sábado, 20 de agosto de 2016

Visão Alienígena: Ensaios sobre Ficção Científica Brasileira

Visão alienígena: Ensaios sobre Ficção Científica Brasileira, M. Elisabeth Ginway. 210 páginas. Introdução de Andrew M. Gordon. Capa de Benson Chin. São Paulo: Devir Livraria, 2010.


Depois da publicação de Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro, em 2005, M. Elisabeth Ginway tornou-se, com justiça, a maior especialista em ficção científica brasileira. E não apenas para a comunidade literária internacional, mas também entre os brasileiros que acompanham de perto o gênero.
Cinco anos depois a mesma Devir que publicara seu livro pioneiro nos brinda com este Visão Alienígena: Ensaios sobre Ficção Científica Brasileira, que reúne os seus textos mais importantes escritos antes e depois de Ficção Científica Brasileira, vistos antes em revistas acadêmicas norte-americanas e nas edições de 2005 e 2009 do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica.[1]
Neste segundo livro, temos uma amostra mais abrangente do trabalho e dos interesses de Ginway, mas no mesmo sentido de compreender a realidade social e cultural do Brasil pela perspectiva agora não apenas da ficção científica, mas também do fantástico literário e do horror.
O livro está dividido em cinco tópicos diferentes, cada um deles com artigos de temas semelhantes que estabelecem um profícuo diálogo temático e analítico.
O primeiro tópico é “O Gênero Ficção Científica no Contexto Brasileiro”, com o mais longo ensaio do livro “Um Modelo para Analisar a Ficção Científica do Terceiro Mundo: O Caso do Brasil”, o mais importante do livro. Ela propõe uma espécie de tipologia conceitual para compararmos as formas como o gênero é praticado tanto entre os países desenvolvidos como nos em desenvolvimento, do ponto de vista da análise de ícones básicos do gênero, como o robô e o alienígena, e temas recorrentes, como a ecologia e a presença feminina, estes dois últimos mais ligados às transformações modernizantes vividas pelos países em desenvolvimento, o Brasil em especial, a partir da década de 1960. Também são abordados temas de épocas mais recentes, a partir dos anos 1980 e sua Segunda Onda, como a ficção científica hard, o cyberpunk e as histórias alternativas, entre outros.
Nas palavras da autora: “A ficção científica escrita no Terceiro Mundo exige ferramentas críticas diferentes daquelas tipicamente aplicadas à ficção científica anglo-americana e europeia, pois a mudança de contexto muitas vezes determina uma reinterpretação das premissas básicas do gênero.” (página 17). Este argumento defende que o gênero não é primordialmente de “primeiro mundo”, mas um fenômeno multicultural e, como tal, se enriquece com a comparação de como diferentes culturas a praticam, expandindo o gênero, tornando-o mais rico, complexo e democrático. Em suas palavras, “a ficção científica no Brasil (e em outras nações em desenvolvimento) está modificando o gênero em aspectos que têm implicações a longo prazo.” (página 55).[2]
Na segunda parte da obra, três artigos distintos, mas inter-relacionados analisam ícones clássicos da ficção científica, como os robôs, os ciborgues e a terra devastada. O objetivo é vinculá-los com aspectos da sociedade brasileira, de como estes ícones são reinterpretados de acordo com aspectos ligados à sua compreensão de conceitos como raça, nacionalidade e perspectivas de desenvolvimento socioeconômico, a partir de uma postura crítica das histórias, embora como ela mostra em alguns casos, de certa resignação com uma posição subalterna do país em relação aos de Primeiro Mundo, em especial as histórias situadas nos anos 1960. Especialmente interessante é sua análise “Do Implantado ao Ciborgue: O Corpo Social na Ficção Científica Brasileira”, em que é mostrado, por meio da análise de algumas histórias, como os implantes passam a ser compreendidos menos como uma invasão com subtexto político, e mais como uma espécie de assimilação para uso local, brasileiro.
Na terceira parte, Ginway agrupa artigos que abordam gêneros diferentes, mas próximos, como a fantasia, as utopias e as histórias alternativas, além da ficção científica hard. Aqui a análise tem contornos menos comparativos com modelos estrangeiros e centra-se na compreensão das histórias a partir das alegorias possíveis com aspectos da realidade brasileira, como a do vampiro tropical como um agente do multiculturalismo e a reinterpretação crítica da história brasileira pela ótica da história alternativa que é, para ela, socialmente engajada e politicamente emancipatória na ficção de Gerson Lodi-Ribeiro. Outra análise é da ficção científica hard de Jorge Luiz Calife, por meio de uma ótica que ela chama de híbrida, entre a utopia da conquista espacial e do futuro de consenso super-tecnológico, com a distopia em sua crítica do período autoritário. Em suas palavras: “Os romances de Calife são os primeiros a combinar a escala épica do mito, sense of wonder, e a crença na tecnologia no Brasil. De muitas maneiras ele faz a ponte entre o otimismo tecnológico do início do século xx, e as preocupações quanto ao regime autoritário do Brasil, expressas pela ficção distópica posterior.” (página 144).
A próxima seção é dedicada às autoras na ficção científica brasileira, com três artigos, abordando Dinah Silveira de Queiroz, Finisia Fideli em textos específicos e outras autoras sobre temas mais gerais e recentes dentro do gênero no país. Vale destacar a sua observação sobre a inversão nas vozes dos protagonistas que, num primeiro momento são masculinos, para depois eles serem parodiados e finalmente as mulheres assumem o papel principal, talvez numa indicação da mudança e lenta emancipação feminina na sociedade brasileira, ainda que ainda distante de se constituir numa relação mais igualitária.
A última seção trata da ditadura militar sob a ótica da ficção científica e do fantástico, com um artigo mais geral bastante didático e dois sobre a literatura fantástica dos principais autores brasileiros neste segmento, José J. Veiga e Murilo Rubião. Em suma, a abordagem analisa as contradições do processo de modernização econômica do país sob uma direção política populista (nos anos 1950) e autoritária (nos anos 1960 e 1970). O que a análise de Ginway sugere é que os textos destes dois autores apontam mais os erros e os excessos que beiram o absurdo, do que a sinalização de possibilidades de integração social e desenvolvimento na sociedade brasileira. Talvez possamos dizer que o problema não é o processo de modernização em si, mas o déficit democrático, a falta de legitimidade, em que ele foi conduzido.
No conjunto o livro é muito rico e instigante, pois oferece uma grande variedade de análises e interpretações agudas e, por vezes, surpreendentes da realidade social e cultural brasileira, não apenas por ser do ângulo da ficção científica, mas por vir de uma observadora “alienígena”. Mas o grande mérito está situado mais na proposta bem-sucedida de compreender o Brasil pela perspectiva cultural da literatura de gênero do que pelo fato da analista ser uma estrangeira. Isso porque Ginway demonstra muita solidez em seus conceitos e amplo conhecimento sobre a ficção científica e literatura brasileira em geral.
Sua metodologia comparativa exercida, por vezes, através da análise dos efeitos da fábula e sobretudo pelas associações alegóricas,  distinguem este conjunto de artigos e sua primeira obra como um esforço notável para analisar a cultura brasileira, tanto do ponto de vista literário, como dos chamados estudos culturais, com uma coragem sem paralelo em relação aos seus colegas brasileiros em tempos recentes, ao reunir dezenas de autores e apresentando-os com sua visão particular e inovadora da literatura que praticam, não temendo as inevitáveis polêmicas ao analisar autores atuais.
Em resumo, o que Ginway mostra é a riqueza complexa da cultura brasileira através de sua trajetória histórica, pela luz de um gênero aberto a novas experiências temáticas e especulativas, como a ficção científica. Por este ângulo em particular é que este Visão Alienígena deve ser recomendado, pois demonstra as possibilidades de riqueza analítica da fc escritas por brasileiros em compreender a realidade social e cultural de seu país a partir de cada época.

