como político, a cansativa discussão religiosa no meio do caos da guerra, novamente com objetivos puramente políticos e manipuladores, e a cena final carregada de pieguice. Mas, apesar disso, ainda é um filme que conseguiu contribuir e agregar valores para o universo ficcional de “Tropas Estelares”, algo que a parte 2 não conseguiu, sendo apenas mais um filme comum e cheio de clichês. 
“Eu gosto de insetos fritos pela manhã.” – frase da Tenente Link Manion (Cécile Brecia), antes do massacre em Roku San.


“Tropas Estelares: Invasão”
“Um brinde aos mortos e aos que ainda morrerão.”
Numa co-produção de 2012 entre Estados Unidos e Japão, essa animação dirigida pelo japonês Shinji Aramaki apresenta os três personagens principais do filme original, Johnny Rico, Carmen Ibanez e Carl Jenkins, que se formaram juntos na academia e tiveram destinos diferentes na guerra, construindo cada um ao seu modo carreiras militares de destaque. Enquanto Rico foi para a infantaria e após muitas batalhas e sangue derramado tornou-se General, a bela Ibanez tornou-se piloto da frota e capitã da nave John A. Warden, e o sensitivo Jenkins juntou-se à elite da Federação como Ministro de Guerra Paranormal.
Com ambientação quase que totalmente em naves espaciais, o roteiro dessa animação mostra inicialmente uma missão de resgate da nave Alesia ao Fort Casey, localizado num asteroide, que foi brutalmente atacado pelos insetos. Chegando lá, eles encontram um cenário de destruição e o comandante local Major Henry Varro, também conhecido como “Hero”, está preso por insubordinação, num envolvimento conturbado com um segredo misterioso. O motivo é um projeto clandestino liderado por Carl Jenkins, que se apossou da nave da capitã Ibanez para uma missão secreta. Porém, depois que a comunicação com a nave é perdida, descobriu-se que estava sendo controlada por uma poderosa rainha dos insetos, com rota para a Terra. Formou-se então outra missão de resgate para averiguar o mistério, dessa vez contando também com o apoio do General Rico para impedir um ataque ao nosso planeta.
Não faltam tiroteios e batalhas sangrentas com os insetos, principalmente no interior de naves estelares. A história é bem movimentada, com grandes doses de violência e todos os elementos característicos de guerras espaciais que fizeram “Tropas Estelares” conquistar uma imensa legião de fãs, com soldados truculentos e determinados, homens e mulheres concentrados na luta pela sobrevivência num conflito sangrento contra insetos alienígenas invasores, exaltando a disciplina militar como modelo político. “Tropas Estelares: Invasão” é uma animação que diverte bastante e consegue honrar o filme original.
Curiosamente, vale a pena conferir uma cena rápida após os créditos finais envolvendo um inseto solitário caminhando num túnel de esgoto. (RR)

Tropas Estelares (Starship Troopers, Estados Unidos, 1997). Touchstone / Tristar. Duração: 119 minutos. Direção de Paul Verhoeven. Roteiro de Ed Neumeier, baseado em livro homônimo de Robert A. Heinlein. Produção de Alan Marshall, Jon Davison, Frances Doel, Stacy Lumbrezer, Ed Neumeier e Phil Tippet. Música de Basil Poledouris. Fotografia de Jost Vacano. Edição de Mark Goldblatt e Caroline Ross. Desenho de Produção de Allan Cameron. Elenco: Casper Van Dien (Johnny Rico), Dina Meyer (Dizzy Flores), Denise Richards (Carmen Ibanez), Jake Busey (Ace Levy), Neil Patrick Harris (Carl Jenkins), Patrick Muldoon (Zander Barcalow), Michael Ironside (Tenente Jean Rasczak), Clancy Brown (Sargento Zim), Seth Gillian (Sugar Watkins), Rue McClanahan (Professora de Biologia), Marshall Bell (General Owen), Anthony Ruivivar (Shujumi), Dale Dye (General), Eric Bruskotter (Breckinridge), Matt Levin (Kitten Smith), Blake Lindsley (Katrina McIntire), Brenda Strong (Capitã Deladier), Dean Norris (Major), Christopher Curry (Bill Rico), Lenore Kasdorf (Sra. Rico), Tami-Adrian George, Steven Ford, Ungela Brockman.

(Juvenatrix - 27/01/2006 / 19/01/2016)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

A Caverna (The Cave, EUA / Alemanha / Romênia, 2005)


Escrito originalmente em 02/02/2006.

“Abaixo do céu há o inferno. Abaixo do inferno há a caverna.”

A tagline promocional reproduzida acima é bem simples, porém é inegável que também é bem criativa e que consegue despertar inicialmente no público admirador de cinema fantástico, uma certa atração em conhecer o filme e descobrir como seria essa “caverna”. E depois de alguns adiamentos, entrou em cartaz nos cinemas brasileiros em 27/01/2006 o filme “A Caverna” (The Cave / Prime Evil, EUA / Alemanha / Romênia, 2005), dirigido pelo estreante Bruce Hunt, apresentando novamente uma história (de Michael Steinberg e Tegan West) que procura explorar os efeitos perturbadores da escuridão em ambientes de claustrofobia.

