quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Ficções Amazônicas

 Ficções Amazônicas, Aparecida Vilaça e Francisco Vilaça Gaspar. Capa: Paula Carvalho. Ilustrações internas: Paloma Ronai. 211 páginas. São Paulo: Todavia, 2022.

 


A Amazônia é o maior e mais conhecido bioma brasileiro, que se estende por mais da metade do território brasileiro e alguns países vizinhos da América do Sul. Região de natureza poderosa, misteriosa e indomável, suscita, na mesma medida, paixões e cobiças, não poucas neste caso, criminosas. Por si só já é um manancial fantástico sem precisar que seja trabalhado explicitamente como uma expressão da ficção especulativa. E é justamente nas bordas entre o mainstream e o fantástico que os Vilaça escreveram a coletânea Ficções Amazônicas.

O livro reúne 11 histórias, algumas mais longas e outras mais curtas, tendo como painel temático de exploração imaginativa a Amazônia. Os textos ora flertam com o fantástico, ora o assumem, embora num plano oblíquo, como recurso para o drama, ao invés de condutor da narrativa em si. Nos dois casos, os autores mostram conhecimento de base acadêmica – Aparecida é antropóloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)  e Francisco é doutor em química, também pela UFRJ –, mas principalmente uma prosa fluente, limpa, agradável, no qual tanto personagens brancos, como indígenas se movem em busca de compreender as possíveis conexões dos mistérios da natureza e e sua cosmogonia com o mundo cartesiano e materialista do homem urbano.

Desta forma, em “Cinco amigos e um funeral”, um deles está com uma doença terminal e pede aos companheiros que um último desejo aconteça em plena selva amazônica. É um texto forte e surpreendente, que chega a chocar, pois o tal desejo é simplesmente ser devorado pelos amigos após sua morte. Confesso que uma novela sobre canibalismo não é o que eu esperava e talvez esta história pungente devesse, pelo seu impacto, ter sido deixada para o final e não no início. Isso porque as histórias subsequentes não apresentam o mesmo impacto dramático, embora a maioria tenha outros méritos.

Contos como, por exemplo, “O hipopótamo de Don Pablo”, “Garrincha da floresta” e “A epidemia”. Cada qual aborda um aspecto particular do viver amazônico. Na primeira, o sumiço de um hipopótamo – que originalmente pertencia ao zoológico do traficante colombiano Pablo Escobar e foi transformado numa reserva após sua morte – cumpre uma função fantástica na figura de uma mulher à procura dos seus filhos. “Garrincha da floresta” versa, em sentido amplo, sobre as transformações físicas e sobrenaturais no contato com elementos da natureza. E “A epidemia”, de uma doença que acomete aos indígenas após contato com os brancos, ‘sujos’, com suas impurezas externas e internas. Apesar do final um tanto inverossímil é uma noveleta forte, que demonstra bem como levamos a corrupção, em muitos sentidos, a povos e lugares que habitam uma espécie de outro universo filosófico, no qual vale o ser e não o ter.

Duas outras histórias acentuam o contraste entre o mundo natural e a sociedade civilizada. Primeiro com “Bristol, Amazônia”, interessante variação sobre o tema do portal espacial que conecta dois lugares de forma aparentemente fantástica, porque inexplicável. A partir de uma balada na cidade inglesa de Bristol, duas garotas, uma inglesa e uma salvadorenha, emergem, de repente, em um rio, onde são avistadas por uma indígena adolescente. Esta, inclusive, já havia visto no mesmo local um ano antes, um homem branco também surgir, mas nada contou a ninguém. Agora, ajuda e abriga as duas forasteiras. Depois de algumas semanas, elas conseguem voltar para suas casas. Mas a história ainda reservaria mais uma surpresa para a nativa, em sua conexão com o estranho portal entre um rio e o banheiro de um pub distantes milhares que quilômetros. Outra história semelhante é “Nova Iorque, New York”, em que uma jovem bem-nascida de uma família tradicional de Manaus, perto de se casar, foge da sua segurança material, para viver com o indígena que a havia retratado num quadro. Pois os efeitos desta decisão, que a conduziu a uma nova vida totalmente despojada no seio da natureza e seus valores, reverberará em sua neta, quando ela viaja para a Big Apple, décadas depois, e se depara, em uma galeria de arte, com uma exposição inusitada retratando os trabalhos de seu avô.

Outras histórias a trabalhar os contrastes entre os valores ocidentais e os muitos modos de vida dos povos originários e o imaginário amazônico nele embutidos, se encontram em “O general e o professor”, “Radiofonia” e “No rastro de Macunaíma”. Três boas histórias, principalmente a primeira, mais assumidamente fantástica na figura de um general venezuelano que, aparentemente, teria se tornado imortal, e retornaria, de tempos em tempos, para ajudar os indígenas a se defender das agressões e ameaças de políticos e garimpeiros. Já as outras duas, não tem o mesmo efeito, embora não sejam destituídas de interesse. “Radiofonia” aborda uma possível conexão provocada por sinais de rádio captados a partir da experiência de um estudante de ocultismo, quando viaja para a Amazônia. Através da sua imersão com uma erva, toma contato íntimo com espíritos xamânicos, e se conecta com mais dois indígenas, nos quais cada um deles irá contribuir para sua busca por conhecimento e transcendência. Já “No rastro de Macunaíma” fecha o livro e, como indicado no título, faz alusão ao famoso personagem de Mário de Andrade. No caso, da busca obsessiva de um colecionador por uma pedra chamada muiraquitã que ele, sem saber como, perdeu. Vai reencontrá-la com um líder indígena no meio da selva, que se acredita como filho de Deus. Embora haja uma conclusão para a história, ela soa insatisfatória, meio gratuita, porque não apresenta completude.

