terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Os Malditos (These Are the Damned, Inglaterra, 1963, PB)

 


No final dos anos 1950, a produtora inglesa “Hammer” surgiu com a proposta de explorar novamente os tradicionais monstros do cinema de Horror como o vampiro “Drácula”, “Criatura de Frankenstein”, “Múmia”, “Fantasma da Ópera”, “Lobisomem”, entre outros. Apostando na fotografia colorida e no vermelho do sangue, tivemos muitos filmes que ficaram eternizados, agregando muito valor às carreiras de atores como Christopher Lee e Peter Cushing, que se transformaram em ícones do gênero.

Mas, não é só de filmes de horror com monstros que a “Hammer” é lembrada, pois o estúdio também tem em seu extenso catálogo filmes com histórias de ficção científica. No caso de “Os Malditos” (These Are the Damned, 1963), o tema é a paranoia atômica que foi criada nas décadas de 50 e 60 do século passado, com o medo do fim do mundo numa destruição com bombas nucleares, durante a guerra fria entre Estados Unidos e a antiga União Soviética, pelo domínio do planeta após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Com direção de Joseph Losey, fotografia em preto e branco e história baseada no livro “The Children of Light”, de H. L. Lawrence, o filme foi lançado em DVD no Brasil em 2015 pela “Versátil”, na coleção “Clássicos Sci-Fi – Volume 1”, e também recebeu anteriormente os títulos “O Mundo os Condenou” e apenas “Malditos”.

Um turista americano, Simon Wells (Macdonald Carey), está na Inglaterra em férias quando conhece a jovem Joan (Shirley Anne Field), irmã de King (Oliver Reed), o líder de uma gangue de motoqueiros arruaceiros que roubam turistas com o uso de violência. Simon e Joan acabam saindo juntos num passeio de barco, sendo perseguidos pelo irmão ciumento da garota.

Eles passam a noite numa casa isolada localizada perto de uma estação militar secreta e entram em contato com um grupo misterioso de crianças que vivem em instalações subterrâneas da base do exército. Inocentes, elas recebem bem os estranhos, ajudando-os a se esconderem tanto do violento King quanto dos militares. Geladas e radioativas, as crianças fazem parte de um sinistro experimento científico confidencial, liderado pelo cientista Bernard (Alexander Knox), que esconde seu trabalho obscuro da amante Freya Neilson (Viveca Lindfors), uma artista que faz esculturas bizarras.

“Os Malditos” é um filme diferente da “Hammer”, bem longe dos monstros e horror gótico que normalmente caracteriza o estilo da produtora. Com a fotografia em preto e branco, a história pessimista explora o medo e tensão constantes gerados pela paranoia de uma catástrofe nuclear, com um projeto científico sombrio envolvendo as crianças “malditas”. A primeira metade é um pouco arrastada e a gangue de motoqueiros ladrões de turistas não desperta muito interesse. Mas, as coisas melhoram bastante quando efetivamente surgem as crianças sinistras, vítimas de uma conspiração militar com objetivos sombrios. Carregado de mistério, o grupo não tem contato com o mundo exterior, as crianças só conhecem as coisas no interior do subterrâneo e nem imaginam quem são seus pais, não fazendo a menor ideia do propósito do projeto científico em que fazem parte.

Entre as curiosidades, vale citar que o filme é um dos primeiros trabalhos do ator Oliver Reed, com uma carreira bem sucedida, e que esteve antes em “A Maldição do Lobisomem” (1962), também da “Hammer”, no papel do homem transformado em lobo. Também é curioso o fato de que as crianças misteriosas formavam um grupo de nove e todas tinham nomes de reis ou rainhas da história da Inglaterra, como Henry e Victoria, as principais crianças do grupo.

(Juvenatrix – 16/02/21)






segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

As Águas Vivas não Sabem de Si


As Águas Vivas não Sabem de Si, Aline Valek. Capa e projeto gráfico: Manon Bourgeade. Ilustração de capa: Shutterstock. 293 páginas. Rio de Janeiro: Editora Rocco, coleção Fantástica, 2016.



O mar não é um tema particularmente pródigo na ficção científica. Apesar de Júlio Verne haver praticamente inaugurado o subgênero com Vinte Mil Léguas Submarinas (Vingt Mille Lieues sous les Mers 1869), ele vem sendo explorado de forma mais intermitente, do que permanente. No século XX o autor mais importante a escrever ficção científica marítima foi Arthur C. Clarke (1917-2008), com dois romances interessantes: Odisséia no Mar (The Deep Range, 1957) e O Fantasma das Grande Banquisas (The Ghost from the Grand Banks, 1990) e, de fato, a imagem mais recorrente e popular é da série de TV Viagem ao Fundo do Mar (Voyage to the Bottom of the Sea, 1964-1968) e do ótimo filme de James Cameron, O Segredo do Abismo (The Abyss, 1989).

Dentro deste contexto é que este As Águas Vivas não Sabem de Si é ainda mais surpreendente, pois no interior da ficção científica brasileira um romance com este tema é, salvo engano, raro. Então, por si só já deveria ser interessante conhecer este que é o primeiro romance de Aline Valek, cronista e blogueira com muitos seguidores nas redes sociais. Não sei qual foi sua motivação, mas para além do primeiro interesse no assunto, a leitura vale ainda mais pela qualidade da prosa e pelos desdobramentos do enredo.