Um grupo de cientistas descobre as ruínas de uma igreja antiga, localizada no alto de uma montanha remota no interior da Romênia. Ao investigarem o local, encontram a entrada para uma imensa caverna aparentemente ainda desconhecida. Uma vez esperando encontrar todo um ecossistema inexplorado, os cientistas convocam uma expedição profissional americana com mergulhadores e especialistas em cavernas para desbravarem as profundezas do gigantesco fosso sombrio.
A equipe é formada por seis pessoas, tendo a liderança de Jack (Cole Hauser), e contando ainda com seu irmão Tyler (Eddie Cibrian), a bela Charlie (Piper Perabo), o experiente Top Buchanan (Morris Chestnut, de “Anaconda 2: A Caçada Pela Orquídea Sangrenta” ), o especialista em informática Strode (Kieran Darcy-Smith), e o convencido Briggs (Rick Ravanello). Eles se juntam com outras três pessoas, os cientistas Dr. Nicolai (Marcel Iures) e Dra. Kathryn (Lena Headey), além do cinegrafista Kim (Daniel Dae Kim). O grupo conta com uma sofisticada aparelhagem tecnológica como auxílio e apoio na exploração da caverna, com equipamentos modernos de comunicação, rastreamento, escalada e mergulho. 
O que todos eles não imaginariam eram as surpresas que encontrariam no interior da caverna, primeiramente agradáveis com a incrível e deslumbrante beleza interior das grutas, e depois perigosas e mortais após a ocorrência de um acidente com explosão, que bloqueou a entrada e obrigou-os a seguir em frente em busca de uma saída antes do término das provisões. Para complicar ainda mais a tensa situação, surge um inesperado grupo de criaturas horrendas e violentas, ocultas pelos cantos e que passam a espreitá-los, apenas aguardando uma oportunidade para se apresentarem e sentir o gosto do sangue humano rasgando a carne com suas garras.

“A Caverna” é um filme acima da média e que tem algum destaque na filmografia de produções similares que mostram um grupo de pessoas investigando um ambiente desconhecido e habitado por monstros ávidos por suas carnes, com um enfoque maior para o incômodo sentimento de claustrofobia de um lugar fechado e ameaçador, e a pressão psicológica causada pelo medo e insegurança provenientes da escuridão. Um grupo de vários filmes semelhantes entre si como “A Relíquia” (The Relic, 97), com uma criatura animalesca perseguindo pessoas na escuridão de um museu com as saídas bloqueadas, ou “Criatura” (Alien Lockdown, 2004), mostrando o confronto entre um monstro alienígena e um grupo de soldados, com intensas perseguições nos corredores escuros de uma base militar isolada, ou ainda o crossover “Alien Vs. Predador” (2004), com um grupo de exploradores humanos descobrindo que estão no meio de uma guerra entre alienígenas hostis, e que acabam tornando-se também a caça de ambos, lutando por suas vidas numa complexa pirâmide subterrânea, só para citar alguns poucos exemplos.
O elenco é bem desconhecido com a maioria dos atores vindos de séries e filmes para a televisão, a não ser por Cole Hauser, visto em outras produções mais importantes como o drama de guerra “A Guerra de Hart”, com Bruce Willis e a FC/Horror “Eclipse Mortal”, com Vin Diesel, mas que por sua vez ainda assim é um ator apenas secundário e limitado. E tem uma cena envolvendo o líder do grupo e “salvador da pátria” Jack, exatamente igual como visto no filme “Reino de Fogo” (Reign of Fire, 2002), num confronto entre o herói Denton Van Zan (Matthew McCounaghey) e um dragão.
Porém, por outro lado, como fatores positivos, vale mencionar que a história prende a atenção do espectador o tempo inteiro, acompanhando a tentativa da expedição de encontrar uma saída do inferno em que se encontravam, muito abaixo da superfície, e ameaçados por monstros predadores. O visual do interior da caverna também é fascinante, com suas galerias imensas e profundas e rios subterrâneos, além da concepção das criaturas, convincentes e assustadoras, que nadam e voam com desenvoltura ameaçadora, a cargo do especialista Patrick Tatopoulos (o mesmo criador dos monstros noturnos carnívoros de “Eclipse Mortal” e as criaturas sombrias de “Habitantes da Escuridão”).
As cenas de confronto entre os seres da escuridão e os invasores de seus domínios também merecem destaque, assim como o desfecho apropriado, apesar da previsibilidade na escolha dos sobreviventes, uma vez que sabemos que vários personagens possuem a função de servirem de comida para as criaturas predadoras. O roteiro teve a preocupação de guardar para o final uma revelação interessante que poderia servir de gancho para uma possível continuação, que não existiu.

(Juvenatrix - 02/02/2006)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

A ira da águia, Humberto Loureiro

A ira da águia, Humberto Loureiro. 350 páginas. Literalis Editora, Porto Alegre, 2006.