Inclusive, esta característica meio que se repete em algumas das outras histórias, deixando uma sensação de, “mas é só isso?”. E não no sentido de os autores contarem uma história convencional, mas de explorarem um pouco mais suas possibilidades. Isso chega a incomodar, por exemplo, no conto “Dezembro”, quando um doutorando em Antropologia pega malária numa região remota na fronteira com a Colômbia, e à espera de socorro, vai repassando sua vida. Há uma espécie de corte porque, sem mais, a história acaba e fica-se sem saber o que afinal aconteceu com ele.

Outro aspecto da coletânea é a falta de drama da maioria das histórias. Elas se resolvem – quando o caso – sem grandes conflitos e contradições entre os personagens. Como se houvesse um plano pré-estabelecido para colocá-los sob uma determinada perspectiva. Como disse acima, a única história que foge deste roteiro é a primeira. Os autores optaram por trabalharem em todas as narrativas por ações estanques que convergem num certo momento, construindo um mosaico. A forma de fato é boa, pois o texto é, como já dito, de primeira qualidade, mas o conteúdo dramático me pareceu aquém do que poderia.

A dupla de autores apresenta as possibilidades fantásticas de uma terra tão fascinante quanto incompreendida, a partir, principalmente, de um viés etnográfico, fruto de suas formações, principalmente de Aparecida. Mas esta base acadêmica se mostra mais efetiva, em muitos casos, do que a uma desejada criação mais ousada e fantástica. Por outro lado, o aspecto social e crítico se sobressai. Contundente, contra o preconceito, a miséria e o abandono dos povos originários; de sua captura por pastores e valores religiosos que conspurcam completamente suas vidas e a rica conexão com a natureza. Da cobiça e exploração econômica do qual a região é historicamente afetada e da falta de empenho e, mais recentemente, contribuição ativa do governo federal num processo de desmatamento, tráfico de madeira, garimpo ilegal e violências variadas aos povos originários, sua fauna e flora únicas em todo o planeta.

Se a Amazônia já conta com um corpus de tradição e prática razoavelmente relevante na literatura brasileira – basta lembrar, rapidamente, dos Contos Amazônicos (1893), de Inglês de Sousa (1853-1918) e dos romances de Márcio Souza –, podemos dizer que a ela também se acrescenta a ficção científica e o horror, e não nos deixa mentir tanto com obras clássicas, como A Amazônia Misteriosa (1925), de Gastão Cruls (1888-1959), e A Mãe do Sonho (1990), de Ivanir Calado, como em termos contemporâneos, por exemplo, na ótima trilogia de novelas de Roberto de Sousa Causo: Terra Verde (2000), O Par (2008) e  Selva Brasil (2010). Mais recentemente foi lançada a instigante antologia Encantarias, vol. 1: Histórias de uma Amazônia Futurista (2020), organizada pelo coletivo Visagem, e composta por seis contos de FC, que especulam com a ótica do porvir sobre os muitos problemas da região. Isso só evidencia a urgência e atualidade do tema e o quanto a literatura de FC brasileira e afins tem muito a acrescentar. Então, neste sentido, a contribuição de Ficções Amazônicas se dá, como dito antes, nas fronteiras entre o mainstream e o fantástico. E por esse aspecto é um livro que deve ser conhecido.

– Marcello Simão Branco


terça-feira, 15 de novembro de 2022

Vultos Sobre o Sol

 Vultos Sobre o Sol (Shadows in the Sun; 1954), de Chad Oliver. Tradução: José Sanz. Capa: Orestes de Oliveira Filho. 175 páginas. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1974. Lançado originalmente em 1954.

 


O tema da invasão alienígena é um dos mais populares e abordados na ficção científica. A partir do paradigma da invasão clássica de A Guerra dos Mundos (The War of the Worlds; 1898), de H.G. Wells (1866-1946), tanto esta vertente bélica, como muitas variáveis se desenvolveram. Tal como este Vultos Sobre o Sol, do escritor e antropólogo Chad Oliver (1928-1993).

O jovem Paul Ellery está a fazer um estudo de campo em Jefferson Springs, uma das muitas e inexpressivas cidadezinhas do interior dos Estados Unidos, com seus costumes e valores aparentemente padronizados e conservadores. Isso era o que Ellery esperava como hipótese de pesquisa, dentro do seu campo de atuação, a Antropologia. Mas após alguns meses vivendo no local, ele está inseguro e cheio de dúvidas. É que, apesar das aparências indicarem o que ele esperava de uma cidade como esta, na verdade as coisas não eram o que pareciam. Isso porque, conforme constatara, todos os moradores moravam na cidade há no máximo quinze anos. E não havia registro dos habitantes anteriores. Até que, numa certa noite, ao rodar com seu carro pelos arrabaldes, avistou o que parecia ser uma nave. E dela saíram alguns dos respeitáveis cidadãos de Jefferson Springs!

Com veio a saber logo depois, Paul Ellery havia visto uma nave extraterrestre. Isso, de fato, resolvia em parte suas dúvidas, mas logo o encaminhou para desdobramentos muito mais perturbadores. O que fazer? Isso de fato era o que ele pensava que fosse? Após investigações posteriores sem nada comprovar, ele é visitado em seu quarto de hotel por dois homens com aspecto estranho, que solicitam que ele os acompanhe. O receio foi vencido pela curiosidade, e Paul Ellery se deixou conduzir. Quando percebeu, entrou na mesma nave esférica que havia visto e de lá foi levado a uma nave muito maior que estava na órbita da Terra.

Um dos extraterrestres, chamado John, lhe contou em detalhes a verdade: Jefferson Springs era, na realidade uma colônia que servia como ponte de entrada para uma espécie humanoide alienígena viver na Terra. Tinham como objetivo ocupar, no máximo, 15% da superfície do planeta; meta que também seguiam com relação a outros planetas também por eles colonizados. Isso porque, havia um problema insolúvel de superpopulação humana na galáxia, que se espalhava por uma miríade de mundos, organizados numa espécie de federação interplanetária. Assim, para minorar o problema, estabeleciam colônias de moradores em planetas com as condições climáticas semelhantes aos de suas origens. Em tese, não interfeririam com a vida nativa, até onde isso fosse possível. Mas como Paul poderia ter certeza disso? E de todas estas informações fantásticas?

