sexta-feira, 18 de março de 2022

A Porta de Chifre

A Porta de Chifre, Herberto Sales. Capa: Victor Burton. 247 páginas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.



Escrito na fase madura do autor, A Porta de Chifre é um romance sobre o tema da terra devastada (wasteland), um segmento da FC que explora as consequências de catástrofes, talvez uma variação do tema do pós-holocausto, numa linha mais próxima de um colapso climático. O livro é também a segunda incursão de Herberto Sales (1917-1999) na FC, a primeira foi com seu romance O Fruto do Vosso Ventre (1976), uma crítica contundente à tecnocracia vicejada principalmente no período da ditadura militar.

Pois se neste o autor situou sua distopia num local que chamou de “ilha” – numa referência à Brasília –, voltado a problemas de superpopulação, que passam a ser rigidamente controladas por um Estado burocratizado e autoritário, em A Porta de Chifre – que retira o título de uma passagem da Odisseia, de Homero –, a reflexão ocorre sobre o destino do estilo de vida consumista e depredador da natureza, que encaminha o mundo para uma catástrofe ambiental. Os rios, mares e oceanos perdem toda a sua água. Secam. Além disso, a principal fonte de energia também acaba, o petróleo. Nesse sentido, se em O Fruto do Vosso Ventre a crítica é política, em A Porta de Chifre, a ênfase é a economia capitalista e seu estilo de vida.

Como é comum em autores reconhecidos pelo mainstream que escrevem sobre FC, o autor não se reconhece como tal, e explica, já na página de rosto: “Sucinto relato anticientífico, com ingredientes de ficção, que se faz de uma viagem, no ano de 2352, à maneira dos velhos romances, quando ainda se escreviam romances e havia quem por ler os lesse”. Mas isso, de fato, pouco importa, mas sim saber se estamos diante de uma obra que faz alguma contribuição interessante ao gênero.

A história se passa no século XXIV, e a Amazônia é um vasto deserto. Mas não se explica o que aconteceu. As principais fontes de energia esgotaram, restando apenas uma “lama aquática’, de onde se obtém água, através de perfurações profundas da superfície do planeta. Mas o que resta desta água serve apenas para manter minimamente a sociedade funcionando. Não há mais como manter a opulência e os excessos materiais e tecnológicos de outrora. O homem abandonou a exploração do espaço, a maioria vive em aldeias e a maior parte da alimentação é sintética. Não se comenta, mas é obvio que a boa parte da vida vegetal e animal foi extinta.

Na verdade, não haveria como manter a vida no planeta sem a água. Os animais, inclusive o homem –, morreriam sem hidratação, e toda a vegetação secaria, o que provocaria incêndios e aquecimento do planeta. Antes se secar por inteiro, a Terra ficaria muito quente. Mas o livro não se preocupa minimamente em especular sobre estas prováveis consequências e de como seria possível que a humanidade sobrevivesse num lugar completamente impróprio para a vida. Talvez parte da explicação esteja na declaração na folha de rosto. Mas, se assim for, revela uma preguiça que tornou a obra menos interessante.

Narrado em primeira pessoa por um dos personagens, ele e mais sete pesquisadores percorrem o Deserto Amazônico, com o objetivo de chegar até as Montanhas Negras, no extremo norte da América do Sul. Eles são conduzidos por uma limousine puxada por camelos. Uma imagem bizarra.

Os expedicionários passam por algumas estações de perfuração da lama aquática, chamadas de Perfurópolis, onde a empresa estatal Aguabrás faz sua tarefa de extração da lama. Mas por mais de cem páginas (133 para ser preciso) nada relevante acontece na história. Temos uma sucessão de capítulos com diálogos sobre as preferências culinárias de cada um, como eles se sentiriam se vivessem num mundo com água, considerações comparativas as mais diversas entre o mundo deles e o de nossa época, ironizando vários aspectos do estilo de vida e os costumes dos anos 1980. Mas, ora, eles estão 400 anos adiante, qual a razão para comentarem justamente sobre uma época tão distante? Claro, o autor uso do recurso manjado de criticar os costumes do presente com as lentes do futuro. Mas não há explicação sobre a razão específica das críticas serem feitas ao mundo dos anos 1980. Talvez o autor pudesse explorar a ideia de que o colapso teve início ou ocorreu no fim do século XX. Mas não se percebe isso da leitura. Ficou deslocado e sem sentido.

Assim, é apenas quando eles chegam nas Montanhas Negras que o romance passa a ter algum drama. Uma das pesquisadoras desaparece, e depois que é reencontrada, ela diz que foi raptada por um homem-formiga. Corpo de homem e cabeça de formiga. Então, eles se mobilizam para descobrir se existe mesmo uma nova espécie mutante, talvez derivada da transformação radical do planeta.

Nesta busca eles acabam tendo outra surpresa. Ao percorrer as cavernas do interior da cadeia de montanhas, descobrem um lugar em que a antiga natureza está preservada. Existe água em abundância e uma vegetação deslumbrante. Mais que isso, é habitado por um povo desprendido de bens materiais, numa vida de hábitos coletivos e em comunhão com o ambiente. O lugar se chama Aanac, um palíndromo de Canaã, a terra prometida dos judeus.

Sales termina por se juntar à tradição de que existiria na Amazônia uma civilização perdida, que viveria de forma autossuficiente, em harmonia com a natureza e protetora de possíveis riquezas. Um Eldorado. Mas a forma como a história é desenvolvida pouco acrescenta, pois tudo é mostrado de forma repetitiva e estereotipada. Os habitantes deste lugar idílico se mostram espiritualmente superiores, sábios em sua compreensão mais orgânica com o mundo natural. E, claro, não há nenhuma explicação de como este oásis é possível num mundo inteiramente seco e devastado.

A descoberta dos homens-formigas com a da nova civilização confluem numa ação violenta dos pesquisadores, depois que ficam sabendo que a colheita é regularmente saqueada, sem que haja meios de resistência de um povo tão pacífico. Da forma mais brutal possível, os homens-formigas são caçados pelos ‘civilizados’ com suas armas de raios laser. Exterminam uma nova espécie – e inteligente! – apenas pelo preconceito de sua aparência, e para ajudar os nativos. Ora, não convenceu e é especialmente chocante por se tratar de cientistas.

Em suma, se numa primeira impressão A Porta de Chifre é um romance que sugere prazer ao ser escrito – nos diálogos divertidos entre os personagens e o clima de amenidades –, e sem muito compromisso com a verossimilhança, por outro, na verdade, demonstra uma forte amargura sobre os rumos da civilização tecnológica e a condição humana. E a descoberta de uma nova sociedade é um indicativo de que a esperança para a humanidade possa estar na mudança radical dos seus valores, num sentido mais coletivizado e de respeito ao mundo que o cerca. Mas é pena que este conceito profundo tenha ficado diluído numa história mal desenvolvida, que não explora porque chegamos a isso e como, minimamente, teria sido possível sobreviver a este caos estabelecido.


Marcello Simão Branco