As
Águas Vivas não Sabem de Si,
Aline Valek. Capa e projeto gráfico: Manon Bourgeade. Ilustração
de capa: Shutterstock. 293 páginas. Rio de Janeiro: Editora Rocco,
coleção Fantástica, 2016.
O
mar não é um tema particularmente
pródigo na ficção científica. Apesar de Júlio
Verne haver praticamente inaugurado o subgênero com Vinte
Mil Léguas Submarinas
(Vingt
Mille Lieues sous les Mers 1869),
ele vem sendo explorado de forma mais intermitente, do que
permanente. No século XX o autor mais importante a escrever ficção
científica marítima foi Arthur C. Clarke (1917-2008), com dois
romances interessantes: Odisséia
no Mar (The
Deep Range, 1957) e O
Fantasma das Grande Banquisas
(The Ghost from the
Grand Banks, 1990) e,
de fato, a imagem mais recorrente e popular é da série de TV Viagem
ao Fundo do Mar
(Voyage to the Bottom
of the Sea, 1964-1968)
e do ótimo filme de James Cameron, O
Segredo do Abismo (The
Abyss, 1989).
Dentro
deste contexto é que este As
Águas Vivas não Sabem de Si
é ainda mais surpreendente, pois no interior da ficção científica
brasileira um romance com este tema é, salvo engano, raro. Então,
por si só já deveria ser interessante conhecer este que é o
primeiro romance de Aline Valek, cronista e blogueira com muitos
seguidores nas redes sociais. Não sei qual foi sua motivação, mas
para além do primeiro interesse no assunto, a leitura vale ainda
mais pela qualidade da prosa e pelos desdobramentos do enredo.
Com
o objetivo inicial de testar trajes submarinos projetados para altas
profundidades é estabelecida a Estação Auris, a 300 km abaixo da
superfície. Para lá vão cinco tripulantes. O cientista-chefe
Martin Davenport, seu assistente Maurício, a engenheira naval Susana
e os mergulhadores Arraia e Corina. Isolados, imersos no fundo do mar
e seus mistérios, como que intrusos num outro mundo. Mas mais que
isso solitários em suas próprias dúvidas e segredos. Do que
realmente os motivaram a participar da missão e suas reais
intenções.
O
romance é contado do ponto de vista de Corina, uma jovem talentosa e
rebelde que, depois de sofrer um acidente e ficar afastada do
mergulho profissional, recebe uma nova oportunidade, através do
contato com seu amigo Arraia. Mas o que a traz para o fundo do mar
vai além de recuperar sua carreira, será uma tentativa de provar a
si mesma que ainda pode viver a sua vida como sempre quis: de maneira
independente e não convencional. Isso porque ela esconde que sofre
de uma doença incurável que, dentro de no máximo alguns anos, a
tornará incapaz de controlar o próprio corpo.
Mas
não é só Corina que tem seus segredos. Arraia esconde seu
alcoolismo, Susana se culpa por uma tragédia
ocorrida num submarino, Maurício lida com uma espécie de paixão
não assumida por seu guru, Martin, e este vive numa tentativa quase
desesperada de provar sua tese e recuperar sua reputação diante da
comunidade científica: de que há vida inteligente nas profundidades
abissais dos oceanos. Cada um ao seu modo terá a chance se enfrentar
seus problemas até os limites da própria viabilidade da missão.
Por esta via o leitor já percebe que estamos diante de uma história
com mais de uma camada. Na verdade o aspecto psicológico dá o tom
da sequência dos acontecimentos. De certa forma a própria ação é
movida pelas lutas internas de cada personagem e seus desdobramentos.
Mas,
afinal, a grande pergunta é: haverá vida inteligente no fundo do
mar? Se sim, como ela seria? Do ponto de vista temático este é o
tema mais fascinante, mais aberto ao tipo de especulação que
instiga o interesse do leitor de ficção científica. E, embora
Valek, como disse, invista mais no aspecto intimista da narrativa,
esta dimensão não está negligenciada. Pois a partir de um certo
trecho do livro, os dramas pessoais dos personagens são entremeados
com uma discussão altamente especulativa sobre as origens e evolução
da vida na Terra. Pois se a vida teve início na água dos oceanos,
ela progressivamente ganhou a superfície, possibilitando o
surgimento de muitas novas espécies, entre elas, ao menos uma
inteligente, com o sentido de ter consciência de si própria e da
realidade que a cerca. Mas, e se neste processo evolutivo, alguma
forma de vida inteligente marinha tivesse surgido e ficado por lá?
Por que a inteligência deveria ter surgido necessariamente (ou
apenas) entre as formas de vida terrestres?
Neste
contexto os capítulos sobre a evolução da baleia, como uma espécie
mamífera que abandonou a superfície
para viver no mar, e os das águas vivas – seres que só se
percebem como vivas nadando em bandos – quando uma delas se
desgarra e passa a “saber de si”, são emocionantes. Mas o
momento mais importante é o da descrição da possível espécie
marítima que poderia ter surgido e evoluído para a inteligência há
centenas de milhões de anos, os azúlis. Teriam eles realmente
desaparecido nas fossas marítimas, há dezenas de quilômetros, no
fundo dos oceanos, onde a luz do sol não chega?
A
busca de Martin é pelo contato com este ser e, gradativamente, os
dramas pessoais de cada personagem acabam se misturando com o
objetivo da missão. Contudo, o que poderia nos encaminhar para uma
solução quase que transcendente ou transformadora da forma como
podemos compreender outros seres vivos e nossa própria presença no
planeta, resvala para um certo anticlímax, após uma possível
mensagem ser captada pela estação. É que, a este possível
encontro, o plano volta a se concentrar no drama pessoal de Corina. É
ela que, no fim das contas, vai adiante do que seria prudente, para
tentar entender a mensagem misteriosa. Mas o preço que paga talvez
seja alto demais para ela e, de certa forma, inconclusiva para os
demais tripulantes e a missão.
Outro
possível fascínio
desta densa aventura submamarina é a conexão que pode ser feita com
uma exploração espacial. De forma trocada, e isto é ressaltado no
texto, é como se os tripulantes estivessem numa nave espacial
explorando um outro planeta. Valek é competente em nos transmitir a
sensação parecida de desbravamento, isolamento e solidão de uma
viagem pelo espaço cósmico. Mas, como observa Brian Stableford em
seu verbete “Under the Sea”, de The
Encyclopedia of Science Fiction,
é justamente isso que aproxima os dois subgêneros e, talvez, torne
menos abordada a opção pelo mar. Pois no fundo, seria mais
excitante olhar para fora e não para dentro, embora os mistérios e
perguntas sejam semelhantes.
As
Águas Vivas não Sabem de Si não
foi premiada ou ao menos finalista de nenhum prêmio da comunidade
brasileira de FC. Talvez porque o vínculo da autora seja mais com o
mainstream
do que por ausência de qualidade. Porque, com um senão ou outro,
qualidade há, em especial na prosa da autora. Como escreve bem!
Antes
do seu primeiro romance ela já havia publicado, por conta própria,
duas coletâneas
de contos e crônicas e seu trabalho mais recente é o romance
Cidades Afundam em Dias
Normais (2020), também
pela Rocco, em que, ao que parece, prossegue
nesta toada neomarítima. No início deste século uma cidade do
Cerrado é tragada, inexplicavelmente, até ressurgir
anos depois devido a uma crise climática. Não está claro se é tão
ficção científica como As
Águas Vivas não Sabem de Si,
mas sugere ser tão interessante quanto.
–– Marcello
Simão Branco