A partir daí o antropólogo chega à conclusão de que sua vida e seus objetivos não tinham mais sentido. Mas será mesmo que tudo isso era verdade? De fato, há um quê de paranoia que perpassa a trama e a angústia do protagonista. Nesse sentido, Vultos Sobre o Sol se insere dentro da temática das invasões no contexto dos anos 1950: paranoia, desumanização, substituição dos nativos por cópias, conservadorismo dos costumes, colônia no interior rural do país. Todos estes tópicos presentes neste tipo de história que, de certa forma, serviu como uma metáfora dos receios norte-americanos diante da ameaça comunista representado pela União Soviética: igualitarismo, perda da identidade individual, coletivismo econômico, autoritarismo político etc. Neste aspecto, a obra mais conhecida é Os Invasores de Corpos (The Invasion of the Body Snatchers; 1955), de Jack Finney (1911-1995), de fato um romance que inclui todos estes aspectos de forma contundente e exemplar. Talvez por isso mesmo, adaptada três vezes ao cinema. Mas o romance de Oliver foi escrito um pouco antes, mostrando que o tema estava pairando no imaginário do país, apenas à espera para desabrochar na obra mais madura que Finney veio a escrever.

Mas isso não significa que o livro de Chad Oliver não esteja à altura do mais conhecido. Não só o antecipou, mas, principalmente, pelas possibilidades que abriu ao tema da invasão insidiosa, sub-reptícia, oculta e, por isso mesmo, difícil de ser vista e comprovada. Os humanoides dão duas opções a Paul Ellery: aderir à sua cultura e ser, aos poucos, convertido culturalmente como um deles; ou continuar a viver sua vida, pois não seria incomodado. Ele acaba aceitando, talvez de forma resignada demais, a primeira das ofertas. Procura se integrar à comunidade de Jefferson Springs, mas no íntimo espera descobrir algum ponto fraco que possa leva-lo a justificar a decisão pela outra opção. No fundo, o que ele procura é encontrar uma maneira de recuperar os valores e motivações de sua vida anterior. É nesta luta interior e de uma solidão angustiante que o romance tira o seu maior interesse.

Mas talvez outras ações pudessem ser tomadas. Isso porque Paul Ellery é, talvez, racional demais – por ser um cientista? –, em reconhecer que ninguém o levaria a sério, que seria ridicularizado. Lembrei aqui da cultuada série de TV Os Invasores (The Invaders; 1967-1968), criada por Larry Cohen (1936-2019). O arquiteto David Vincent descobre que a Terra está sendo invadida, mas ao invés de se conformar ou tentar entender os motivos dos alienígenas, resolve lutar para desmascará-los e derrotá-los. Mesmo que quase ninguém o leve a sério. Isso porque, numa situação como esta, teórica e provavelmente, a reputação pessoal seja menos importante do que os fatos em si e suas consequências. Mas Paul Ellery segue apenas a opção de tentar achar alguma brecha por dentro. Como já dito, menos para desbaratar os reais objetivos de um império interestelar do que para encontrar alguma motivação para seguir sua vida. O que, de qualquer forma, poderá encaminhá-lo a uma revelação, de certa forma surpreendente, na conclusão da história.

Vultos Sobre o Sol é um romance competente de FC sobre o tema da invasão e, mais que isso, dos efeitos possíveis dos choques culturais causados pelo encontro de duas culturas muito desiguais, principalmente em termos tecnológicos. Aqui é encantador como Oliver cita e explora situações aqui mesmo da Terra, quando do contato da chamada civilização com culturas indígenas, fazendo uso de seu próprio conhecimento teórico e empírico como pesquisador acadêmico. Afinal, em tese, nossa civilização estaria em condição semelhante ao dos indígenas, caso tivesse contato com uma espécie alienígena muito mais avançada em termos tecnológico e de alcance estelar.

Marcello Simão Branco


terça-feira, 25 de outubro de 2022

Curva de argumento

 


Miguel Carqueija

 

            Em pleno Porto Espacial de Jacarepaguá, o Capitão Barbosa e seu imediato Zé Peroba caminhavam pela Alameda J das lojas. Barbosa ia fazendo compras e aos poucos enchendo a sua mochila de couro. A certa altura virou-se para o outro e indagou:

            — E afinal, Peroba, você não vai comprar nada?

            — Com que dinheiro, Capitão? — respondeu o imediato, com cara de réu.

            — Ora essa, com o seu!

            — Capitão Barbosa, o senhor ganha dez vezes mais do que eu, e além disso...

            — Que dez vezes o que! São só oito! Ou você esquece que eu sou o comandante da Antaprise? Não posso ganhar salário de mendigo!

            Qualquer resposta do Peroba ficou entalada na garganta. Barbosa prosseguiu:

            — Já gastou todo o seu salário?

            — Bem, capitão, sabe aquele joguinho...

            — É por isso que eu não jogo! Que isso lhe sirva de lição! Ah, vamos ver aqueles mangás ali!

            Entraram os dois numa mangazeria. Ler quadrinhos japoneses era uma das manias do velho Barbosa. Peroba suspirou de enfado, já preparado para passar horas naquele estabelecimento.

            O velho Isolino, dono do negócio, quase grunhiu, pois Barbosa demorava muito para escolher, ficava olhando centenas de mangás. E realmente já estavam lá há quase uma hora quando subitamente, ao tentar puxar um número de “Confusão cósmica”, Barbosa esbarrou com outra mão. Voltou-se e deparou...

            — Arquibaldo!