A ficção científica brasileira detém, com certo orgulho, alguns temas que lhe são muito caros e recorrentes, entre eles destaca-se o das guerras amazônicas, que trata da invasão da Amazônia brasileira por uma força estrangeira poderosa, com maior frequência vinda dos Estados Unidos da América.
Nós brasileiros, de forma geral, enxergamos a Amazônia como um tipo de reserva estratégica, que deve ficar intocada até que nós mesmos tenham condições técnicas de explorá-la. Afinal, temos para isso os sagrados direitos assegurados pelas leis internacionais. Mas não nos incomodamos muito com os interesses autênticos das populações que lá vivem e, com nossa passividade histórica, obrigamos esses seres humanos a subsistirem pouco melhor que os animais selvagens, vivendo em meio a inúmeras carências de recursos financeiros, sociais e urbanísticos.
Enganamo-nos com os discursos ecológicos românticos de que saberemos conquistar esse inferno verde com mais inteligência do que fizemos com a parte já devidamente devastada do território nacional, que respeitaremos mais e melhor as populações indígenas e caboclas lá instaladas do que qualquer potência estrangeira, demonizadas como forças exclusivamente extrativistas. Mas é claro que não será assim. Sejam americanos, japoneses, alemães ou canadenses, não farão nem pior nem melhor que os brasileiros. Mas o mito existe e, como tal, é argumento ideal para as histórias da antecipação.
Humberto Loureiro, carioca, médico e engenheiro civil, estreou no mercado editorial com A ira da águia, romance ambicioso que conta como a maior força militar do planeta resolveu tomar, na marra, o controle político da Amazônia.
O primeiro capítulo segue à risca as orientações dos autores experientes, pois é a melhor parte de todo o romance. O romance principia em 2016, mas reconta, em retrospectiva, algumas décadas da história brasileira recente. Já com forte presença na Amazônia, especialmente ao longo do Rio Amazonas e seus afluentes, várias organizações particulares e governamentais dos EUA garantem que as empresas norte-americanas lucrem com a exploração ilegal das riquezas da região, mantendo ao lado deles a maioria dos habitantes ribeirinhos através da realização de atividades assistenciais de baixo custo. Quando a Marinha Brasileira retém dois barcos americanos e suas respectivas tripulações, por transporte de madeira ilegalmente extraída, o governo americano aproveita o fato para forçar um confronto político, acusando o Brasil de maus tratos à tripulação detida e exigindo a libertação imediata e incondicional das embarcações. Como o governo brasileiro, alegando soberania, não acata o ultimato, os EUA enviam uma força tarefa para libertar os detidos e assumir o controle em toda a região. Formada por um porta-aviões de última geração e um moderno cruzador de escolta, a força tarefa seria, em tese, mais do que suficiente para resolver a questão. Porém, algo inesperado acontece. Depois de afundar um navio-patrulha brasileiro que a interceptou, a a frota americana desaparece misteriosamente, próximo à foz do Amazonas.
A CIA e todos os demais órgãos de inteligência militar americana não conseguem explicar como desapareceram o poderoso porta-aviões e sua escolta, pois nada pode ser comprovado através das imagens colhidas por satélite. O depoimento do capitão de um submarino nuclear americano que acompanhava em segredo a força tarefa só corrobora a falta de explicações, uma vez que a única embarcação claramente identificada nas proximidades fora uma pequena e mal armada fragata brasileira, que não disparara um único tiro durante o incidente. Aparentemente, as belonaves americanas explodiram expontaneamente.
O governo americano conclui, então, que outro país ajudou o Brasil com algum tipo de submarino moderníssimo e, com esse argumento, passa a pressionar a ONU para intervir na questão, enquanto usa outros subterfúgios para conseguir as informações que certamente estão faltando.
Ao longo das 350 páginas do livro, a CIA vai aos poucos desvendando o mistério, com um agressivo esquema de espionagem apoiado em sequestros e assassinatos de oficiais da marinha brasileira, enquanto o governo americano manobra forças políticas e lobbys internacionais infiltrados no Legislativo brasileiro, de forma a desestabilizar o governo com uma crise política interna. O que eles vão descobrir muito depois é o que o leitor já sabe desde o início do livro: sob as barbas da espionagem americana, a Marinha Brasileira desenvolveu, em segredo, um poderoso indutor de ferrugem por rádio, que pode desintegrar qualquer equipamento metálico em segundos. E que a inexpressiva fragata brasileira utilizou essa arma para vencer o conflito de 2016 e pode usá-la novamente.
A graça da história está na forma como o autor antepõe as estratégias de espionagem americana e de dissimulação da Marinha Brasileira, num jogo de gato e rato, mas um rato que ruge.
Não há personagens que conduzam a trama, que é contada através de flashs das reuniões do alto escalão dos governos americano e brasileiro: presidentes, generais e comandantes militares, ministros, chefes de departamento de inteligência, senadores, deputados etc. No meio disso tudo, há o pequeno drama humano do jovem cientista militar que descobriu o princípio físico com que a arma secreta brasileira funciona, seu relacionamento amoroso conturbado e a violência política que o atinge, mas esse drama recebe pouca atenção do autor.
Após a leitura do romance, fica uma impressão estranha: a de que todas as ações norte-americanas no mundo são movidas por interesses escusos e que toda contraviolência de suas vítimas é justificada. Ainda que, no livro, os líderes brasileiros tenham motivos nobres ao adotar métodos não ortodoxos para atingir seus objetivos, alguns deles são, no mínimo, antiéticos e isso soa como justificativa a certas atitudes de governos brasileiros recentes. O autor chega a defender líderes como Saddan Hussein e Slobodan Milosevich, que teriam sido vítimas da anti-propaganda americana mundial. Melhor seria se Loureiro tivesse evitado uma abordagem tão polarizada, sem meios tons. É um discurso perigoso, que não colabora para com a boa vontade entre os homens.
Afora esse pecado, o livro é interessante e bem redigido. As sequências de ação estão bem descritas, com detalhes nítidos das atitudes dos personagens e dos equipamentos utilizados, e bom domínio dos jargões militar e político. Um detalhe a mais para divertir o leitor são os nomes dos personagens: Donald Keegan, Célio Brandt, César Portela, Henry Flood, Thomas Bennett, Paul Hoover, John Carter, Norton Tavares de Mello, e por aí vai.
 A edição da Literalis é caprichada, com acabamento de muito bom gosto e excelente trabalho de revisão. Vale a pena conferir este romance invulgar, talvez um dos poucos, senão único, exemplo de tecnotriller brasileiro.
Cesar Silva

