segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A Torre de Vidro

A Torre de Vidro (Tower of Glass), de Robert Silverberg. Tradução de Lucilia Filipe, 174 páginas. Lisboa: Publicações Europa-América, Coleção Ficção Científica, n. 13, 1981.


Em meados dos anos 1960 Robert Silverberg se reinventou como escritor de ficção científica. Surgido no início da década anterior como um autor extremamente produtivo, mas com uma prosa rápida e relativamente pobre, se transformou com textos altamente estilizados em termos literários, explorando temas difíceis e liderados por personagens psicologicamente densos.

É difícil dizer se Silverberg obteve nesta época seu ponto mais alto na ficção curta ou nos romances, pois em ambos os formatos atingiu níveis de excelência poucas vezes vista dentro do gênero. Contos como, por exemplo, “Passageiros” (“Passengers”, 1967), “A Dança do Sol” (“Sundance”, 1968) e a novela “Asas na Noite” (“Nightwings”, 1968), e romances como, por exemplo, Espinhos (Thorns, 1967), Mundos Fechados (The World Inside, 1971), e este A Torre de Vidro (Tower of Glass), lançado em 1970 e finalista dos dois principais prêmios norte-americanos do gênero, o Hugo e o Nebula.
Estamos no início do século 23 e a humanidade possui a tecnologia para as viagens interestelares. Na Terra ocorrem duas autênticas revoluções. Em primeiro lugar podemos dispor da maior parte do tempo sem ter de pensar em trabalho, pois a maioria das atividades produtivas é exercida por androides bastante fortes e inteligentes. Em segundo lugar as distâncias tornaram-se obsoletas, assim como os meios de transportes convencionais, pois as pessoas usam o transmate, um teletransporte que permite percorrer diferentes pontos do planeta em um único dia. Embora pouco explorada dentro da história, as fronteiras nacionais e a própria noção de soberania se enfraquecem bastante, e sugere-se que haja um governo mundial.
Simeon Krug é o magnata que concentra diferentes atividades econômicas e responsável pela criação e produção dos androides. Após a Terra receber um possível sinal de uma civilização extraterrestre, Krug torna-se obcecado com a ideia de fazer um contato, e promove a construção faraônica de uma torre que, quando pronta, terá 1200 metros e, por meio da utilização dos raios táquion – mais rápidos que a velocidade da luz –, permitirá o envio de mensagens a esta suposta civilização alienígena. A mão-de-obra utilizada para construir a torre são os androides, que se subdividem nos alfas, betas e gamas, em ordem decrescente de inteligência. Este é o contexto em que se passa um romance curto e muito movimentado.
Um dos aspectos fortes da história é que ela é desenvolvida, gradativamente, a partir de diferentes personagens, com pontos de vista e objetivos diferentes. Assim, temos em Krug um sujeito poderoso e egocêntrico que tem tudo ao seu dispor, e pensa que nada pode detê-lo. Já os androides são a maioria dos seres vivos no planeta, força de trabalho indispensável para Krug, mas com divisões internas entre eles, com os mais obedientes e os mais contestadores. Há ainda a perspectiva do filho Manuel Krug, que não tem o mesmo entusiasmo pelo império do pai e seus objetivos, e divide-se entre o relacionamento com sua mulher e uma androide, a quem verdadeiramente ama, embora tenha sentimentos contraditórios, por causa de sua origem.
Krug torna-se cada vez mais obsessivo com a construção da mais nova maravilha do mundo e enquanto ela é construída organiza passeios onde leva políticos, artistas e cientistas para conhecê-la. Enquanto isso dezenas de androides morrem durante a construção da torre. Por não se importar com isso, abre-se espaço para crescentes dúvidas entre os androides sobre a estima que Krug possa nutrir por eles. Os androides criam uma religião secreta em que pedem proteção e louvor a seu Deus, no caso, Simeon Krug, procurando desvencilhar, em parte, a figura humana de uma divina. A maioria acredita que não irão permanecer para sempre como simples serviçais, pois o seu criador os libertará, reconhecendo que eles devem ter direitos civis e políticos iguais ao dos seres humanos. Outra corrente é mais cética e organiza o Partido da Integração Androide (PIA), que reivindica abertamente a libertação de sua condição escravocrata e igualdade política. Krug tem desconhecimento da religião e procura não levar a sério o movimento político. Até que uma das líderes do partido é morta por um secretário de Krug, e a pressão por emancipação começa a se tornar uma realidade.
Como se vê este livro retoma um tema tradicional da FC, quase que um subgênero, o do relacionamento quase sempre conflitivo entre criador e criatura, entre o homem e a máquina. Nem sempre os resultados são bons, mas inclui clássicos como Frankenstein (idem, 1818), de Mary Shelley, A Fábrica de Robôs (R.U.R, 1920), de Karel Capek, Blade Runner: O Caçador de Androides (Do Androids Dream of Electric Sheep?, 1966), de Philip K. Dick. Perto destes livros Silverberg não fica a dever, pois insere questões próprias e as desenvolve com segurança.
É interessante observar que a humanidade procura por uma inteligência no universo para poder sair de certa solidão existencial e compartilhar com a experiência de outra civilização, e suas possíveis crenças, filosofia e ciência. Mas não percebe que ela mesma forjou uma nova civilização, a dos androides. Talvez por ter sido criada por ela, não a reconhece como igual, mas sim como um subproduto, gerando exploração e preconceito. Nem mesmo quando Krug descobre que é visto como um Deus ele se compadece de sua criação, ao contrário, reafirmando que eles são “coisas” que devem se colocar no seu devido lugar.
A Torre Vidro é um romance complexo, que discute a questão do preconceito e do racismo – tão caro à sociedade norte-americana nos conturbados anos 1960 –, tanto do ponto de vista político, como do religioso que, torna-se mais dramático quando os androides descobrem que o seu Deus os despreza. De certa forma não deixa de ser um pouco estranho que os androides reajam de forma tão passional e violenta, tendo sido eles concebidos como seres extremamente racionais, a serviço do trabalho e do aperfeiçoamento de uma sociedade cada vez mais baseada na tecnologia do qual, inclusive, eles são o supra sumo. Mas o fato é que eles estão se tornando cada vez mais humanos.
É um livro que se lê de forma relativamente rápida pois, apesar do contexto complexo, tem uma narrativa ágil e cheia de reviravoltas. Em certo sentido, não dá tempo de desenvolver de forma mais densa algumas situações e tornar os personagens mais interessantes, embora não cheguem a ser superficiais.  Por isso, é uma pena que o livro seja tão curto, pois se tivesse ao menos mais umas cem páginas alguns desdobramentos poderiam ter sido mais bem elaborados, e talvez até a conclusão da história pudesse ser outra. Em todo caso, é um bom exemplo do que uma ficção científica escrita por um autor talentoso e sensível às questões de seu tempo pode proporcionar.

– Marcello Simão Branco

domingo, 25 de dezembro de 2016

A triste heroína de "Visões de Escaflowne"

         Na década de 1990, As visões de Escaflowne (Tenkú no Esukafurone), com sua melancólica protagonista Hitomi Kanzaki, chegou a ser uma das mais populares séries japonesas em animação e mangá. Representa uma mescla de ficção cientifica e alta fantasia, com o fenômeno de teleporte ou arrebatamento de um mundo para o outro, como sucede em Guerreiras mágicas de Rayearth.
         Gaea é um mundo situado em algum ponto mágico do espaço. De onde se avistam a Terra e a Lua. A Terra, porém, é conhecida como a “Lua Mística”. Hitomi é uma colegial, uma adolescente não muito bonita e talvez com uns quinze anos, de acentuada tendência à melancolia e muita sensibilidade. Em seu mundo sente-se apaixonada por um dos professores, Amano. Um dia, entretanto, um fenômeno inexplicável a envia para Gaea, onde conhecerá muita gente e se tornará, graças aos seus poderes de vidência, uma pessoa muito importante. Seu coração oscilará entre dois príncipes guerreiros: Allen e Van. Este é o príncipe herdeiro do destruído reino de Fanelia, obrigado a fugir para salvar a própria vida e organizar resistência contra o Império Zaibach. Acompanhados por uma garota-gata apaixonada por Van, Merle, acabam sendo auxiliados por outro cavaleiro-príncipe, Allen Schezar de Astúria.
         Van dispõe de uma arma muito especial: um “guymelef” (mecha, ou robô gigante de combate, forma larval de vida que deve ser pilotada por um dono) chamado Escaflowne, que pode assumir a forma de um dragão voador (porém metálico).
         Hitomi, com seus poderes clarividentes amplificados em Gaea, tem com frequência a visão do perigo, o que lhe permite antecipar as ações dos adversários, além de enxergar inimigos invisíveis. As suas qualidades atraem o ódio de Dilandau, um histérico vilão de Zaibach, indignado contra “aquela pirralha da Lua Mística”.
         Uma coisa que chama a atenção nesses animes é a entonação que os personagens dão às suas palavras, transmitindo sentimentos intensos por vezes só com a pronúncia de um nome monossilábico. É assim quando Hitomi pronuncia o nome “Van”, quase em sussurro. Essa expressividade, que dá conta do talento dos dubladores japoneses, permeia este seriado.
         Hitomi é meiga, humilde e singela, e algo melancólica. Afastada de seu mundo, divide-se entre as novas afeições e a saudade do que ficou para trás. Com sua humildade e sentimentos delicados, assim mesmo ela se torna por demais importante e respeitada; e sua candura e seu altruísmo terão grande influência no desenrolar da trama.
         O mangá, de Katsu Aki, ocupou oito volumes saídos entre 1994 e 1997, mais dois em outra versão, em 96/97, de Yuzuru Yashiro, e um novo volume em 2007, com vários autores (todos pela editora Kadokawa Shoten). Há seis volumes de novelas assinadas por Yumiko Tsukamoto, Hajime Yatate e Shoji Kawamori, pela mesma editora (96/97); e 26 episódios de animação (1996) do Estúdio Sunrise, dirigidos por Kazuki Akane, além de um desenho de longa-metragem.
— Miguel Carqueija