            — Barbosa!

            — Que faz aqui? Largue o meu mangá!

            — Que quer dizer? Largue você! Eu peguei primeiro!

            — Sem essa! Eu peguei primeiro!

            — É meu!

            — Não, seu pilantra, é meu!

            — Pilantra é você! Lembro muito bem da barbeirada que você fez há dez anos, danificando a Antaprise...

            — Você é que fez a barbeiragem! O meu papagaio de estimação ficou gago de susto...

            — Senhores, por favor — interveio o Isolino — não rasguem a revista! Me dêem isso aqui!

            Isolino pegou a revista e colocou-a na caixa, aos cuidados da Arlete.

            — Um deles vai comprar. Guarde enquanto isso!

            Zé Peroba se aproximou da caixa, interessado em puxar conversa. Afinal, ela era uma senegalesa linda...

            — Parado aí! Nem pense em se apossar do mangá!

            Peroba se virou: era o Bicudo, primeiro oficial do Capitão Arquibaldo.

            — Você também por aqui?

            — E daí? Você também, não é?

            — Por favor, senhores! — exclamou implorativamente o dono do local, vendo que os quatro estavam prestes a se engalfinharem por causa de uma revista. — Só restou esse exemplar desse número, mas posso encomendar outro... vocês já espantaram todos os fregueses...

            — Pois eu não vou esperar! Eu quero esse! — gritou o Capitão Barbosa.

            — Egoísta! Eu é que não vou esperar! Eu quero esse!

            Arquibaldo e Barbosa agarraram-se mutuamente e foram ao chão, derrubando uma estante repleta, para maior desespero de Isolino e pânico de Arlete e Júlia, as duas funcionárias. No instante seguinte Zé Peroba e Bicudo também se engalfinharam.

            — Parem! Ordeno que parem! Acabem com essa briga imediatamente! Eu resolvo esse assunto!

            Pararam todos instantaneamente, espantadíssimos. Surgira uma figura estranhíssima, um sujeito alto, hirsuto, descabelado, trajado de maneira antiquada e de aspecto feroz.

            —Quem é você? — perguntou o Capitão Barbosa, esforçando-se por se levantar.

            — Ora, quem sou eu! Então não me reconhece, Capitão Barbosa? Eu sou o famoso psiquiatra, o Doutor Mexilhão!

            — Nunca ouvi falar. Por favor, não gosto de ser interrompido quando estou brigando! Aliás, como sabe o meu nome?

            — Está escrito no seu crachá!

            — Ah, tá. Ora bolas! Esqueci de guardá-lo — assim dizendo, Barbosa colocou o objeto num dos grandes bolsos da jaqueta.

            — O que quer o senhor? — quis saber o Capitão Arquibaldo. — Não marquei nenhuma consulta, muito menos consigo.

            Pondo as mãos atrás das costas o Dr. Mexilhão, que por sinal carregava uma vasta mochila de magiplast, acercou-se dos dois beligerantes:

            — Isso não é problema, posso dar uma contulta grátis e dupla como propaganda dos meus inestimáveis serviços. Podem se considerar privilegiados. Você é o Capitão Arquibaldo, não é?

            — Como você sabe? Não carrego nenhum crachá.

            — Está bordado na sua jaqueta.

            Arquibaldo enrubesceu.

            — Avisei a mamãe que não precisava fazer isso.

            — O que eu percebi é que vocês dois são um caso preocupante de regressão milenar.

            — O que quer dizer com isso? — indagou Barbosa.

            — Que vocês, sendo comandantes de astronaves, na ponta do progresso, comportam-se como dois trogloditas, é isso que eu quis dizer.

            — Mais respeito! — exigiu o Capitão Barbosa. — Não sabe quem eu sou? O que eu fiz?

            — É claro! — e Mexilhão fungou. — Você é o capitão que ao aterrissar com sua nave abalroou a torre de controle no Astroporto de São Paulo...

            — Bem, bem, isto é, quero dizer...

            — E eu? — berrou Arquibaldo. — Eu não sou um palhaço, sou um respeitável comandante espacial!

            — Eu bem sei — disse Mexilhão, sarcástico. — Você só pousou por engano no campo de futebol, acabou com a partida e ainda incendiou o gramado.

            — Eu... ãh... como é que você sabe?

            — Sou um homem bem informado! Agora se me dão licença, darei uma solução imediata a esse ridículo litígio e garanto que os dois sairão daqui como amigos!

            — Está bem, falastrão. Quero ver que espécie de solução você vai dar.

            — De acordo — acrescentou Barbosa.

            — O que você acha? — consultou Peroba ao Bicudo.

            — Não sei. Isso está esquisito — e Bicudo deu de ombros.

            Isolino dirigiu-se ao Mexilhão:

            — Meu senhor, se puder apaziguar os ânimos eu ficarei eternamente grato!

            — Não precisa tanto, então agora eu vou agir!

            Chegou para a Arlete:

            — Empreste-me a revista, por favor.

            Arlete, meio assustada, olhou para Júlia, que não falou nada, depois para Isolino e este assentiu. Então ela entregou. Barbosa e Arquibaldo, intrigados, não tiravam os olhos do barbudo psiquiatra.

            — Preciso de uma mesa vazia — rosnou Mexilhão para Isolino.

            — É pra já, senhor.

            Colocou alguns livros num espaço qualquer numa estante, e mostrou a mesa:

            — Serve essa, senhor?

            — É de madeira. Ótimo. Agora pode se afastar.

            Sem muita vontade de contrariá-lo o Sr. Isolino se afastou um pouco e o médico depositou o mangá sobre a mesa. Então pôs-se a folheá-lo.

            — Não está pensando em ler o mangá, eu presumo — observou Barbosa.

            — Claro que não. Detesto mangás! Só estou querendo achar o meio. São 240 páginas... está bem, então tem que ser na 120.