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Contos Amazônicos, Inglês de Sousa

Contos Amazônicos, Inglês de Sousa. Edição preparada por Sylvia Perlingueiro Paixão. São Paulo: Editora Martins Fontes, coleção Contistas e Cronistas do Brasil, n. 4, 2005, 205 páginas. Lançado originalmente em 1893.

     Já tinha ouvido falar de Inglês de Sousa (1853-1918) das aulas de Literatura Brasileira no agora ensino médio, e lá se vão trinta anos, como um dos expoentes da chamada fase Naturalista. Mas não imaginava que iria lê-lo numa outra perspectiva, a do fantástico e sobrenatural.
Acabei topando com Sousa por causa de seu conto “Acauâ”, publicado na antologia A Palavra é... Mistério, organizada por Ricardo Ramos, pela editora Scipione, em 1988. Neste conto há uma narrativa que inicialmente impressiona pela descrição do medo de um sujeito que se perde na floresta ao tentar voltar para casa à noite sob uma tempestade. Gradativamente, porém, depois de achar um bebê recém-nascido à beira do rio, o fantástico se insere, de modo sinuoso, porém impactante. Para quem conhece as lendas regionais da Amazônia já se intui o possível desdobramento sobrenatural, a partir do canto do pássaro Acauâ, considerado de mau agouro.
“Acauâ” é um dos pontos altos de Contos Amazônicos, coletânea completada por mais oito histórias: “Voluntário”, “A Feiticeira”, “Amor de Maria”, “O Donativo do Capitão Silvestre”, “O Gado do Valha-me-Deus”, “O Baile do Judeu”, “A Quadrilha de Jacó Patachó” e “O Rebelde”.
Como observa Sylvia Perlingueiro Paixão na introdução, a leitura sucessiva das histórias forma um mosaico, como se estivessem interligadas. Contudo, não é possível considerar o livro como um romance fix-up, porque não há um encadeamento formal dos temas e nem repetição de personagens.   O mosaico se dá em outros sentidos, principalmente no equilíbrio entre os problemas sociais e políticos do povo amazônico do final do século XIX e sua íntima conexão imagética com a natureza.
Embora não seja explícita, a veia naturalista da obra se revela na observação, por vezes crítica, da condição marginalizada do índio e do caboclo em face da opressão do branco de origem portuguesa, dono das terras e senhor do destino político da região. Pois nesta condição de desamparo, ao lado da proximidade com a natureza profunda de uma floresta imensa em tamanho e incontrolável em sua fauna, rios e flora, se manifestariam fenômenos inexplicáveis,  sobrenaturais, próprios de um mundo à parte da civilização.
Há de um lado narrativas dramáticas e verossímeis a respeito das penúrias da vida do povo oprimido, quase como se fosse um documento. Cito em especial a noveleta “Voluntário” e a excelente novela “O Rebelde”. A primeira sobre a violência do recrutamento militar compulsório para a Guerra do Paraguai (1865-1870). Os caboclos em meio a uma vida pobre, mas simples e previsível, são surpreendidos com um conflito distante e que nada diz à sua realidade. A segunda gira em torno do levante social da Cabanagem (1835-1840), uma das revoltas sociais de meados do século XIX e das poucas com caráter realmente popular. A história é contada por um advogado que relembra como Paulo da Rocha, um rebelde de outro conflito, o de Pernambuco em 1817, que antecedeu a luta pela emancipação política do Brasil, o salvou de ser assassinado pelos cabanos, já que ele era filho do juiz da cidade, um dos símbolos do autoritarismo dos poderosos sobre o povo simples. Conhecido pela população humilde como “velho de outro mundo”, por causa de sua fama de revolucionário, comportamento arredio aos costumes locais, seu exílio na floresta e postura altiva frente aos poderosos, conduzirá uma narrativa que se insinua como sobrenatural, mas se desenvolve como um comentário objetivo sobre a emergência da cabanagem, que tornou explícita a desigualdade, injustiça e sede de vingança do nativo frente ao que eles mesmos chamavam, de forma pejorativa, de brasileiros. Isso porque representavam o povo português, ou descendente deste, urbano, educado e opressor do caboclo e dos índios.