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Latidos de Pánico (Panic Beats, Espanha, 1983)


Latidos de Pánico” (“latidos” em espanhol significa “batimentos cardíacos”) é um filme de horror “exploitation” de 1983, também conhecido pelo título em inglês “Panic Beats”. Foi dirigido e escrito pelo multifuncional Paul Naschy, que é o pseudônimo de Jacinto Molina Álvarez (1934 / 2009). Ele também é o ator principal e é considerado um nome cultuado no mundo do cinema de horror bagaceiro, com grande quantidade de créditos em sua vasta carreira.
Continuação da tranqueira divertida “El Espanto Surge de la Tumba” (1973), o roteiro volta a mencionar o temível Alaric de Marnac (Paul Naschy), um cavaleiro medieval com armadura que matou violentamente sua esposa por infidelidade (vista numa introdução de forte impacto de violência), além de ser conhecido por vários crimes hediondos, prática de bruxaria e por beber sangue humano. Segundo uma lenda, ele voltaria do mundo dos mortos a cada 100 anos para se vingar das mulheres da família Marnac.
Saltando no tempo para os dias atuais (década de 80 do século passado pela produção do filme), num pequeno vilarejo rural francês, próximo de Paris, somos apresentados para Paul Marnac (novamente Paul Naschy), que se muda para o interior justamente para preservar a saúde debilitada da bela e rica esposa Geneviéve (Julia Saly), que tem sérios problemas cardíacos. Ao chegarem à casa de campo do casal, eles são recebidos pela veterana governanta Mabile (Lola Gaos) e sua bela e jovem sobrinha Julie (Pat Ondiviela). Porém, uma sucessão de eventos estranhos e misteriosos, assassinatos violentos e traições constantes movimentam o ambiente instaurando o horror e manchando a casa com o vermelho do sangue.
Assim como os europeus Jesus Franco (1930 / 2013, também espanhol) e o francês Jean Rollin (1938 / 2010), realizadores muito produtivos, entre outros, com uma infinidade de trabalhos de direção, roteiro e atuação, é inegável também registrar a contribuição de Paul Naschy para o cinema fantástico bagaceiro. E em “Latidos de Pánico” não faltam todas aquelas características e clichês divertidos dos filmes de orçamentos reduzidos e história bizarras. Temos belíssimas mulheres nuas (especialmente Silvia Miró, que interpreta Mireille, uma amante de Paul Marnac), um assassino com luvas pretas, o casarão com atmosfera gótica, várias cenas sangrentas com mortes dolorosas em feridas gosmentas e tripas expostas, cadáveres putrefatos, e tudo sem a artificialidade do CGI, apenas com os nostálgicos, trabalhosos e sempre bem vindos efeitos de maquiagem.
É verdade também que o roteiro é extremamente previsível, onde sabemos sem esforço e com antecedência a sucessão dos eventos, porém a mistura de horror sangrento, com família amaldiçoada, fantasma vingativo, ganância do ser humano e conspirações, sempre desperta o interesse e garante a diversão.
Entre os destaques, temos o início ambientado no passado, com o sanguinário cavaleiro perseguindo uma mulher nua pela correndo pela floresta desesperada, as várias mortes sangrentas (principalmente os ataques com a arma medieval mangual, que rasga a carne e dilacera os ossos de suas vítimas), e o desfecho passado no interior de uma igreja, também carregado de muita violência.
(Juvenatrix – 21/12/16)

sábado, 17 de dezembro de 2016

O Uivo da Bruxa (Cry of the Banshee, Inglaterra, 1970)


“No ouvido sobressaltado da noite, como eles gritam por seus temores! Aterrorizados demais para falar, a única coisa que podem fazer é choramingar, choramingar, fora do tom...” – Edgar Allan Poe

Baseado numa lenda irlandesa, “banshee” (do título original) é uma criatura sobrenatural invocada do inferno por magia negra, para executar uma vingança. “O Uivo da Bruxa” é um filme de horror gótico inglês da “American International Pictures” similar ao melhor estilo da produtora “Hammer”. Foi dirigido por Gordon Hessler em 1970 e tem na liderança do elenco o ícone eterno Vincent Price. Ele faz o papel do tirano inquisidor Lord Edward Whitman, que governa uma aldeia através da manipulação do medo, combatendo a bruxaria da época com julgamentos severos dos acusados e aplicação de penalidades violentas e dolorosas.
Ele persegue os seguidores de uma seita pagã, que realiza cultos na floresta e é liderada pela veterana Oona (a ucraniana Elizabeth Bergner). Muitos dos membros foram assassinados e em represália a bruxa convoca Satã para enviar um “banshee”, uma criatura sobrenatural que se apossa do corpo de um jovem, Roderick (Patrick Mower). O ser mitológico maligno então se vinga violentamente da família Whitman, formada ainda pela esposa infeliz do inquisidor, Lady Patricia (Essy Persson), e seus filhos Maureen (Hilary Heath), Harry (Carl Higg) e Sean (Stephan Chase).
Os moradores supersticiosos do vilarejo ouvem constantemente o uivo de um cão selvagem que aterroriza a região e mata as ovelhas, e sentem na pele as ações vingativas de um demônio invocado do inferno.
Em “O Uivo da Bruxa” temos uma história gótica com o tema de família amaldiçoada, enfrentando a fúria vingativa de uma criatura inumana. O roteiro de Tim Kelly e Christopher Wicking procura explorar a tensão constante do conturbado período de caça às bruxas na Europa do século XVI. Onde torturas dolorosas eram as punições comuns para obter confissões e delações, como podemos ver nas palavras de um inquisidor para uma mulher seguidora do culto pagão da “antiga religião”: “Podemos matá-la um minuto por dia durante um ano, ou tudo em um único minuto. Poupe-se da dor e diga-nos onde Oona está e prometo-lhe, você morrerá em paz.”
Vincent Price (1911 / 1993), um dos maiores e insuperáveis atores de horror de todos os tempos, repete o papel de um sádico tirano da Inquisição, assim como no filme anterior “O Caçador de Bruxas” (1968), Sua relação com o horror é tão sólida em incontáveis filmes preciosos para a história do gênero, que sua participação é a garantia do entretenimento.
O diretor alemão Gordon Hessler (1925 / 2014) tem no currículo filmes como “Embuste Diabólico” (1965), “O Ataúde do Morto Vivo” (1969) e “Grite, Grite Outra Vez” (1970), sendo os dois últimos também com Price.
Nos ataques do “banshee”, a criatura aparece pouco e seu visual é visto sempre rapidamente, numa aposta maior para a sugestão. Mas, ainda assim percebemos características que nos remetem para similaridades com lobisomens, em efeitos extremamente toscos de uma produção de baixo orçamento, garantindo a diversão dos apreciadores de cinema fantástico bagaceiro.

“Inglaterra no século XVI, uma época sombria e violenta. Bruxaria e os fantasmas da antiga religião ainda mantém o controle nas mentes das pessoas, preocupando tanto a Lei como a Igreja. Então quem pode ter certeza que isto é somente superstição primitiva e medo infantil?”

(Juvenatrix – 17/12/16)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Vinte mil léguas submarinas

Vinte mil léguas submarinas (20000 leagues under the sea) – EUA, 1954. Produção de Walt Disney. Direção de Richard Fleischer. Roteiro de Earl Felton, com base no romance de Julio Verne. Efeitos especiais de Elmo Williams. Com James Mason, Kirk Douglas, Peter Lorre, Paul Lukas.


         Em criança, com minha família, assisti pela primeira vez, no cinema, ao filme Vinte mil léguas submarinas (20.000 leagues under the sea), de Walt Disney, produzido em 1954. Depois pude reassisti-lo diversas vezes e de diversas maneiras. Ele marcou a minha vida, despertou em mim o amor pela ficção cientifica e pela fantasia.