            Abriu o mangá nas páginas 120-121, deixou-o assim escancarado sobre a mesa e recuou ligeiramente. Então buscou no interior de sua japona e lá de dentro retirou uma machadinha. E antes que alguém pudesse — ou ousasse — detê-lo ele desceu a lâmina sobre o mangá, partindo-o ao meio certeiramente e de quebra partindo a mesa em duas partes.

            Novas pessoas que se haviam arriscado a entrar na livraria saíram correndo. As outras sete pessoas que lá já estavam ficaram todas congeladas e mudas. Impassível, Mexilhão guardou a machadinha, abaixou-se, recolheu os dois pedaços da revista e aproximou-se dos apatetados astronautas.

            — Peguem! Metade para cada um!

            Como em transe eles pegaram e Mexilhão se aprumou.

            — Bem, cumpri o meu dever. Agora tenho que ir, outro dever me chama!

            — Mas... mas... mas... peraí... — balbuciou Barbosa.

            — Não se preocupem! Não cobro nada pela consulta! Foi uma amostra grátis!

            Arquibaldo, ainda em estado de choque, murmurou:

            — Mas espere aí... que idéia foi essa...

            — Na verdade a idéia original não foi minha, eu aproveitei de Salomão. Até mais, senhores e senhoritas!

            Disse isso e foi embora.

            Alguns segundos depois eles começaram a acordar do aturdimento. Isolino foi o primeiro a falar:

            — Alguém pode me dizer quem vai me pagar o prejuízo?

            Disse isso e desmaiou, sendo amparado pela Júlia, a garota holandesa, que buscou os sais num dos bolsos do infeliz livreiro.

            — Capitão, vamos continuar a briga? — indagou Zé Peroba, olhando para o Bicudo.

            — É claro que não, seu idiota! Vamos é pegar aquele calhorda! Afinal temos a obrigação de “pagá-lo” pelo excelente serviço!

            — E o que vamos fazer com isso? — perguntou Arquibaldo. O Capitão Barbosa foi taxativo:

            — Arquibaldo, decididamente eu não quero um mangá pela metade! Pode ficar com a minha parte!

            Entregou a metade do mangá para o outro. Este, menos perfeccionista, entregou as duas metades ao Bicudo.

            — Bicudo, guarde na sua mochila, eu pego na nave! Ainda bem que eu tenho durex! Agora, Barbosa, me ajude! Vamos nós dois atrás daquele safado e dar uma sova nele!

            — É claro, amigo! Se é que vamos conseguir encontrá-lo, ele leva grande vantagem!

            — Não importa, amigo! Vamos tentar pelo menos!

            — Esperem aí! — gritou a aflita Arlete, enquanto Júlia ligava para os paramédicos. — O mangá precisa ser pago!

            — Acha mesmo — escandiu Arquibaldo — que eu vou pagar por uma revista partida ao meio a machado? Passem bem!

            — Acho melhor irmos atrás deles, você e eu — disse Bicudo a Peroba. — Aquele maluco está armado de machadinha!

            — Preferia não ir, mas você tem razão. Não posso deixar que o meu capitão seja fatiado, por mais idiota que ele seja!

            — Vocês dois sabem qual é o pior nisso tudo? — gemeu a Arlete.

            — Não, o que? — disseram eles em uníssono.

            — Muito simples. Tenho certeza que este nosso desacordado patrão quando acordar vai descontar o mangá do nosso ordenado!

            — Que já é uma miséria — completou a Júlia.

            — Vamos rachar a despesa — disse Peroba, incapaz de resistir ao choro de duas garotas. — Bicudo, você dá a sua parte?

            Eles rapidamente pagaram e Arlete agradeceu mas ainda perguntou:

            — Mas e a mesa?

            Os dois se entreolharam.

            — Ah, não! — disse o Bicudo. — Ninguém vai levar a mesa! Vocês se entendem com o Isolino!

            Bicudo e Peroba saíram correndo, tentando encontrar os capitães.

            — Numa coisa pelo menos o malucão estava certo — lembrou Zé Peroba.

            — Em que?

            — Ora! Que os dois iam sair daqui como amigos!

 

NOTA – Chama-se “curva de argumento” uma figura literária que consiste numa súbita e radical mudança de rumo numa história, com o surgimento imprevisto de um novo fato ou personagem, como neste caso, com a inusitada aparição do Doutor Mexilhão. Ele tem sua própria série e esta é a primeira vez que interage com o Capitão Barbosa.

 

Rio de Janeiro, 13 de março a 3 de abril de 2020.

 

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quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Atentado em Itaipu

Atentado em Itaipu, de Martins de Oliveira. Capa: Cirton Genaro. 183 páginas. São Paulo: Alfa-Omega, coleção Biblioteca Alfa-Omega de Cultura Universal – Serie 2ª. – Volume 30. Lançado originalmente em 1983.


Os romances de ficção política com uma vertente de ação e aventura não se constituem numa prática habitual na literatura brasileira. Em sua maioria, costumam ter por características principais a reflexão e a crítica às mazelas do país, em termos históricos ou conjunturais. Assim, por meio da indicação do escritor Roberto de Sousa Causo, cheguei a este Atentado em Itaipu, de Martins de Oliveira. Desde já, um romance eletrizante de conspirações e planos mirabolantes, daqueles difíceis de largar a leitura. Mas não só: situado no contexto político da época, o período final da ditadura militar brasileira.

No início dos anos 1980 o país vivia os últimos eventos da abertura, processo político iniciado em 1974 pelo presidente Ernesto Geisel, com o objetivo de reduzir a repressão, controlar os órgãos de informação – eufemismo para os setores do governo que prenderam, torturaram e mataram –, e encaminhar o país para um processo “lento, gradual e seguro” de recondução dos civis à administração do Brasil. Olhando em retrospectiva, o processo foi tortuoso, mas bem sucedido do ponto de vista dos governantes, numa transição política regada a muitos pactos e negociações, que colocou um civil da oposição no poder, Tancredo Neves e depois de sua morte inesperada, José Sarney – e impediu qualquer punição aos militares.