De outro lado Sousa solta sua imaginação com narrativas fantásticas e sobrenaturais. Casos do já citado “Acauã”, além de “O Baile do Judeu” e o “Gado de Valha-me-Deus”. O ponto central é a situação surpreendente, que pede uma explicação racional (naturalista), mas se rende ao insólito. Como no caso da mudança de feição física e comportamental provocada pelo canto do pássaro; pela aparição da figura do boto que, transformado em homem, seduz e rapta as mulheres, ou ainda pela busca de cabeças de gado em que se ouve os mugidos e observa-se os rastros, mas não há avistamentos. Este último conto é especialmente interessante.
Para a organizadora da coletânea, Inglês de Sousa não se coloca como crítico nas histórias de temática social, e narra as crenças e misticismos do povo da floresta numa tentativa de explicá-los racionalmente, por meio da argumentação racional e da justificativa da ignorância do povo. Por um lado é fato que nas histórias que tratam do contexto social da época os acontecimentos exteriores mostram por si o drama e as injustiças da situação, sem uma análise mais detida sobre as situações. Contudo, creio que o autor usa de um artifício elegante para sim apontar as mazelas sociais e políticas, por meio da narração fluente e pela ação conduzidas por personagens críveis e densos, de onde se extrai a força das histórias.
Já do ponto de vista da crítica ao misticismo do tapuio e do caboclo, resultado de sua condição pré-civilizatória, este naturalismo não se afirma da mesma maneira em todas as histórias. Nas acima citadas, por exemplo, é como se os eventos fantásticos, que surpreendem e aterrorizam tivessem sim um lugar não só no imaginário, mas na realidade dos povos da floresta, embora eles não tivessem como explicar racionalmente os fenômenos. Já em outros contos como “A Feiticeira” e “Amor de Maria”, as crendices são mostradas e confrontadas com o chamado saber objetivo e racional, mostrando como a permanência de crenças e comportamentos sobrenaturais ajudam a explicar em parte a tragédia da vida dos mais simples.
Nesta surpresa agradável que foi descobrir estes Contos Amazônicos, podemos situá-lo entre os melhores que já abordaram a região amazônica na literatura especulativa brasileira, mesmo que algumas histórias não tenham elementos fantásticos ou sobrenaturais. Na verdade há um pequeno conjunto de obras interessantes sobre a região, a começar pelo clássico de ficção científica e aventura A Amazônia Misteriosa, de Gastão Cruls, escrito em 1925. Também podemos lembrar, entre outras, de A Cidade Perdida (1948), de Jerônymo Monteiro, A Ordem do Dia, de Márcio Souza (1983), estas de FC, e uma que se aproxima em termos de gênero aos contos de Sousa, o romance de fantasia sombria, A Mãe do Sonho (1990), de Ivanir Calado. Mais recentemente temos o que podemos chamar de “Trilogia Amazônica” de Roberto de Sousa Causo: Terra Verde (1999), O Par: Uma Novela Amazônica (2005) e Selva Brasil (2010).  Como se vê um bom conjunto de obras, mas em termos contemporâneos há muito a explorar.
Neste contexto Contos Amazônicos é uma coletânea pioneira da literatura brasileira em geral, e especulativa em particular, sobre a seara amazônica, e contribui para isso também a qualidade narrativa do autor. Pois talvez a maior virtude de Inglês de Sousa é sua prosa limpa, objetiva, socialmente crítica, com personagens atuantes e descrições de cenas e imagens bastante competentes. Por tudo isso é um livro que deve ser conhecido tanto pelo leitor de FC&F, como aquele interessado na compreensão mais miúda da realidade brasileira na virada do século XIX para o XX, especialmente da perspectiva da região amazônica, cujos efeitos estão presentes ainda hoje, dado o grau de desigualdade social e carência que ainda ocorre nesta região do país.


– Marcello Simão Branco

domingo, 10 de janeiro de 2016

O Soldado do Futuro (Soldier, EUA / Inglaterra, 1998)


Escrito em Março de 1999 e publicado originalmente na edição 31 do fanzine “Juvenatrix”.