         Até hoje eu vejo esta extraordinária película como uma cabal demonstração do gênio de Walt Disney, talvez o maior cineasta de todos os tempos e aquele que realizou o maior número de filmes de arte, vale dizer, de obras-primas.
         Trata-se aqui da adaptação de um romance de outro gênio, Julio Verne (Vingt mille lieus sons le mers no original francês), lançado em 1870. Verne é considerado o pai da ficção cientifica, que ele “emendou” com o romance de aventuras e viagens. É bem verdade que, antes de Verne (1828-1905) já existia ficção cientifica — por exemplo, na obra de Edgar Allan Poe (1809-1849), mas não tão copiosa. O romance de Verne, volumoso e cansativo, porém notável, antecipa a invenção do submarino marítimo de longo alcance, pois há notícia de modelos toscos utilizados em rios, na Guerra de Secessão dos norte-americanos.
         Walt Disney produziu 20.000 léguas submarinas com grande requinte. O roteiro de Earl Felton enxugou o romance, propiciando um espetáculo grandioso e sublime, desde a parte técnica (fotografia, cenário, efeitos especiais) à parte moral, passando pela emocional (é eletrizante) e pelas interpretações exemplares do reduzido elenco.
         De fato, importantes na trama são quatro personagens: o Professor Aronnax, oceanógrafo (Paul Lukas), seu assistente Conseil (Peter Lorre), ambos franceses, o arpoador canadense Ned Land (Kirk Douglas) e finalmente o majestoso, sinistro e misterioso comandante do Nautilus, o Capitão Nemo (James Mason). Este foi, provavelmente, o maior papel da carreira de Mason, que está soberbo na interpretação do herói trágico e meio louco, de origem desconhecida — não revelada no filme e no livro, mas sabemos tratar-se de um hindu.
         Nemo é um grande cientista e navegador, com um trágico passado que o torna obcecado por vingança. Preso e torturado pelos colonizadores ingleses, recusou revelar os seus segredos: a energia atômica, que depois moveria o Nautilus. Ao fugir com um grupo de seguidores fiéis, Nemo deixou para trás a família morta (esposa e filho) e tratou de construir o submarino atômico, que usaria para atacar os navios britânicos de guerra ou transportadores de armas, tornando-se assim um terrível “anjo da vingança”.
         Sobre isso a película mostra uma cena antológica quando Nemo, com um olhar ensandecido, comanda a carga do Nautilus contra um navio, até a colisão.
         Aronnax, embora fascinado pelo imenso mundo submarino posto à disposição da sua curiosidade cientifica, não pode concordar com tais procedimentos, e fará o possível para convencer o capitão a disponibilizar os seus conhecimentos para a humanidade, e cessar a sua “jihad”.
         Outra cena antológica — dessas que a gente grava para o resto da vida — é a luta da tripulação do submarino com a lula gigante, o terror dos oceanos. Por ela se vê que na década de 50 já haviam boas trucagens no cinema. Aliás, Walt Disney e sua equipe sempre foram bons em trucagens.
         Ned Land (Kirk Douglas) faz o contraponto humorístico do austero e sombrio Capitão Nemo. Ned faz amizade com a foca de bordo e acidentalmente engole um peixinho em conserva. É também o rebelde da história, que não se conforma com o cativeiro e luta pela liberdade, bem mais que Aronnax e Conseil.
         Vinte mil léguas submarinas é um épico grandioso que se sustenta na fatídica figura do Capitão Nemo. E em seu final trágico, quando Nemo agoniza ao ser mortalmente baleado, resta uma profecia de esperança: de que aqueles segredos científicos, que se perdem com Nemo, serão um dia descobertos pela humanidade, “quando a Deus aprouver”.
Miguel Carqueija

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

As Aventuras de Gulliver no Palco

Aventuras de Gulliver. Peça de teatro baseada no romance As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Escrita e dirigida por Dario Uzan, da Companhia Articularte, São Paulo. Lançada originalmente em 2010.

Lemuel Gulliver é um jovem destemido em busca de novas experiências e aventuras. Deixa a Inglaterra e singra os mares, mas não contava com os contratempos do destino. Em decorrência de uma forte tempestade, o navio naufraga e ele vai parar numa ilha desconhecida chamada Lilliput. Partindo desta premissa do clássico As Viagens de Gulliver (Gulliver´s Travels), do escritor irlandês Jonathan Swift, escrito em 1726, a Companhia Articularte de Teatro apresenta uma visão muito particular deste romance de viagens, que originalmente buscou satirizar os costumes políticos e científicos do século XVIII.
Gulliver descobre que Lilliput é habitada por pessoas muito pequenas, com apenas seis centímetros de altura!, e passa a conviver com os problemas da sociedade local, envolta em sérias divergências políticas. Gulliver resolve não tomar partido, procurando arbitrar os problemas entre os grupos rivais – no caso, a intenção do autor era criticar os ingleses e os franceses. A esta proposta séria do autor, a peça prioriza o aspecto lúdico, com Gulliver resolvendo problemas do cotidiano dos pequeninos. E é justamente neste contraste que a peça tem um dos seus grandes momentos de realização, ao contrapor o ator que protagoniza Gulliver com os vários bonecos que representam os habitantes da ilha. Este trecho impulsiona mesmo o interesse pelo restante da peça, por causa do bom resultado desta interação, complementado por uma cenografia agradável e criativa.
Como se sabe, o romance é dividido em quatro partes, mas a peça enfoca os dois primeiros, daí o motivo de chamar Aventuras de Gulliver. Na segunda parte, o herói deixa Lilliput, adentra o mar novamente, mas encontra uma nova ilha, chamada de Brobdingnag – o nome esquisito não é fortuito, pois serve apara acentuar outra realidade. Diferentemente do que viveu em Lilliput, agora Gulliver é que é um pequeno ser frente aos gigantescos habitantes da nova ilha. Ele é capturado e passa a viver numa família sob os cuidados de uma menina. Explorado por um pai malvado até a exaustão, é vendido para servir de atração junto às pessoas desta sociedade. Até que a rainha intercede ao seu favor e ele ganha o mar novamente, desta vez para voltar à sua casa – que, aliás, também é uma ilha!
Nesta segunda parte, o objetivo de Swift era ridicularizar a suposta “grandeza” de saber dos cientistas – que não trazia, em sua opinião, benefícios concretos à sociedade –, mas na peça a relação enfatiza um aspecto mais social, da exploração e humilhação de um estrangeiro em uma sociedade aparentemente mais poderosa. Claro que esta interpretação subjaz no subtexto da trama, pois em si ela mantém o aspecto prioritário do entretenimento e com isso, consegue agradar tanto as crianças pela diversão e imaginação, como ao adulto pela sugestão crítica embutida.
Vale ressaltar o estilo do texto, na adaptação feita pelo diretor, Dario Uzam. Muito saboroso, ao priorizar as rimas, os provérbios, os ditos populares, as advinhas e os limeriques, o texto confere um misto de encantamento e estranhamento, além de sublinhar um efeito de distanciamento imagético que torna mais verossímil a proposta, especialmente se encarada do ponto de vista infantil, teoricamente mais aberto à imaginação irrestrita.
Embora este romance de Swift seja muito conhecido, com várias adaptações na TV e no cinema, o olhar da Cia. Articularte tem seu mérito próprio, ao despertar um interesse diferenciado nos pais e nos filhos, cada um do seu ponto de vista. Além disso é um espetáculo teatral de entretenimento efetivo, seja pela qualidade do texto, seja pela boa dramaturgia posta em cena pelos atores e os muitos bonecos, cada um deles uma atração à parte no desenrolar da história.

– Marcello Simão Branco

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Distrito Federal, Luiz Bras

Distrito Federal, Luiz Bras. 280 páginas.Editora Patuá, São Paulo, 2015.