Mas, como sabemos, nem todos desejavam que a ‘revolução’ de 1964 tivesse este desfecho. Tanto principalmente à direita – com militares radicais –, como à esquerda – com militantes e grupelhos revolucionários –, os objetivos eram outros: a retomada do autoritarismo mais ideológico e repressivo por um lado, e uma última tentativa de tomada de poder para instaurar no país um governo socialista, por outro. Assim, no plano político, um dos principais méritos do romance é mostrar como o processo de liberalização do regime autoritário embora, como dito, tenha sido exitoso do ponto de vista dos seus proponentes, foi inseguro e sujeito a retrocessos que poderiam ter levado o país a um outro rumo, longe da democracia finalmente conseguida – basta lembrar da tentativa de bomba no RioCentro, em 1981, felizmente mal sucedida. Pois é neste contexto que o livro explora a premissa assustadora anunciada em seu título. Um plano para explodir a maior usina hidrelétrica do mundo, provocando uma guerra com a Argentina e, com o caos instalado, permitir à esquerda revolucionária uma tentativa decisiva de chegar ao poder.

A usina de Itaipu é atualmente a segunda maior do mundo, atrás apenas da Três Gargantas, da China. Mas até 2012 foi a maior do planeta. E os números deixam claro porque: A barragem principal tem 1234 metros de cumprimento, produz cerca de 14 milhões de megawatts, com um volume aproximado de 30 bilhões de metros cúbicos de água, altura máxima de 196 metros, com uma área de 1460 quilômetros quadrados, e 18 turbinas em seu total. Eivado de muita controvérsia desde o seu projeto e realização – entre 1975 e 1982 – quase virou um contencioso militar grave com a Argentina. Inicialmente o país platino queria fazer parte do projeto; depois de negada sua participação, realizada apenas entre Brasil e Paraguai, os argentinos ameaçaram retaliar militarmente, dentro do contexto bélico da época, já que também eles viviam sob ditadura militar. Pois, de fato, se abertas as comportas parte importante do território do país seria inundado, com consequências graves até Buenos Aires. Na visão bélica e paranoica dos anos 1970, Itaipu não era apenas uma hidrelétrica que geraria energia para todo o Paraguai e mais da metade do Brasil, poderia ser, no limite, uma arma estratégica poderosíssima. Esta não é a única abordagem deste tema, pois lembramos do conto “A Pedra que Canta” (1991), de Henrique Flory, no qual a usina é usada como arma após a invasão argentina à região sul do Brasil, com as catastróficas consequências esperadas.

No romance de Oliveira, a trama política se divide, justamente, entre os setores marginalizados àquela altura, dos radicais de direita e de esquerda. Com a Lei de Anistia de 1979, voltaram ao Brasil vários exilados do regime autoritário, entre eles Waldimir Esteves, o Tocha, um terrorista internacionalmente conhecido, com ações executadas em várias guerrilhas mundo afora e com estreitos laços com o regime socialista cubano. Descrente da abertura, e do modelo de redemocratização ‘burguesa’ que se anunciava, ao voltar ao país não perde tempo e tenta reconstruir uma rede de militantes com objetivos subversivos. No mínimo para desgastar a ditadura, abrindo espaço para movimentos que possam, ao menos aproximar a esquerda do poder. De outro lado, um grupo radical dos linhas-duras militares, liderado pelo general Rubens Messias, cria o grupo Alfa: para conspirar com o objetivo de sabotar a abertura em curso, especialmente quando estava para ser votada uma emenda à Constituição que restauraria, para o mesmo ano, a eleição direta para presidente. Ao contrário do que aconteceu em nossa linha histórica, a emenda é aprovada, o que faz com que o governo entre em negociações para chegar a um candidato de oposição mais palatável aos seus interesses, o que incentiva uma ação ainda mais radical dos conspiradores da caserna: assassinar o presidente que teria traído os ideais da “revolução”.

Numa reunião com seus aliados, Tocha conhece um engenheiro que trabalha em Itaipu e que odeia os militares, porque estes o confundiram com seu irmão, e o torturaram barbaramente no início dos anos 1970. Ele, então, sugere o plano audacioso de dinamitar a usina, o que faz com que os olhos de Tocha brilhem: poderia ser um plano perfeito, ainda que de execução muito difícil, para permitir que a esquerda chegasse ao poder. Ele, então, planeja meticulosamente o atentado e consegue ajuda do regime de Fidel Castro, com financiamento e explosivos altamente sofisticados.

O leitor percebe que, pela ousadia e gravidade de ambos os planos conspiratórios, o interesse da leitura é garantido. Mas Martins de Oliveira, médico cardiologista e professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem uma prosa extremamente hábil para amarrar os planos de ambos os lados, e não só: o contexto político é extremamente condizente com o que ocorria na época. Desta forma, ações que, em tese, teriam muita chance de dar errado – como reconhecem os próprios personagens do livro –, ganha ares de verossimilhança e muito suspense.

Se no começo da resenha afirmei que não há uma tradição de romances de ficção política no Brasil, Martins de Oliveira é uma exceção. Antes de Atentado em Itaipu, ele estreou com Outono Vermelho, pela Globo de Porto Alegre, em 1966, mostrando o que poderia acontecer se os comunistas tivessem chegado ao poder no Brasil. Ora, isto é história alternativa! Pelo que sei, os poucos especialistas brasileiros neste subgênero não incluem esta obra. E outro romance de sua autoria explora a chegada ao Vaticano de um Papa marxista, em Os Vinte Dias de Outubro, da Record, em 1982. Outro exercício instigante de ficção especulativa política. Desnecessário dizer que ambos os livros devem ser conhecidos, ainda mais depois da leitura deste ótimo tecnothriller político que flerta com a ficção científica.