                A Ficção Científica é um gênero fascinante, seja na literatura, quadrinhos ou cinema. E é através dos filmes que a FC torna-se ainda mais impressionante, devido em parte aos fantásticos recursos tecnológicos que o cinema dispõe atualmente.
                Desde as primeiras décadas do século passado, com o mudo Metrópolis (1926), de Fritz Lang, passando pelos nostálgicos clássicos dos anos 50 e 60 como O Dia em que a Terra Parou (51), O Planeta Proibido (56), 2001: Uma Odisséia no Espaço (68) e O Planeta dos Macacos (68), e pelas divertidas produções “B” com os inesquecíveis “monstros de olhos esbugalhados” e a paranóia de invasão alienígena, chegando às décadas de 70 e 80 e o início dos grandes efeitos especiais com Guerra nas Estrelas (77) e Blade Runner (82), e chegando aos anos 90, caracterizado por filmes fracos em roteiros muito previsíveis, mas com muita diversão e entretenimento.
                O Soldado do Futuro (Soldier, 1998), dirigido por Paul W. S. Anderson, responsável também pelo ótimo O Enigma do Horizonte (97), estreou nos cinemas brasileiros em 5 de fevereiro de 1999 e é um típico exemplo da onda de filmes comerciais, com histórias já vistas antes, dessa vez explorando o militarismo num futuro próximo com guerras absurdas, muita violência, mas também com belas imagens e principalmente muita diversão.
                Assim como no também bélico Tropas Estelares (97), de Paul Verhoeven, O Soldado do Futuro mostra basicamente jovens soldados que se preparam para guerras (é curioso como o ser humano não consegue entender que elas são o maior exemplo de sua irracionalidade e quase sempre se mostra o futuro onde persistem as batalhas sangrentas). A diferença é que desta vez o inimigo não é alienígena, como os insetos gigantes da obra de Verhoeven, e sim os seus próprios semelhantes em diferentes guerras ao longo dos anos, dentro do planeta e se estendendo ao espaço sideral.
                O filme mostra um projeto secreto militar onde em 1996, alguns bebês do sexo masculino são escolhidos numa maternidade para participarem de um rígido treinamento de infantaria até completarem os 17 anos de idade, já no ano 2013. Eles tornam-se soldados condicionados exclusivamente para guerrear e enfrentar as mais diversas situações em campos de batalha.
                Utilizando lavagem cerebral durante todo o treinamento, obrigando os escolhidos, enquanto crianças ainda, a presenciarem cenas de pura violência, como a luta mortal entre cachorros e um javali selvagem, e através da eliminação simples dos mais fracos fisicamente, o projeto do Exército tinha por objetivo formar soldados obedientes e isentos de emoções para se obter o máximo de sucesso nos futuros e inúmeros confrontos bélicos na Terra e em outros planetas. E para conseguir isto, utilizava-se de mensagens subliminares, incutindo nas mentes dos soldados a total obediência e disciplina ao Exército.
                Após várias guerras conquistadas, um soldado se sobressai pela sua performance no campo de batalha. Ele é o sargento Todd, interpretado por Kurt Russell, de outros filmes de ficção científica como Fuga de Nova York (81), O Enigma de Outro Mundo (82) e Fuga de Los Angeles (97). Russell lembra muito a truculência de atores como Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger e Dolph Lundgren, num papel onde quase não fala e age como um robô programado para matar. E é interessante o fato como vários atores acabaram se sobressaindo no cinema atual e obtendo sucesso em suas carreiras interpretando personagens quase mudos e “brucutus” como psicopatas, serial killers ou super soldados.
                O projeto militar de treinamento dos soldados teve muito êxito até aparecerem, mais de quarenta anos de guerras depois, uma nova legião de super combatentes, agora criados por manipulação genética do DNA, eliminando os eventuais defeitos e sendo soldados ainda mais fortes e assassinos. O sargento Todd e seus companheiros acabam sendo considerados obsoletos e são substituídos, com o sargento, após uma derrota num confronto com um dos novos soldados (Jason Scott Lee), sendo considerado supostamente morto e jogado num inexpressivo planeta de depósito de lixo (naves, equipamento bélico ultrapassado e sucatas em geral).
                Lá, ele reanima-se e entra em contato com uma comunidade de seres humanos refugiados, que viviam clandestinamente no planeta, após uma queda da nave que os transportava para outro planeta mais saudável que a maltratada Terra.
                Como a nova equipe de soldados do futuro necessitava de exercícios militares, foi escolhido obviamente, o pobre planeta depósito de lixo para eles descarregarem sua artilharia, desprezando o fato da existência de civis inocentes no local. E esta é a oportunidade para o sargento Todd sedento de vingança, combater sozinho uma equipe de soldados fortemente armados, tornando-se um herói e provando ainda sua superioridade perante os seus supostos substitutos artificiais.
                O ator Kurt Russell faz muito bem a sua parte, sempre com um semblante sério e de soldado programado para destruir o inimigo, não pensando ou sentindo nada, ou quase nada, pois acaba confessando suas fraquezas para uma das refugiadas (Connie Nielsen), com um sentimento de medo ao longo da trajetória de sua violenta vida, aliado, é claro, à forte e tão respeitada disciplina e hierarquia militar.
                O Soldado do Futuro é o típico exemplo do cinema de ficção científica atual, onde são privilegiados os efeitos especiais, mesclados com muita ação e violência, em detrimento de melhores roteiros e situações. É um gênero carente de bons filmes ao longo da década de 90, constatado pelas inúmeras refilmagens de antigos clássicos e previsibilidade das produções, excetuando-se poucas obras como Os Dozes Macacos (95), Contato (97), Gattaca (97) e O Show de Truman (98).
                Mas, esse filme cumpre a sua função de entreter o público e é diversão garantida com belas imagens futuristas em uma boa sessão de cinema.

O Soldado do Futuro (Soldier, Estados Unidos / Inglaterra, 1998). Warner Brothers, Morgan Creek, Impact Pictures. Duração: 100 minutos. Direção de Paul Anderson. Roteiro de David Webb Peoples. Fotografia de David Tattersal. Produção de Jerry Weintraub e Jeremy Bolt. Produção Executiva de James G. Robinson e R. J. Louis Susan Ekins. Música de Joel McNeely. Edição de Martin Hunter. Desenho de Produção de David L. Snyder. Com Kurt Russell, Jason Scott Lee, Connie Nielsen, Michael Chiklis, Gary Busey.