Luiz Bras estreou no restrito ambiente da ficção especulativa literária há menos de dez anos, mas já faz parte dos grandes nomes do gênero no país. Fica fácil entender o por quê quando descobrimos que Bras é clone de Nelson de Oliveira, importante escritor mainstream que se retirou da lida para algum refúgio paradisíaco, para curtir os mimos proporcionados pelos milhões de dólares de seu bem merecido patrimônio. Bras herdou de Oliveira a habilidade com as palavras, que tem aplicado no exercício da ficção especulativa, a qual está empenhado em entender e interagir.
Entre os muitos títulos do autor estão as bem avaliadas coletâneas de contos Paraíso líquido (2010), Máquina Macunaíma (2013) e Pequena coleção de grandes horrores (2014), os romances Sozinho no deserto extremo (2012), Sonho, sombras e super-heróis (2011) e Babel Hotel (2009), a não ficção Muitas peles (2011) e uma porção de antologias, como autor selecionado, como organizador ou ambos.
Um dos traços de Bras é sua busca constante por uma voz particular, que se aproveita de um estilo maduro com traços pós-modernos e poesia concretista abusando de aliterações e pleonasmos, além de propostas narrativas que fogem do padrão convencional sem perder de vista os elementos especulativos, geralmente da ficção científica mas também da fantasia e do horror, com um diálogo próximo ao do estilo que se convencionou chamar de cyberpunk, com o qual o autor parece se identificar. Outra característica de Brás é sua facilidade para lidar com temas nacionais de todos os matizes, desde elementos folclóricos até a política nacional. E é exatamente este o caso de Distrito Federal, romance que o autor nomeou como "rapsódia tupinipunk", que revela muito sobre a forma como o autor a compôs.
Trata-se de um texto experimental, com pendão inegavelmente poético, que retoma ideias testadas em dois contos homônimos vistos em suas antologias anteriores. A história é um vitral formado por pequenas narrativas focadas nas ações e solilóquios de um curupira – o último de sua espécie – que, enlouquecido com a destruição das matas brasileiras, toma o corpo de um jovem humano e passa a assassinar, com requintes de artística crueldade, a população corrupta da capital do país: deputados, senadores, ministros, governadores, prefeitos, secretários, banqueiros, tesoureiros, políticos de forma geral pois, para o curupira, a corrupção fede terrivelmente.
As ações deste improvável anjo vingador, que sempre escapa de qualquer tentativa de captura, faz surgir um exército de imitadores que matam da mesma forma que ele. Há algum conflito quando o curupira encontra, por acaso, o último saci, que também tomou o corpo de alguém e está matando, mas como são inimigos naturais, acabam não se entendendo.
Na medida em que o curupira e o saci promovem sua cruzada sangrenta, a realidade vai sendo sobreposta pela de um popular jogo eletrônico online, justamente chamado de Distrito Federal, que mistura política,  mitologia e muita violência. O surgimento de uma criança especial, que não é nem menino nem menina, exacerba ainda mais os acontecimentos, o que pode levar ao fim da humanidade sobre o planeta.
A leitura do texto é fácil e ligeira, com abundância de frases muito curtas, mas a narrativa fragmentária não dificulta o entendimento do enredo, embora este seja algo secundário na obra. A experiência estética literária é bem mais importante aqui, por isso é recomendável que o leitor esteja aberto à ela.
Distrito Federal é uma publicação da editora paulista Patuá, cujo lema "livros são amuletos" combina perfeitamente com este romance, que tem 280 páginas em papel polem e acabamento luxuoso, encadernado com capas duras e ilustrado por Teo Adorno – outro clone que Nelson de Oliveira deixou para trás.
Uma última observação que se pode fazer sobre Distrito Federal está expressa, de forma clara e absoluta, na última página do volume: "...reunião de ciência & religião, passado, presente & futuro, cultura popular & alta cultura..."; é a receita de Luiz Brás para resolver o histórico impasse entre a ficção de gênero e o mainstream, que tem buscado desde a sua estreia. Desta forma, Distrito Federal é a proposta mais bem acabada do autor para a ficção de gênero brasileira. Resta saber se o fandom e o mainstream, monstros ferozes, cheios de tentáculos e presas afiadas, vão entender isso. Se não entenderem, azar deles. Luiz Bras entendeu muito bem.
Cesar Silva

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Os Bárbaros Invadem a Terra (The Mysterians, Japão, 1957)


 Um cientista descobre um pequeno planeta localizado entre Marte e Saturno e o batiza de “Mysteroid”. Em seguida, a Terra é surpreendida pelo ataque de um robô gigante acionado por controle remoto, que pertence a uma raça alienígena vinda desse planeta. Chamados de “Mysterians” (do título original em inglês), eles ocupam uma pequena área próxima ao famoso Monte Fuji, no Japão, com uma nave gigantesca parecendo uma redoma. Eles são humanoides e solicitam para que os terráqueos forneçam mulheres para miscigenação e continuidade de sua espécie em decadência, uma vez que destruíram seu planeta com um holocausto nuclear e os poucos sobreviventes se refugiaram em Marte, com seus bebês nascendo deformados por causa dos efeitos radioativos do apocalipse.
Desconfiados das reais intenções dos extraterrestres, o governo japonês, representando a humanidade, convoca o auxílio de outros países como os Estados Unidos e a antiga União Soviética, e juntos decidem atacar os invasores com canhões, mísseis, bombas, aviões e tanques de guerra, numa luta desigual com os alienígenas possuindo uma tecnologia superior e armas potentes com raios de calor.
Com um sonoro título nacional, “Os Bárbaros Invadem a Terra” foi dirigido pelo especialista Ishiro Honda (1911 / 1993), de inúmeros outros filmes preciosos do cinema fantástico bagaceiro como “Godzilla” (1954), “O Monstro da Bomba H” (1958) e “Matango, a Ilha da Morte” (1963). É uma divertida ficção científica lançada na nostálgica e produtiva década de 50 do século passado, um período extremamente representativo com uma infinidade de filmes de horror e FC de todos os temas, especialmente abordando questões relacionadas com a tensão permanente da guerra fria e os efeitos de uma catástrofe atômica global.
É um filme que se situa dentro do tema que aborda invasões alienígenas, apresentando batalhas com miniaturas e um robô gigante chamado “Moguera” destruindo cenários de uma cidade, simulando terremotos e incêndios, com efeitos especiais expressivos e impressionantes para a época, difíceis de serem produzidos. Um tempo no passado onde não existiam os efeitos de computação gráfica que seriam comuns dezenas de anos depois, muitas vezes tornando tudo muito artificial. O monstro mecânico gigante é hilário de tão tosco, com antenas e um nariz pontudo, além de soltar raios mortais de calor pelos olhos. O foguete dos humanos também é divertido de tão bagaceiro, num esforço militar da Terra para tentar combater os invasores do espaço sideral. A aparência dos alienígenas é patética, eles são humanoides usando capacetes de motocicletas e vestindo capas coloridas e luvas.
Podemos perceber a tentativa de uma mensagem de advertência para a humanidade, no sentido de diminuir a tensão perturbadora da guerra fria daquele período entre as principais potências do mundo, alertando para que não seja cometido o mesmo erro dos Mysterians, que quase exterminaram por completo sua raça numa guerra nuclear. E convocando países rivais como EUA e URSS para unirem forças no combate ao inimigo comum, alienígenas invadindo nosso planeta.
Curiosamente, foram produzidas duas continuações, a primeira em 1959 com o nome “Mundos em Guerra” (Battle in Outer Space), também dirigido por Ishiro Honda. E a outra em 1977, “The War in Space”, também produção japonesa com direção de Jun Fukuda. 
(Juvenatrix – 01/12/16)

terça-feira, 15 de novembro de 2016

O Incrível Homem que Encolheu

O Incrível Homem que Encolheu (The Incredible Shrinking Man), Richard Matheson. 343 páginas. Tradução de Jacqueline Valpassos. Capa de Rodrigo Valpassos. Osasco: Editora Novo Século, 2010.