Pois no contexto do gênero, Atentado em Itaipu se situa ao lado de outros romances de ficção política especulativa dos anos 1980, que procuraram imaginar cenários possíveis para um Brasil pós-ditadura, no que eu chamei de ‘ficções da abertura’, no artigo “Ventos de Mudança: A Ficção Científica Brasileira e a Transição Democrática”, de 2013. Livros como A Invasão (1979), de José Antonio Severo; Não Verás País Nenhum (1982), de Ignácio de Loyola Brandão; A Ordem do Dia (1984), de Márcio Souza; Horizonte de Eventos (1984), de Jorge Luiz Calife; Silicone XXI (1985), de Alfredo Sirkis. Além destes, outro que descobri após a publicação do artigo é O Outro Lado do Protocolo (1985), de Paulo de Souza Ramos. Provavelmente deve haver alguns outros. O que só evidencia que a pesquisa sobre a presença de temas de FC no mainstream literário brasileiro continua a ser um campo a ser explorado, como neste ótimo Atentado em Itaipu.

Marcello Simão Branco


quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Fronteiras da Eternidade

 

Fronteiras da Eternidade (The Edge of Forever), Chad Oliver. Tradução: José Sanz. Capa: Myriam Graber. Introdução: William F. Nolan. 280 páginas. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1973. Publicado originalmente em 1971.

 


Esta coletânea publica algumas das principais histórias curtas do autor surgidas no início de sua carreira, na década de 1950. Como ele mesmo afirma no posfácio que escreveu a este livro, são narrativas dele quando jovem, com menos de 30 anos, no começo de sua carreira acadêmica, como professor de Antropologia.

Chad Oliver, na verdade, é o nome artístico de Symmes Chadwick Oliver (1928-1993), um ávido leitor e fã de FC na adolescência. Como informa William F. Nolan (1928-2021) na ótima introdução “Os Mundos de Chad Oliver”, ele conheceu a FC por causa de uma febre reumática, que o fez ficar de cama por muito tempo. Bem aproveitado, ao menos, lendo diversas pulp magazines. Na verdade, ele não apenas as lia, mas se tornou um dos maiores missivistas dos anos 1940.

Em quase todas as histórias desta coletânea, temos personagens antropólogos. “Talvez mais que o desejável”, como ele refletiu, anos depois. Mas compreensível, pelo fato de as duas atividades estarem em formação e desenvolvimento, a de escritor de FC e a de antropólogo. Assim, Oliver é normalmente classificado como um escritor de FC soft e não está incorreto. É um nome importante, pioneiro mesmo, ao incluir na ficção científica uma abordagem culturalmente crítica e embasada por pesquisas em antropologia. Como ressaltou o crítico da revista Locus Gary K. Wolfe, “Oliver foi o responsável por introduzir de forma consistente temas antropológicos na FC norte-americana a partir dos anos 1950, tendo uma importância comparável à de Ursula K. Le Guin neste particular.” (Megalon n. 30, maio 1994). Isso não é pouca coisa, embora, nos dias de hoje, seu nome esteja relativamente esquecido.

Fronteiras da Eternidade – belo título, aliás –, contém seis histórias abordando o impacto sobre os seres humanos de contatos com outras formas de vida e cultura, além dos significados sociais do desbravamento do espaço sideral e, principalmente, algumas experiências de desenvolvimento de novas culturas. Processos de manipulação que, como se verá e o próprio autor reconhece em seu posfácio, muito polêmicos.

A primeira história é “Transfusão” (“Transfusion”), primeiramente publicada em Astounding Science Fiction, junho de 1959. Um antropólogo viaja no tempo e descobre, para seu espanto, que os hominídeos de 25 mil anos atrás desapareceram sem deixar rastros. É como se toda a linha evolutiva da humanidade tivesse sido abortada, e não houvesse um início da presença humana na Terra. Mas Ben Hazard e um colega planejam e executam várias missões de retorno a períodos ainda mais distantes. E descobrem uma resposta chocante, quando testemunham 50 casais de humanos sendo deixados na Terra por uma gigantesca astronave, conduzida por humanoides. É uma história fascinante, embora um pouco rocambolesca, em que surge a tese de que a humanidade teria origem alienígena e fruto de uma experiência. Adeptos de teorias da conspiração e ufologia deverão gostar.

A noveleta seguinte também lida com experiências de manipulações culturais. Em “Um Amigo para o Homem” (“A Friend to Man”), primeiro vista na edição de março de 1954 de Universe Science Fiction, dois casais vivem no interior de uma cúpula em Ganimedes. Fazem parte de uma experiência para verificar como se dá a rotina e os possíveis efeitos psicológicos de viver em isolamento num ambiente alienígena. Eles têm todo o conforto material, mas, aos poucos, passam a sofrer efeitos psicológicos. Dizem ter visões de efeitos naturais da Terra, tornam-se deprimidos uns, paranoicos outros. E a ansiedade só aumenta por saberem que passarão muito tempo antes de chegar uma nave da Terra para levá-los de volta. Até que, recebem uma visita inesperada de um viajante espacial. Mas até que ponto é verdade ou não passa de imaginação?

A novela seguinte seja, talvez, a mais controversa em termos de interferência e mudança no destino de pessoas. “Trabalho de Campo” (“Field Expedient”), foi primeiro publicada em janeiro de 1955 de Astounding Science Fiction. No século XXII a Terra vive, finalmente, sob um governo mundial. E, de certa forma, a utopia hegeliana do ´fim da História´, tal qual atualizada por Francis Fukuyama em 1989, se tornou realidade. O mundo inteiro se ocidentalizou. Com o mesmo governo e sistema econômico. Além de mesmos padrões culturais. Mas esta estabilidade trouxe certa acomodação em algumas áreas, como por exemplo, o abandono da exploração do espaço. Neste contexto, um velho multibilionário excêntrico resolve financiar um projeto secreto de colonização de uma nova sociedade em Vênus. Muito questionável, porém, já que tal sociedade é composta por crianças, cedidas pelos pais a uma certa Fundação. Não sem certa pressão psicológica e omissão dos poderes públicos. Mas qual será o resultado do intento: Que tipo de sociedade emergirá? Conseguirá tirar a Terra de sua decadência? Embora interessante, é uma história inverossímil e que poderia ser melhor desenvolvida.