(Juvenatrix - 03/1999)

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Hyperfan: Cinco anos de fanfic

Hyperfan: Cinco anos de fanfic, Lucio Luiz, organizador e editor. Ilustrações de J. J. Marreiro, 130 páginas. 2006.

Antologia comemorativa aos cinco anos de publicação do site de internet Hyperfan, que se alinha à prática da fc&f brasileira de publicar antologias temáticas. Um tema um tanto aberto, contudo, pois trata-se de universo compartilhado ainda sem estrutura, que o organizador planejou montar a partir do simples elencamento dos contos selecionados. O Novo Universo Hyperfan, assim chamado, é de inspiração assumidamente vinculada ao cânone dos super-heróis. O organizador/editor confessa, na apresentação do livro, que isso foi feito tão somente porque seria temerário utilizar um universo que tivesse os direitos reservados. Ou seja, apesar de original, o Novo Universo Hyperfan é um pastiche, o que nestes tempos de rede mundial é chamado de fanfic.
Fanfic é a contração do termo fanatic fiction ou, traduzindo para o português, ficção de fã, o tipo de texto realizado por fanáticos em algum personagem ou série de aventuras. Há bibliotecas gigantes disponíveis na internet com fanfics dos apreciadores de Star trek ou Harry Potter, por exemplo.
Dentre todos os temas possíveis, o das histórias em quadrinhos de super-heróis é o que oferece o material de base mais maleável: a falta de parâmetros realistas permite que os autores-fãs façam qualquer coisa sem parecer demasiado absurdo. Mas a maioria dos fanfics de super heróis não arrisca ir além, pois os autores querem justamente repetir os moldes tradicionais de seus personagens favoritos, não subvertê-los. Portanto, a decisão do editor de Hyperfan, ainda que não por esse motivo, foi muito acertada. A obrigação de criar novos personagens deu liberdade aos autores para construírem histórias que nunca seriam contadas com heróis de contornos anglo-americanos, ainda que alguns deles não tenham aproveitado essa chance em sua totalidade.
A antologia é formada por treze contos irradiados a partir de um conto-base, o ponto de partida para a criatividade de cada autor. São, portanto, histórias de "origem", o tipo menos interessante de histórias de super-heróis. Os contos são curtos e não progridem muito além da simples apresentação dos personagens. Ainda assim, alguns trabalhos logram bom resultado e podem render romances curiosos, se continuados.
O conto que propõe ser a espoleta dos eventos narrados nos demais contos é "Energia do vácuo", assinado por Carlos Orsi. O autor é conhecido no meio da fc&f brasileira, presente em várias antologias e com várias coletâneas individuais publicadas. Praticamente uma vinheta, conta apenas como uma energia estranha se esparramou pela Terra depois que um objeto cósmico atingiu o planeta, produzindo um poço estreito e profundo numa ilha perdida. A ilha remete-se a que serve de cenário ao seriado de tv Lost, e o objeto lembra a esfera luminosa do longa de animação Heavy metal: Universo em fantasia. Sua função deveria ser costurar os episódios numa sensação de unidade. Mas a presença do conto na antologia não chega a se justificar, uma vez que nenhum dos contos selecionados importou-se em articular-se a ele. Ficou cada um por si.
"Fã", de Danilo Anastácio, abre a série. Thimothy é um universitário nerd que desconfia das atividades de um de seus professores. Obcecado por super-heróis, veste-se como um e decide abordar o docente de forma direta, mas acaba sendo um tanto indiscreto: como ganhou super-poderes reais, acaba fazendo um grande estrago. Uma divertida brincadeira com a autoimagem dos fãs, sem maiores pretensões.
A seguir, "Sombra", de Marcelo Augusto Galvão. Um suicida fracassado desenvolve uma segunda personalidade que mata e devora partes de seu sócio e de sua namorada quando descobre que eles o traíram. História moralista e sem muita originalidade.
"Romaria e Prece", de J.B. Uchôa, é um dos melhores contos da antologia. Uma prostituta descobre, em pleno expediente, que tem o poder de curar aqueles a quem toca. Seu então cliente, um político importante, ao ver-se curado de uma doença grave, revela o fato à imprensa. Agora todos acreditam que a prostituta é uma santa e ela tem que fugir para reencontrar alguma paz. Bem ambientado na cidade de Salvador, é um dos contos que merece maior atenção.
Rodrigo Nunes assina "Emoções". Depois de uma tentativa de assalto, uma jovem médica descobre que pode sentir as emoções das pessoas que estão à sua volta. Suas atitudes estranhas fazem com que seus pais acreditem que ela enlouqueceu. A ideia é boa mas a realização, ruim, pois o autor abusa de frases curtas, num texto telegrafado e enfadonho.
Em "O detetive do sobrenatural", de Rafael Monteiro, um detetive trapaceiro descobre que pode falar com os mortos, e faz um acordo com um fantasma para ajudá-lo no serviço. Conto muito fraco, que transcreve as primeiras cenas do filme Espíritos, de Robert Tinnell.