Nos últimos anos a editora Novo Século fez um ótimo trabalho ao publicar no país boa parte da obra de Richard Matheson. Primeiro republicou seu livro mais conhecido, o clássico Eu sou a Lenda (I am Legend, 1954), em 2007, no embalo do lançamento da terceira adaptação cinematográfica da história, acompanhado por vários dos seus melhores contos, num volume um tanto incomum, ao misturar um romance seguido por narrativas curtas. Já em 2009 lançou o inédito Hell House: A Casa Infernal (Hell House, 1971), romance impactante de horror, que também foi bem adaptado para o cinema, no início dos anos 1970. E em 2010 surgiu no Brasil outro texto clássico: O Incrível Homem que Encolheu, que também é seguido por vários dos seus notáveis contos de ficção científica, numa história por ele adaptada ao cinema. Sob a direção de Jack Arnold, é um dos melhores da safra gloriosa de filmes de FC da década de 1950.
Norte-americano nascido em 1926 e falecido em 2013 Richard Matheson foi um dos mais talentosos autores do gênero surgidos a partir dos anos 1950, ainda que não tenha ganhando tantos prêmios e popularidade como contemporâneos seus como, por exemplo, Philip K. Dick e Robert Silverberg. O autor, ao que parece, seguiu uma trajetória peculiar, semelhante à de Ray Bradbury, embora mais constante, de escrever textos excelentes em gêneros afins, como a ficção científica, a fantasia sombria e o horror, sendo que boa parte deles recebeu competentes adaptações para o cinema e a televisão, realizadas por ele mesmo. Não é à toa, por exemplo, que Matheson e Bradbury roteirizaram episódios para séries cultuadas como Além da Imaginação e Galeria do Terror, entre outras.
Este volume traz, além de O Incrível Homem que Encolheu, mais nove histórias curtas, entre contos e noveletas. Embora a motivação para esta resenha seja o romance, aproveitarei para analisar também as outras histórias.
Mesmo não sendo o seu primeiro romance publicado, O Incrível Homem que Encolheu (de 1956) tornou o autor mais conhecido, devido à versão para o cinema, em 1957. Mesmo assim, em termos de estrutura narrativa, é mais semelhante a um conto do que a um romance. Existe uma ideia principal que é explorada à exaustão: num belo dia, o infortunado Scott Carey recebe uma nuvem radioativa num passeio de barco e pouco depois começa a encolher inexoravelmente. Mesmo com esta estrutura talvez mais afeita a um texto mais enxuto, a extensão da história nos dá a chance de acompanhar de forma comovente os detalhes da profunda transformação da vida do personagem, em todos os aspectos: biológico, social, sentimental, existencial.
De seus 1m 82 cm, Scott Carey vai continuamente diminuindo de tamanho para espanto e assombro de sua esposa, de seu irmão, de sua filha e dos médicos que tentam curá-lo de todas as maneiras. Por fim, descobrem a causa de seu encolhimento, uma mistura entre pesticidadas e radiação numa combinação específica, mas mesmo retardá-la mostra-se uma tarefa frustrante e impossível.
Ao invés de contar a história de uma forma linear, como a realizada pela adaptação cinematográfica, o leitor é surpreendido com dois momentos: Dele já minúsculo, definhando dos centímetros para os milímetros e preso no interior de um agora gigantesco porão, e ao seu processo contínuo de diminuição em que aos poucos perde o emprego, tem seu feliz casamento destruído, torna-se vítima de toda sorte de infelicidades e crueldades, como quando tem de ser livrar de um pedófilo, de um grupo de adolescentes que o humilha e ao tornar-se atração do jornalismo sensacionalista. Desta maneira, Matheson deixou o drama mais intenso, além de enriquecer os dois momentos, num processo gradativo de aproximação entre um e outro.
Nesta história, Matheson retoma o tema do herói solitário e desafortunado que tem de lutar contra um mundo inteiro, tornando-se ele o diferente da norma. Mas se o Robert Neville, de Eu Sou a Lenda transforma-se um pária dentro de uma nova realidade, a Scott Carey nem isso é possível, pois ele é o único ser humano a conviver numa realidade cada vez mais macroscópica e hostil, numa dimensão de solidão e desamparo ainda maior.
Stephen King, que sempre o cita como uma de suas grandes influências, tentou realizar algo semelhante quando escreveu, sob o pseudônimo de Richard Bachman, o romance A Maldição do Cigano (Thinner, 1984), adaptado para a TV. Aqui com uma premissa de horror, um sujeito obeso atropela por acaso a mãe de um cigano e este o amaldiçoa com a perda inexorável de peso. Assim como Carey, Billy Halleck procura por todos os meios cessar o processo, primeiro com a ciência, depois com o sobrenatural. King adota uma narrativa linear, ao contrário de Matheson, mas a linha dramática da história é semelhante.
Por sua crueza e fatalismo, O Incrível Homem que Encolheu é mais triste e assustador, ainda que não seja depressivo. É que não há como deixar de se compadecer do drama e das agruras crescentes de Scott Carey em sobreviver nesta autêntica maldição que o acometeu. Se no ambiente externo, social e familiar, ele se torna uma aberração, encolhendo diariamente, tornando-se um anão e menos que isso, no porão tem de enfrentar dificuldades mais vitais, como alimentos, roupas e abrigo e meio a um ambiente selvagem e surpreendentemente inóspito. Sua grande batalha é com uma aranha viúva-negra que tenta arrastá-lo para a sua teia durante a maior parte da história. Por sinal, a capa da edição brasileira deixa de representar este combate mais importante para se fixar no gato da casa que não chega a representar uma grande ameaça a Carey. Ainda que a capa não seja ruim, acredito que não tenha sido a melhor decisão retirar a aranha da ilustração principal, conforme vista nas primeiras edições do romance e no cartaz do filme.
Já o texto é efetivo em sua simplicidade, fluência e exatidão descritiva, longe de perder-se numa autopiedade emocional e em grandes introspecções. Dentro deste contexto, há passagens dramáticas também belas, especialmente quando Carey conhece uma linda anã num circo e percebe que continua tendo os desejos de um homem além de, mais adiante, redescobrir outro sentido para a vida, depois de encolher a ponto de não ser mais visto a olho nu.
Scott Carey não se deixa abater – apesar de cogitar o suicídio algumas vezes –, e é em sua luta por sobrevivência que a narrativa adquire um grande alcance moral. Viver, continuar a despeito das maiores dificuldades e sofrimentos. Até que a sua nova e ínfima condição tenha uma justificativa própria, como ele mesmo atesta ao descobrir que o seu processo de diminuição não o torna menos inteligente e, sobretudo, menos humano. O Incrível Homem que Encolheu é um romance com premissa de ficção científica de dimensão metafísica e um desenvolvimento de pleno horror e superação, na jornada de Carey rumo ao desconhecido.

*
Depois de ler uma história tão forte o melhor teria sido colocar o livro de lado e deixar-se absorver por suas emoções e implicações despertadas. Pelo menos é isso o que costumo fazer após a leitura de um livro especialmente interessante, como este que contém O Incrível Homem que Encolheu. Porém, o livro continua com mais nove histórias e isso provoca uma sensação de estranheza e certo desconforto, pois queria reter a última impressão do volume após ler a história título.
É possível que a intenção da Novo Século tenha sido de economizar, pois deve ter comprado alguns volumes de contos junto com os romances e ficou com receio de lançar as coletâneas como títulos próprios. Pode fazer sentido, mas seria melhor para o leitor saber desde o início que teria em mãos uma coleção de histórias curtas e não um romance seguido delas. Se foi este o motivo, não deveria haver receio com um autor deste calibre.


Em todo caso, após o desconforto inicial, o prazer da leitura é reiniciado, pois as demais histórias mantém o ótimo nível. São contos e noveletas escritas nas décadas de 60 e 70, as mais produtivas de sua carreira. Algumas delas são mesmo chocantes ao explorar os limites da miséria humana como em “O Teste”, “O Distribuidor” e “A Caixa”. No primeiro, em um futuro próximo, devido a uma superpopulação de idosos eles começam a ser eliminados quando se mostram senis ou inúteis para a sociedade. A narração enfoca o tema a partir de um filho que vê seu pai prestes a passar pela sinistra prova. Já a segunda mostra a figura de um sujeito que muda para uma vizinhança e procura se mostrar simpático e prestativo demais, até que suas reais intenções começam a se revelar de forma insidiosa. É uma curiosa variação sobre a figura do diabo. E na terceira história um estranho pacote é deixado na porta da casa de um casal. Após descobrirem que podem lucrar com uma caixa contida no seu interior, nem que com isso provoquem a morte de estranhos, a mulher é vencida pela curiosidade com consequências surpreendentes. Este conto recebeu uma boa adaptação para o cinema em 2009, estrelado por Cameron Diaz.
A maioria destas histórias está mais próxima do horror, não necessariamente sobrenatural e sim mais psicológico, com situações extremas a que são colocados os personagens, em especial em “Encurralado”. Muito conhecida através da adaptação para a TV norte-americana realizada pelo então jovem desconhecido Steven Spielberg, o texto de Matheson mantém o suspense de tirar o fôlego, numa história arrepiante. Uma obra-prima.
Neste volume, Matheson mostra, invariavelmente, pessoas lidando com grandes adversidades, ou em alguns casos, sendo o agente dela. No fundo, o mundo é um lugar muito hostil e indiferente às necessidades e dramas humanos; mas também o homem pode, por vezes, agir neste mesmo mundo para torná-lo ainda mais cruel para as outras pessoas ou seres vivos.

Marcello Simão Branco

Pânico no Lago: O Capítulo Final (Lake Placid: The Final Chapter, EUA, 2012)


Assim como os tubarões, os crocodilos também são maltratados pelo cinema fantástico bagaceiro, com muitos filmes ruins que contribuem para denegrir a imagem desses répteis.
É curioso mencionar como os realizadores da indústria de cinema são oportunistas e preguiçosos, pois existem várias franquias completamente desnecessárias, com muitos filmes todos iguais e com uma ideia central clichê tão explorada que não tem mais potencial para manter o assunto. Filmes interessantes e com bons elencos como “Anaconda” (1997) “Pânico na Floresta” (Wrong Turn, 2003) e “Pânico no Lago” (Lake Placid, 1999), estes últimos com seus péssimos títulos nacionais com a palavra “pânico” (graças à preguiça e falta de criatividade das distribuidoras brasileiras), não deveriam ter sequências. Pois todas as suas infindáveis continuações não passaram de pequenas variações da mesma história, e agregaram pouco ou quase nada aos respectivos universos ficcionais.
Sendo assim, é inevitável que o interesse do espectador se perca no meio de tanta porcaria, ficando muito difícil acompanhar as enormes franquias com filmes tranqueiras, até mesmo para os apreciadores do cinema fantástico bagaceiro.
O quarto episódio de “Pânico no Lago”, agora com o subtítulo “O Capítulo Final”, lançado em 2012 com direção de Don Michael Paul, copia a mesma ideia de “Sexta-Feira 13 – Parte 4” (1984) ao utilizar o mesmo subtítulo. Sendo que ambas as intermináveis franquias também não pararam por aí como anunciavam no título.
O roteiro de David Reed (que também escreveu a parte 3) não inova e mantém todos os mesmos clichês. O lago onde vivem os imensos crocodilos assassinos comedores de gente está agora isolado por uma cerca elétrica construída por um engenheiro do exército, Loflin (Paul Nicholls). Os imensos répteis são únicos e raros e ao invés de serem eliminados, eles são preservados para estudos, mesmo que isso signifique o risco de mais mortes acidentais com humanos incautos. Os problemas novamente surgem depois que um ônibus com estudantes adolescentes e integrantes da equipe escolar de natação, entra por engano num dos portões da cerca elétrica, levando os jovens ao seu destino como comida para os crocodilos.
Para combater os monstros e tentar resgatar os estudantes, temos a xerife local, Giove (a bela alemã Elisabeth Röhm), auxiliada pela caçadora e agente do governo Reba (Yancy Butler), uma mulher metida à Rambo e sobrevivente do filme anterior, que adora portar uma arma, atirar em crocodilos e fazer piadas idiotas. Entre os adolescentes acéfalos destinados a fornecer suas carnes para a dieta dos répteis, estão a apreciadora de livros e filha da xerife, Cloe (Poppy Lee Friar), sua amiga Elaine (Caroline Ford), e o amigo e interesse romântico Drew (Daniel Black). Além de Max (Benedict Smith), filho do engenheiro responsável pela cerca e que trabalha como vigia do portão. E para complicar as ações de resgate temos um caçador inescrupuloso, Jim Bickerman (o veterano Robert Englund, eternamente associado ao vilão Freddy Krueger, da série “A Hora do Pesadelo”). Ele tem interesse no DNA dos crocodilos como forma de obter dinheiro ilegal e possui relações com a família que vivia no lago e iniciou toda a história com esses répteis carnívoros.
Nessa parte 4 de “Pânico no Lago” temos muitas mortes sangrentas, com pessoas sendo rasgadas pelos dentes afiados e fornecendo suas carnes e ossos para serem devorados pelos crocodilos famintos. Mas, os efeitos de CGI tornam tudo muito artificial, diminuindo o impacto de violência nas cenas de ataques. Os personagens são todos patéticos e o elenco é inexpressivo, exceto talvez pelo carismático Robert Englund no papel do vilão e que deve ter aceitado participar para ajudar a pagar as contas, ou talvez para se divertir um pouco em seu final de carreira. E boa parte de nossa tolerância com a sua participação se deve aos bons e nostálgicos tempos de Freddy Krueger.
Apenas como curiosidade catalográfica, a série “Pânico no Lago” tem 5 filmes. O original foi lançado em 1999 e tem um elenco expressivo com Bill Pullman, Bridget Fonda, Oliver Platt e Brendan Gleeson. Depois foram lançadas as continuações em 2007 (parte 2), 2010 (parte 3) e 2015 (parte 5), sendo que esta foi chamada de “Pânico no Lago: Projeto Anaconda” (Lake Placid vs. Anaconda), com o crossover entre o crocodilo gigante com a cobra de tamanho descomunal da série “Anaconda”. Só comprovando que os realizadores oportunistas não estão interessados em boas histórias e sim apenas em tentar obter algum lucro, mesmo que pequeno, utilizando nomes que de alguma forma já fazem parte da cultura popular.
(Juvenatrix – 15/11/16)