“A Formiga e o Olho” (“The Ant and Eye”), apareceu primeiro em outra edição de Astounding Science Fiction, abril de 1953. Aqui o tema é assumidamente político e, digamos, menos culturalista. Mas o que chama a atenção é a maneira estranha como é contada. Não do ponto de vista do estilo, por sinal, sempre limpo e agradável, mas pelo tom de conspiração. Muito questionável ou não bem desenvolvido no argumento. Em 2034, um antropólogo que faz pesquisas em Meran, um planeta que orbita a estrela de Procion, recebe um chamado urgente para voltar à Terra. Robert Quinton trabalha para uma agência da ONU, oficialmente voltada ao comércio internacional e interestelar. Mas que tem uma atividade secreta que estuda, com computação estatística, possíveis cenários de crises para a humanidade. Quinton deverá liderar uma missão para arruinar a carreira política de um certo Donald Weston. Isso porque, segundo o resultado de um relatório elaborado por supercomputadores com 90% de risco de acerto, este homem poderá levar à extinção da humanidade. Não é dito como, mas se intui que se tornaria presidente dos Estados Unidos e provocaria uma guerra nuclear. Mas com que direito uma agência pública, pra começar oculta, toma decisões sobre atividades políticas legitimadas eleitoralmente? Além disso, devemos seguir inquestionavelmente decisões tomadas por máquinas? É certo que se o risco for tão grave, algo deve ser feito, mas resta saber como, de maneira a não conspurcar decisões coletivas de base democrática. De fato, uma questão difícil, em outra história em que o tema da manipulação se faz presente.

Assim como em “O Primeiro nas Estrelas” (“First to the Stars”), a história mais antiga do livro, publicada em julho de 1952 em Astounding Science Fiction, com o título de “Stardust”. É uma novela empolgante sobre uma nave de gerações, dada como perdida a 200 anos e aparentemente sem vida a bordo, que é reencontrada por uma nave estelar. As ações das duas naves se alternam e os da Viking, a nave descoberta, só vão se tornando clara aos poucos, deixando uma sensação de estranhamento efetiva no leitor. Isso porque, após a nave ter sofrido um acidente e perder o rumo de seu destino, vaga sem rumo habitada por sobreviventes, descendentes dos tripulantes originais. Não há luz, em boa parte não há gravidade artificial, e a comida é racionada. Vive-se, assim, num ambiente perigoso e sem comando definido, com comunidades lutando entre si, quase como numa guerra. Assim, quando os tripulantes da Wilson Langford a descobrem, enviam uma missão para, primeiro descobrir se há vida, e em caso positivo o que fazer com ela? Resgatar os tripulantes da nave avariada, trazendo, com isso, um problema de desorientação cultural, já que eles jamais viveram outra realidade que a de um vaso espacial sem luz? Ou, deve-se tentar consertar a nave para que possa retomar seu destino original, de estabelecer uma colônia num planeta semelhante à Terra, que orbita a estrela de Capella, a 42 anos-luz de nosso planeta? É a melhor história do livro, excelente exemplar no tema dos problemas que podem surgir numa viagem espacial.

“Didn´t He Ramble” é o título de uma canção de Louis Armstrong, que concluí a coletânea. Foi publicada originalmente em abril de 1957 de The Magazine of Fantasy and Science Fiction. Um outro multibilionário idoso e entediado contrata o serviço de uma empresa que simula realidades artificiais. Theodore Pearsall deixa sua esposa e sua fortuna na Terra, e parte para viver seu sonho final num pequeno asteroide, transformado na Nova Orleans do início do século XX. Isso porque, Pearsall é uma grande fã de jazz e deseja ver e sentir como surgiram alguns dos seus ídolos como, por exemplo, Armstrong. É uma história bonita e melancólica, que destoa do contexto mais ativo e algo otimista das anteriores.

Fronteiras da Eternidade apareceu numa coleção de FC da editora Expressão e Cultura, sob a organização do célebre fã e editor José Sanz (1915-1987), que marcou a cena cultural brasileira nos anos 1960 e 1970, e nota-se o capricho da tradução, o cuidado com as referências bibliográficas, a bela capa – veja acima –, enfim, a diferença quando estamos diante de um livro publicado por alguém que amou o gênero. Não sei se Chad Oliver chegou a receber um exemplar – é bem possível que sim – e, se for o caso, deve ter gostado. Outros livros do autor foram publicados no Brasil, três romances: Os Senhores do Sonho (Unearthly Neighbors; 1960) (Edições GRD, 1964) e mais dois sob os cuidados de Sanz: No Limiar de Novos Mundos (The Shores of Another Sea; 1971) (Expressão e Cultura, 1971) e Vultos sobre o Sol (Shadows in the Sun; 1954) (Expressão e Cultura, 1974). Assim, para os poucos interessados em descobrir um novo autor, entre os muitos talentos esquecidos da FC, vale a pena conhecer este.  E em especial Fronteiras da Eternidade, pois é muito representativa não só da primeira fase de Oliver na FC, mas de suas contribuições pioneiras ao gênero. Pois explora de forma instigante as relações sobre alteridade, reconhecimento e relativismo cultural, tão caros a um gênero especulativo como a FC, e que tem se tornado cada vez mais relevantes neste século XXI.

 

Marcello Simão Branco