"Supertia", de Lucio Luiz, mostra personalidade e bom ritmo. Uma estudante secundarista tem a oportunidade de dar aula numa pré-escola. Depois de um início tumultuado com uma turma muito difícil, descobre que pode controlar as crianças dando-lhes ordens diretas. Apesar de ter uma classe obediente, as crianças passam a depender cada vez mais de suas ordens, até que acontece uma tragédia. A narrativa em primeira pessoa é divertida, porque a jovem professora é uma completa cretina. Apesar disso, fica uma sensação de que algo está errado em seu conceito, já que o autor sugere que toda a arrogância da garota decorre do fato dela acreditar nos estudos.
"Prólogo", de Conrad Pichler, é uma espécie de Cidade de Deus de terror. Conta como um homem muito mau, morto numa briga de gangues, volta do inferno para vingar-se. Mas ele não esperava que os seus desafetos ainda vivos tivessem super-poderes para enfrentá-lo. Derrotado o espírito do mal, os sobreviventes decidem continuar a luta contra as trevas. Um conto confuso, difícil de compreender e com um grau de violência que não se justifica.
O conto seguinte é "Prata da casa", de Rony Gabriel. Assassino profissional se vale da capacidade de ser esquecido para despistar seus algozes. Entre eles, uma policial que é imune ao seu poder. Mas ela acaba sendo auxiliada por ele, depois de sofrer um atentado praticado por seu próprio parceiro. O conto não disfarça a inspiração no personagem Questão, sem mais a acrescentar.
"Freaklândia", de Robson Costa, é de longe o melhor conto da antologia. Muito bem construído, conta a história de uma médica em crise profissional que aceita trabalhar numa operação sigilosa do governo, em uma cidade no interior de Mato Grosso do Sul onde várias pessoas subitamente desenvolveram estranhas mutações. Depois de algumas semanas de trabalho, ela acaba envolvida pela irmandade desses mutantes e torna-se ela mesma um deles depois do contato com uma bolha de luz que os mutantes guardam como um tesouro. A narrativa distancia-se da mitologia dos super-heróis por conta da utilização de uma narração típica da fantasia latina e da presença intimidante da repressão políticomilitar patrocinada por forças internacionais, o que fala muito ao imaginário brasileiro.
"The world is blue", de Eduardo Sales Filho, mostra como um empresário ambicioso enriquece utilizando sua capacidade de influenciar a mente das pessoas. Frívolo e arrogante, repentinamente vê-se ajudando uma mulher que estava sendo vítima de um sequestro-relâmpago. Apesar de desprezar as pessoas comuns, ele aprecia a sensação de poder sobre elas. Talvez uma sequência à história pudesse corrigir a inversão de valores que este conto sugere, mas a introdução, infelizmente, não anima muito.
"Vítima", de Cesar Rocha Leal, fala sobre um investigador de polícia dotado de poderes extra-sensoriais. Por usá-los em suas investigações, é ridicularizado pelos colegas. Mas ele não apenas resolve todos os mistérios do crime proposto no conto como também identifica o criminoso, tudo sem precisar sair da sala. O conto parece homenagear mais os seriados televisivos de histórias policiais e os romances de Sherlock Holmes do que os quadrinhos de super-heróis e, por isso, destaca-se dos demais. Mas a falta de virtuosismo literário compromete, resultando num trabalho de pouco brilho.
"Incógnitos", de Rafael Borges, conta a história de uma banda de rock famosa – os Incógnitos do título – cujos integrantes têm superpoderes. No meio de um show em Tóquio, são atacados por um dragão e têm de improvisar para derrotá-lo. O público delira ao ver o combate e o show continua depois dele. O conto faz rir, que é o que o autor queria, mas pelos motivos errados, pois expõe o ridículo das histórias de super-heróis num livro que pretende ser uma homenagem a eles.
"Salão de espelhos", de Alexandre Mandarino, encerra a antologia. Trata de um jovem que ganha todos os poderes imagináveis e, usando-os, molda o mundo a sua imagem. Então, cheio de tédio, desfaz tudo e abandona o mundo, indo para as estrelas. Mandarino demonstra domínio da língua e apresenta um conto bem trabalhado mas, apesar das virtudes, a antologia teria ficado melhor se o seu conto não fosse o último do volume. Isso porque ele passa uma forte impressão de escárnio sobre gênero dos super-heróis e sobre própria antologia em si, sintoma que se reforça por dar-lhe os contornos finais. É como se o editor, ao deixá-lo por último, quisesse levar o leitor a sentir-se tolo por ter investido o seu tempo na leitura do volume. Pelo menos foi essa a impressão que causou em mim.
Além dos contos, é importante citar o trabalho de J. J. Marreiro, que demonstra domínio sobre o gênero ao realizar as ilustrações que emolduram cada um dos contos e o índice, aproximando o livro dos leitores habituados apenas com quadrinhos e dando-lhe uma jovialidade bem-vinda.
Os interessados podem, possivelmente, reencontrar esses personagens no saite Hyperfan e acompanhar o que cada um deles fez depois dessas aventuras iniciais.
— Cesar Silva