domingo, 13 de novembro de 2016

984 - Prisioneiro do Futuro (984: Prisoner of the Future, Canadá, 1982)


O cineasta húngaro Tibor Takacs, que foi o responsável pelo cultuado “O Portão” (The Gate, 1987) e outras tranqueiras divertidas, teve como um de seus primeiros trabalhos a ficção científica distópica “984 – O Prisioneiro do Futuro”, produzido em 1979 e lançado em 1982, e que também tem o título original alternativo “The Tomorrow Man”.
“Algum dia no futuro existirá uma prisão de segurança máxima em algum lugar na América do Norte, mantendo prisioneiro de um novo regime.”
Essa introdução já permite visualizar a ideia central do filme: um futuro distópico, com o surgimento de um novo modelo político autoritário, que pune com rigor e violência seus oponentes, sem oportunidade de defesa ou comprovação de culpa.
Um executivo bem sucedido, Tom Weston (Stephen Markle) é levado para uma prisão de segurança máxima controlada por guardas robôs e administrada por um diretor sádico (Don Francks). Acusado de fazer parte de um grupo de empresários ricos e conspiradores que querem derrubar o governo liderado pelo Dr. Braxton Fontaine (Andrew Foot), que instaurou um “mundo novo” com o regime político chamado “O Movimento”. Sem chance de se defender, ele logo recebe a identificação numérica “984” (do título do filme), e torna-se um prisioneiro que sofre interrogatórios com lavagem cerebral e espancamentos (através do guarda Jeffries, interpretado por Stan Wilson) para admitir seu suposto crime contra a humanidade. E também para servir de diversão e alívio do tédio do diretor do presídio, que vigia tudo num sistema de monitoramento com câmeras e insinua um mistério perturbador sobre o mundo exterior.
O filme é claramente datado, onde percebemos características que nos remetem ao final dos anos 70 e década de 80 do século passado. A produção é paupérrima e os robôs futuristas com os olhos vermelhos que controlam o presídio são hilariantes de tão precários, se movimentando com rodinhas nos pés. As ações se concentram no ambiente sinistro e claustrofóbico da penitenciária, com uma atmosfera sufocante imposta pelas imensas paredes de concreto, alternando para alguns momentos no mundo exterior em flashbacks do personagem Tom Weston com sua família, no trabalho e em reuniões conspiratórias.
A história básica é interessante, mesmo sendo um clichê já muito explorado, e a intenção dos realizadores era apresentar o filme como piloto para uma série de TV cujo projeto foi cancelado. Curiosamente, ele não consegue se sustentar como longa metragem, com a sensação de repetição causando um incômodo inevitável, e ainda temos um roteiro confuso com informações soltas provavelmente de forma proposital para serem melhor exploradas caso se transformasse numa série televisiva. O ideal seria a exibição num formato menor, apenas como um episódio único de cerca de meia hora de alguma outra série de TV com histórias envolvendo elementos fantásticos..
Apesar dos problemas, “984 – Prisioneiro do Futuro” é um filme obscuro com uma atmosfera sombria e que garante alguns bons momentos de entretenimento para os apreciadores do cinema bagaceiro, principalmente nas cenas com os robôs toscos e no desfecho desolador e depressivo.
 (Juvenatrix – 13/11/16)

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

A Fuga do Terror (Blood Bath, EUA, 1976)


Lançado no Brasil na época dos saudosos vídeos VHS pela “América Vídeo”, “A Fuga do Terror” (mais um péssimo título nacional) é uma obscura antologia de contos de horror, amarrados por uma história central. A produção é bagaceira ao extremo, com um roteiro pouco inspirado, num trabalho do diretor Joel M. Reed. Ele que também foi o responsável por outras tranqueiras como “O Incrível Show de Torturas” (1976), influenciado pelos filmes “gore” de H. G. Lewis, e “Night of the Zombies” (1981).
O elenco e equipe de produção de baixo orçamento de filmes de horror discute num jantar sobre histórias assustadoras, e cada um deles apresenta um conto do gênero. São quatro histórias independentes e outra de fundo envolvendo um mistério sobrenatural com o cineasta da produtora.
Na primeira história, temos o caso de um assassino de aluguel bem sucedido que utiliza técnicas eficazes em sua profissão, mas que é surpreendido pelo próprio artefato que estava utilizando para cumprir um dos trabalhos em que foi contratado. Em seguida, um marido descontente com a esposa decide eliminá-la, mas não imaginava as consequências trágicas para obter seu intento ao se envolver com magia negra e uma moeda que permite viajar para o passado. A próxima história é sobre um agiota que se aproveita do desespero de seus clientes endividados, porém ele acidentalmente é trancado num cofre e recebe a visita do fantasma de um homem lesado por seus negócios obscuros. O último conto mostra um lutador de artes marciais que estudou no Oriente, mas não gosta de seguir os mandamentos de disciplina que foram ensinados, e utiliza meios desonestos para administrar sua academia de lutas nos Estados Unidos. Após ser confrontado por um antigo mestre do templo onde foi doutrinado, envolvendo técnicas mágicas de luta, ele encontra um desfecho perturbador.
Apesar das ideias básicas das histórias até apresentarem algum potencial razoável para serem desenvolvidas, como a produção é extremamente tosca de uma forma geral, com efeitos paupérrimos e interpretações sofríveis do elenco, além da previsibilidade do roteiro e do pouco sangue em cena, o resultado final afastou as tentativas de estabelecer uma empatia com o espectador, tornando esta antologia de contos em algo pouco inspirado e destinado ao limbo dos esquecidos.
(Juvenatrix – 10/11/16)

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O Vale Proibido (The Valley of Gwangi, EUA, 1969)