Com o objetivo inicial de testar trajes submarinos projetados para altas profundidades é estabelecida a Estação Auris, a 300 km abaixo da superfície. Para lá vão cinco tripulantes. O cientista-chefe Martin Davenport, seu assistente Maurício, a engenheira naval Susana e os mergulhadores Arraia e Corina. Isolados, imersos no fundo do mar e seus mistérios, como que intrusos num outro mundo. Mas mais que isso solitários em suas próprias dúvidas e segredos. Do que realmente os motivaram a participar da missão e suas reais intenções.

O romance é contado do ponto de vista de Corina, uma jovem talentosa e rebelde que, depois de sofrer um acidente e ficar afastada do mergulho profissional, recebe uma nova oportunidade, através do contato com seu amigo Arraia. Mas o que a traz para o fundo do mar vai além de recuperar sua carreira, será uma tentativa de provar a si mesma que ainda pode viver a sua vida como sempre quis: de maneira independente e não convencional. Isso porque ela esconde que sofre de uma doença incurável que, dentro de no máximo alguns anos, a tornará incapaz de controlar o próprio corpo.

Mas não é só Corina que tem seus segredos. Arraia esconde seu alcoolismo, Susana se culpa por uma tragédia ocorrida num submarino, Maurício lida com uma espécie de paixão não assumida por seu guru, Martin, e este vive numa tentativa quase desesperada de provar sua tese e recuperar sua reputação diante da comunidade científica: de que há vida inteligente nas profundidades abissais dos oceanos. Cada um ao seu modo terá a chance se enfrentar seus problemas até os limites da própria viabilidade da missão. Por esta via o leitor já percebe que estamos diante de uma história com mais de uma camada. Na verdade o aspecto psicológico dá o tom da sequência dos acontecimentos. De certa forma a própria ação é movida pelas lutas internas de cada personagem e seus desdobramentos.

Mas, afinal, a grande pergunta é: haverá vida inteligente no fundo do mar? Se sim, como ela seria? Do ponto de vista temático este é o tema mais fascinante, mais aberto ao tipo de especulação que instiga o interesse do leitor de ficção científica. E, embora Valek, como disse, invista mais no aspecto intimista da narrativa, esta dimensão não está negligenciada. Pois a partir de um certo trecho do livro, os dramas pessoais dos personagens são entremeados com uma discussão altamente especulativa sobre as origens e evolução da vida na Terra. Pois se a vida teve início na água dos oceanos, ela progressivamente ganhou a superfície, possibilitando o surgimento de muitas novas espécies, entre elas, ao menos uma inteligente, com o sentido de ter consciência de si própria e da realidade que a cerca. Mas, e se neste processo evolutivo, alguma forma de vida inteligente marinha tivesse surgido e ficado por lá? Por que a inteligência deveria ter surgido necessariamente (ou apenas) entre as formas de vida terrestres?

Neste contexto os capítulos sobre a evolução da baleia, como uma espécie mamífera que abandonou a superfície para viver no mar, e os das águas vivas – seres que só se percebem como vivas nadando em bandos – quando uma delas se desgarra e passa a “saber de si”, são emocionantes. Mas o momento mais importante é o da descrição da possível espécie marítima que poderia ter surgido e evoluído para a inteligência há centenas de milhões de anos, os azúlis. Teriam eles realmente desaparecido nas fossas marítimas, há dezenas de quilômetros, no fundo dos oceanos, onde a luz do sol não chega?

A busca de Martin é pelo contato com este ser e, gradativamente, os dramas pessoais de cada personagem acabam se misturando com o objetivo da missão. Contudo, o que poderia nos encaminhar para uma solução quase que transcendente ou transformadora da forma como podemos compreender outros seres vivos e nossa própria presença no planeta, resvala para um certo anticlímax, após uma possível mensagem ser captada pela estação. É que, a este possível encontro, o plano volta a se concentrar no drama pessoal de Corina. É ela que, no fim das contas, vai adiante do que seria prudente, para tentar entender a mensagem misteriosa. Mas o preço que paga talvez seja alto demais para ela e, de certa forma, inconclusiva para os demais tripulantes e a missão.

Outro possível fascínio desta densa aventura submamarina é a conexão que pode ser feita com uma exploração espacial. De forma trocada, e isto é ressaltado no texto, é como se os tripulantes estivessem numa nave espacial explorando um outro planeta. Valek é competente em nos transmitir a sensação parecida de desbravamento, isolamento e solidão de uma viagem pelo espaço cósmico. Mas, como observa Brian Stableford em seu verbete “Under the Sea”, de The Encyclopedia of Science Fiction,1 é justamente isso que aproxima os dois subgêneros e, talvez, torne menos abordada a opção pelo mar. Pois no fundo, seria mais excitante olhar para fora e não para dentro, embora os mistérios e perguntas sejam semelhantes.

As Águas Vivas não Sabem de Si não foi premiada ou ao menos finalista de nenhum prêmio da comunidade brasileira de FC. Talvez porque o vínculo da autora seja mais com o mainstream do que por ausência de qualidade. Porque, com um senão ou outro, qualidade há, em especial na prosa da autora. Como escreve bem!

Antes do seu primeiro romance ela já havia publicado, por conta própria, duas coletâneas de contos e crônicas e seu trabalho mais recente é o romance Cidades Afundam em Dias Normais (2020), também pela Rocco, em que, ao que parece, prossegue nesta toada neomarítima. No início deste século uma cidade do Cerrado é tragada, inexplicavelmente, até ressurgir anos depois devido a uma crise climática. Não está claro se é tão ficção científica como As Águas Vivas não Sabem de Si, mas sugere ser tão interessante quanto.

 –– Marcello Simão Branco


1Ver em http://www.sf-encyclopedia.com/entry/under_the_sea.