Numa época sem CGI, os efeitos dos monstros eram obtidos pela trabalhosa técnica “stop motion”, que teve no especialista Ray Harryhausen (1920 / 2013) o grande e eterno mestre. “O Vale Proibido” (The Valley of Gwangi, 1969), dirigido por James O´Connolly, é um daqueles típicos filmes da nostálgica “Sessão da Tarde” da TV Globo, uma aventura misturando elementos de western, fantasia, horror e ficção científica. A história é ambientada na virada do século 19 para 20, num vale proibido no México, onde dinossauros esquecidos pelo tempo viviam tranquilamente, até que os homens descobrissem essa região perdida e decidissem capturar um tiranossauro para exibição num circo.
“Gwangi” (do título original) é uma palavra nativa americana que significa “lagarto”, e tem referência ao vale onde ainda vivem animais pré-históricos, e que não deveriam ser importunados para não despertar uma maldição, conforme as palavras ameaçadoras de uma velha cigana cega, Tia Zorina (Freda Jackson). O vale, cercado por montanhas em círculo, picos gigantes e abismos profundos, ainda esconde monstros de uma época remota e que estariam supostamente extintos. E, depois que um cavalo anão, apelidado de “El Diablo”, é raptado dessa região inóspita com a intenção de ser apresentado como atração bizarra de um circo, a supersticiosa cigana organiza uma ação para devolvê-lo ao local de origem.
Em paralelo, a bela T. J.  (a polonesa Gila Golan), que lidera uma equipe de artistas circenses, ao lado de Champ (Richard Carlson) e de seu par romântico, o cowboy galã Tuck Kirby (James Franciscus), reúne um grupo para tentar capturar novamente o pequeno cavalo pré-histórico, e acabam encontrando o vale. O grupo também tem a companhia de um cientista paleontólogo, o Prof. Horace Bromley (Laurence Naismith), cujo interesse é estudar os animais de 50 milhões de anos atrás. Uma vez no vale proibido, eles enfrentam os ataques mortais de um réptil voador (pteranodonte), e de um temível tiranossauro, que está faminto por suas carnes. Porém, ele é capturado como atração de circo. Sem estrutura adequada para mantê-lo preso, o monstro foge e espalha o caos, causando grande confusão na cidade e experimentando a carne humana em sua dieta.
Diversão garantida, principalmente pelos efeitos especiais de Ray Harryhausen, dando vida aos impressionantes animais do mundo perdido de um vale onde o tempo parou, com direito até a um confronto mortal entre o tiranossauro e um elefante de nossos tempos.
“O Vale Proibido” é uma refilmagem de “The Beast of Hollow Mountain” (1956) e sua história tem elementos que nos remetem a outros filmes com ideias e temáticas similares. Como “O Mundo Perdido” (nas versões de 1925 e 1960), baseado em livro de Arthur Conan Doyle e que mostra uma região perdida no Amazonas que abrigava animais pré-históricos. E também “King Kong” (1933, e que teve versões mais modernas em 1976 e 2005), utilizando a ideia de capturar o monstro para uma exibição pública, terminando inevitavelmente em tragédia.  
O ator James Franciscus é lembrado por seu papel do astronauta Brent em “De Volta ao Planeta dos Macacos” (1970), Richard Carlson é um rosto conhecido pelos divertidos filmes bagaceiros do cinema fantástico como “The Magnetic Monster” (1953), “Veio do Espaço” (1953) e “O Monstro da Lagoa Negra” (1954). Já o inglês Laurence Naismith esteve em “A Aldeia dos Amaldiçoados” (1960) e “Jasão e o Velo de Ouro” (1963), outro clássico memorável de Ray Harryhausen.
(Juvenatrix – 01/11/16)

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A casa assombrada, John Boyne

A casa assombrada (This house is haunted), John Boyne. Tradução de Henrique de Breia e Szolnoky. 296 páginas. Editora Companhia das Letras, 2015.

O apelo sinistro que um casarão antigo evoca no espírito humano é irresistível e os muitos fenômenos naturais que ocorrem nesse tipo de construção, como ruídos geralmente causados pela acomodação do madeirame, pelo vento assoviando nas frestas e por animais abrigados em suas paredes, e visões causadas pelo reconhecimento de padrões em seus detalhes barrocos, contribuem ainda mais para criar uma aura de mistério e assombro. Não é de admirar, portanto, que algumas das mais assustadores histórias de horror têm em construções assombradas os seus principais protagonistas: A assombração da casa da colina, de Shirley Jackson, A casa sobre o abismo, de William H. Hodgson, A casa das bruxas, de H. P. Lovecraft, O iluminado, de Stephen King, e O castelo de Otranto, de Horace Walpole, são apenas alguns exemplos que demonstram ser este um dos mais bem explorados filões do gênero.
O bem sucedido escritor irlandês John Boyne, que fez enorme sucesso com o premiado drama O menino do pijama listrado – também adaptado para o cinema – decidiu enveredar por esse auspicioso território em A casa assombrada, romance ao estilo gótico que homenageia esse modelo narrativo, publicado no Brasil pela editora Companhia das Letras.
A história conta como Eliza Caine, jovem londrina de meados do século 19, responde a um anúncio de jornal para o emprego de governanta em Gaudlin Hall, propriedade na área rural da Inglaterra, depois que, com a morte do pai, fica sem recursos de subsistência na capital. O trabalho parece adequado a ela, que tem experiência como professora de crianças, tarefa que será sua principal função nesse emprego. Contudo, muitos mistérios cercam o trabalho, a começar do momento em que Eliza desembarca do trem na pequena estação de Norfolk. A falta de informações sobre suas responsabilidades no trabalho, a ausência de seus empregadores, o estado de decadência do casarão e a estranheza das duas crianças das quais terá de cuidar, Isabella e Eustace, tornam as primeiras horas de Eliza em Gaudlin Hall numa espécie de pesadelo surreal, que não melhora em nada quando, ao deitar para sua primeira noite de sono, sente duas mãos agarrarem suas pernas sob os cobertores.
Contudo, Eliza é uma mulher decidida e resolve enfrentar toda e qualquer adversidade para cuidar das duas crianças inocentes colocadas sob sua responsabilidade. Sua busca por informações na área urbana do condado revela ser ainda mais perturbadora, pois as pessoas a hostilizam de forma evidente. A única fonte confiável de informação parece ser o advogado encarregado de administrar a propriedade, mas ele também a evita e, mesmo quando confrontado diretamente, foge do assunto. Mesmo com tantas dificuldades, agravadas por acidentes graves e bizarros que ocorrem constantemente com ela no interior do casarão, Eliza investiga a história que se esconde atrás das paredes de Gaudlin Hall, que envolve a morte de várias governantas que a antecederam no emprego, e conclui que há um fantasma na casa. Pior, há pelo menos dois.
Embora a história se passe em 1869, o texto de Boyne é moderno e não tenta emular o estilo das narrativas góticas da época, o que tira parte do romantismo que geralmente envolve o gênero. Além do mais, Boyne não é um autor de horror e as poucas tentativas para assustar o leitor são leves e discretas. Cenas de suspense, nas quais um autor especializado no gênero faria o leitor se retorcer em agonia, são rápidas e derivativas, parecendo que o autor ficou com dó dos leitores e decidiu poupá-los de detalhes sórdidos. Um pouco desse efeito é causado pela narrativa em primeira pessoa, com a própria Eliza contando a história. Sendo uma mulher cética e pragmática, não dá muita importância ao sobrenatural e enfrenta os fenômenos como se fossem situações corriqueiras, ainda que mortais.
Ou seja, A casa assombrada acaba por não ser um livro de horror, mas sim um drama familiar de raízes naturalistas com um leve pendão para o espiritismo. Por sorte, o autor evitou habilmente não fazer o romance soar proselitista ou doutrinário, sendo assim uma leitura agradável e positivista, que pode ser lido sem problemas mesmo por leitores que não gostam de histórias de terror. Os fãs de Boyne estão seguros.
Cesar Silva

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Escuridão Total sem Estrelas

Escuridão Total sem Estrelas (Full Dark, No Stars), Stephen King. 390 páginas. Tradução de Viviane Diniz. Rio de Janeiro: Suma de Letras, 2015.


Quando vi o livro em uma livraria pensei que se tratava de mais uma obra sobre a ausência de luz. Afinal, Escuridão Total sem Estrelas sugere isso, ainda mais pelo design do livro, com capa e contra-capa preta e as folhas pintadas de preto em sua espessura. E o efeito é marcante. Se assim fosse, faria companhia a autores tão bons e diversos como o nosso André Carneiro (1922-2014), o inglês John Wyndham (1903-1969) e o português José Saramago (1922-2010).
Tal impressão me agradou pela perspectiva de ver um autor como King abordar o tema, mas se desfez quando percebi que as quatro histórias – duas novelas e duas noveletas – tratavam, isto sim, da escuridão da alma humana. Nas sombras que habitam em cada um de nós, nos pensamentos escuros, ruins que temos vez por outra, especialmente quando diante de grandes problemas ou dificuldades. Normalmente afastamos rapidamente tais pensamentos – nos reprimindo por tê-los –, mas nas narrativas deste livro, King mostra como tais alternativas más podem, eventualmente, se tornar tentadoras, e aflorarem. Para a ilusão de um alívio imediato que se transforma num pesadelo de proporções inimagináveis.
Este fato é especialmente verdadeiro no caso da primeira história, “1922”. Por causa de uma disputa em torno da herança de uma propriedade, um casal se desentende, pois ele quer incorporar o terreno à fazenda em que já vivem, e ela quer vender para recomeçar a vida na cidade. De saída já sabemos que as coisas tiveram o pior desfecho, já que ele, num quarto de hotel, anos depois escreve uma confissão de como tramou com o filho adolescente a morte da sua esposa e mãe de seu filho. Colocar esta novela como a primeira do livro foi muito arriscado pois é extremamente chocante, tanto pelo ato em si, pela violência desencadeada e, principalmente, pelo que acontece depois na vida do pai e do filho. Confesso que tive de parar a leitura em certos momentos e, embora ficasse com a narrativa remoendo na cabeça durante o dia, me incomodava a perspectiva de enfrentá-la depois, mesmo querendo saber o que iria acontecer. Tudo vai mal para os dois, e a tentativa de escrever a confissão parece sugerir uma certa expiação do pai pelo ato em si e por ter incluído o pobre do fillho. Além de ser uma história pesada e violenta é muito triste. Dos textos mais fortes que li de Stephen King. E olha que li boa parte do que ele já escreveu.
“Gigante do Volante” conta a história de uma escritora que após apresentar uma palestra em uma biblioteca numa cidadezinha do interior do Maine, é surpreendida quando um pneu de seu carro fura na estrada. Até aí nada demais, mas surge um homenzarrão para ajudá-la. Sim, ele troca o pneu, mas não fica só nisso. Ela é estuprada e espancada, e só escapa porque finge estar morta. Para seu horror é colocada dentro de um cano de esgoto num matagal ao lado dos corpos de outras vítimas do monstro. A partir daí ela descobre que existe uma outra persona de si mesma, como se nascesse uma nova, pois o que faz nada tem a ver com a pacata escritora de histórias de suspense adocicado. Mas o mais inacreditável ainda está por vir, na figura da bibliotecária que a havia contratado, e sua ligação com o estuprador. Embora King não defenda que se faça justiça com as próprias mãos é uma história que toma partido da vítima e a justificativa para seus atos.
De certa forma isto ocorre também – e de forma ainda mais terrível – na novela que fecha o volume, “Um Bom Casamento”. Num dia qualquer uma mulher vai até a garagem da casa em busca de um par de pilhas para o controle remoto da TV, e descobre que seu amado e fiel marido é um serial killer. Ela encontra casualmente os documentos de uma das vítimas do famoso assassino que se identifica como Beadie. O que fazer? Esta pergunta a move durante todo o tempo, principalmente depois que o próprio marido descobre que ela soube de seu segredo, e nada faz contra ela. Como que a pedir um pacto em nome do casamento, dos filhos e, claro, pela própria vida dela. A solução encontrada pode ser discutível, mas é amplamente justificada. Principalmente em nome das muitas mulheres que ele estuprou, mutilou e assassinou ao longo de quase quarenta anos.
A terceira narrativa é a única com um elemento sobrenatural. Em “Extensão Justa”, um doente de câncer vê a chance de sobreviver ao fazer um acordo improvável com um camelô à beira da estrada. Ele nota que o vendedor nada vende, apenas fica sentado em uma cadeira e expõe sobre uma mesinha uma plaquinha com os dizeres: “extensão justa” que, no caso, se trata de oferecer um período a mais daquilo que mais se deseja. Pode ser tempo, dinheiro, carreira, amor, saúde. Claro que existe uma contrapartida, e deve haver uma transferência. No caso, alguém deve ser prejudicado, uma pessoa que seja odiada pelo beneficiado. Após uma breve hesitação ele afirma que é seu amigo de infância que deve receber tudo de ruim que paira sobre ele. Afinal, roubou sua primeira namorada e é muito mais bem sucedido economicamente. Com o pacto o câncer vai embora, sua vida financeira melhora, e seu amigo perde a esposa – a mesma antiga namorada – de câncer, um de seus filhos morre num acidente e outro fica seriamente doente, além da vida financeira da família piorar muito. O que espanta nesta história é como o personagem que faz o acordo com o Diabo é insensível a tudo o que acontece com seu amigo, com o qual ele continua convivendo. Ele vai ficando mais saudável e feliz quanto mais desgraças acontecem com o objeto de seu ódio.
Como observa Stephen King no seu ótimo posfácio, a pergunta recorrente que inspirou cada uma destas histórias é a de que ninguém conhece verdadeiramente outra pessoa, por mais presente, íntima ou amada que ela seja. Claro que o desconhecimento não precisa ser sobre algo necessariamente ruim, mas esta é a premissa do livro, quer dizer, mesmo de quem jamais desconfiaríamos coisas muito más podem surgir. É o que descobre a mulher brutalmente morta em “1922”; o que a escritora descobre sobre si mesma após ser violentada; a esposa feliz que, de repente descobre que seu marido é o oposto radical do que acreditava; e o cara que também descobre em si mesmo o bem estar de fazer o mal a alguém que sempre lhe foi bem próximo. Ora, em “1922” o tema motivador das ações é a ganância; em “Gigante do Volante” é a vingança; em “Extensão Justa” é a inveja e em “Um Bom Casamento” estamos diante de uma situação de ilusão, de auto-engano.
Para nossa fortuna Stephen King escreve muito e é profusamente publicado no Brasil. A qualidade de sua obra é acima da média, ou seja, mesmo um King menor muitas vezes é mais interessante do que outros autores no melhor de sua forma. Escuridão Total sem Estrelas recebeu os prêmios Bram Stoker e British Fantasy em 2010 na categoria “melhor coletânea”, e se distingue como um grande momento do autor. As quatro narrativas propõe uma questão fundamental e como cada personagem vai responder de acordo com suas circunstâncias e motivações. Um livro com histórias poderosas, que desestabiliza os personagens, transformando de forma definitiva suas vidas e, sobretudo, incomoda e perturba o leitor. Quantos escritores são capazes disso?

– Marcello Simão Branco

domingo, 23 de outubro de 2016

Os Reencarnados / A Morta Viva (The Undead, EUA, 1957)


Olhem para mim, todos sabem quem sou. Esta é a história do meu trabalho eterno em todas as épocas, as obscuras e esquecidas, e aquelas que ainda virão. Admirem o sutil funcionamento dos meus talentos, e rezem para que eu nunca volte o meu interesse para vocês!

Essa introdução do próprio diabo (interpretado por Richard Devon), com uma gargalhada de deboche no final, dá início ao filme bagaceiro de horror com elementos de fantasia “Os Reencarnados” / “A Morta Viva” (The Undead, 1957), produzido e dirigido por Roger Corman em início de carreira, através de sua produtora “American International Pictures” (AIP). Ele, que é conhecido pela carreira imensa com centenas de filmes, principalmente do gênero fantástico, cujas maiores características são os orçamentos reduzidos.
Com fotografia em preto e branco, curto com apenas 71 minutos de duração e filmado em apenas 6 dias, “The Undead” conta a história de um psiquiatra pesquisador, Quintus Ratcliff (Val Dufour), que desafia seu antigo professor Ulbrecht Olinger (Maurice Manson), com uma experiência arriscada de hipnose com regressão. Ele utiliza como cobaia uma bela jovem chamada Diana Love (Pamela Duncan), que encontra desocupada pelas ruas, oferecendo dinheiro para se submeter ao experimento.
Uma vez aceitando o dinheiro fácil, a garota é hipnotizada e sua mente a faz retornar no tempo em uma vida anterior durante a Idade Média, na pele de Helene (novamente Pamela Duncan), uma jovem acusada injustamente de bruxaria e condenada à morte por decapitação. Porém, ocorre uma interferência mental da moça do futuro e ela consegue fugir da prisão, iniciando uma série de ocorrências imprevistas que poderiam afetar a existência de todas as suas vidas no futuro. Através de uma trama envolvendo seu par romântico, Pendragon (Richard Garland) e a bela bruxa Livia (Allison Hayes), que tem interesse amoroso por ele e quer a morte de Helene para sair de seu caminho. Além do coveiro atrapalhado Smolkin (Mel Welles), que se diz enfeitiçado por bruxaria, fica cantando bobagens o tempo todo e alega ser meio maluco, e da bruxa velha e deformada Meg Maud (Dorothy Neumann), que quer ajudar Helene a se salvar de seus perseguidores.
Em paralelo, Satã está apenas assistindo toda a confusão como um espectador que tentará interferir no momento certo para conquistar mais almas para seu reino de caos. E o psiquiatra Quintus decide também ser hipnotizado para retornar ao passado e tentar consertar as coisas, oferecendo a solução para Helene através da escolha em aceitar a decapitação e permitir suas vidas futuras ajustando novamente a linha temporal, ou decidir fugir da condenação e viver em seu tempo, e com isso impedir a existências de suas próximas vidas.

Você está em transe, esta é a sua escolha: a morte agora, vida depois. Ou vida agora, e morte pata todo o sempre.
O roteiro explora o tema da reencarnação, aproveitando o lançamento do livro “The Search For Bridey Murphy”, de Morey Bernstein. A autoria é de Charles B. Griffith, que foi o responsável por outras bagaceiras da época também dirigidas por Roger Corman como “It Conquered the World”, “Not of This Earth” e “Attack of the Crab Monsters”, entre outros. A história é uma confusão completa, cheia de furos e situações absurdas, onde o resultado acaba convidando o espectador a não se importar com qualquer lógica ou coerência, e apenas aceitar os fatos na tentativa de diversão. Pois, o que realmente interessa no filme são os elementos de horror de uma época medieval onde havia muita conspiração e suposta feitiçaria, com constantes execuções violentas em público. Com uma atmosfera sinistra de um período sangrento da humanidade, em cenas filmadas simulando florestas fantasmagóricas envoltas com névoa constante.
A produção é paupérrima, com cenários toscos e efeitos tão bagaceiros que se tornam hilários, como as transformações da bruxa Livia em morcego ou uma gata preta, além da participação de um anão (Billy Barty) como um diabrete, que é uma pequena criatura sobrenatural pertencente à bruxa. Tem até uma cena de dança macabra num cemitério que é inacreditável de tão patética. Vale apenas pela curiosidade de ser um dos primeiros trabalhos do “Rei dos Filmes B” Roger Corman.
A bela atriz Allison Hayes é uma musa conhecida dos filmes bagaceiros do cinema fantástico do período, aparecendo em tranqueiras divertidas como “O Extraordinário” (The Unearthly, 1957), com o “cientista louco” John Carradine, “Os Zumbis de Mora Tau” (1957) e o cultuado “A Mulher de 15 Metros” (1958).

Príncipe da escuridão, criador do mal, arquiinimigo do céu. Satã, seja bem vindo ao sabá das feiticeiras.

(Juvenatrix – 23/10/16)