Marcello Simão Branco




[1] Em 2005,  “O gênero fantasia no Brasil: Globalizando e abrasileirando O Senhor dos Anéis”, e em 2009 “Um garimpo no monte de sucata pós-moderno: O pós-humano na ficção científica brasileira contemporânea (2006-2009)”.
[2] De fato, os escritos multiculturais ganharam força com o processo de globalização; uma outra tendência, com possíveis implicações de longo prazo para o gênero, é a possível convergência entre o gênero e o mainstream.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

A Maldição de Ghor (Dark Echoes, Iugoslávia / EUA, 1977)


Um exemplar tosco e bagaceiro do cinema fantástico de meados dos anos 1970, numa co-produção entre a antiga Iugoslávia e Estados Unidos, dirigido e escrito pelo americano George Robotham (1921 / 2007), em seu único trabalho nesse ofício, uma vez que sua carreira foi como ator de séries de TV e principalmente dublê. Estamos falando de “A Maldição de Ghor” (Dark Echoes), lançado no Brasil em VHS, com a típica história de uma pequena cidade no meio das montanhas amaldiçoada por um fantasma zumbi vingativo.
Em 1874 um navio com cerca de oitenta pessoas afundou num lago próximo de uma cidadezinha na Áustria. A culpa pelo naufrágio recaiu para o capitão Manfred Ghor (Norman Marshall), que voltou do mundo dos mortos para se vingar dos moradores da cidade, especialmente os descendentes dos promotores responsáveis por sua condenação. Quando mortes violentas começam a acontecer, aterrorizando a cidade e dando-lhe a fama de assombrada, um detetive da polícia, Inspetor Woelke (Wolfgang Brook), coordena as investigações e chama para ajudá-lo seu amigo americano Bill Cross (Joel Fabiani), que tem poderes mediúnicos. Juntamente com uma jornalista, Lisa Bruekner (Karin Dor), eles investigam os assassinatos, entrevistam os moradores como a misteriosa Sra. Ziemler (a atriz húngara Hanna Hertelendy), que tem um corvo de estimação e lidera um estranho culto secreto de feitiçaria, e tentam localizar o fantasma do capitão Ghor.
A história é um grande clichê, sem novidades e previsível do início ao fim, principalmente no desfecho. Mas, independente disso, o filme até diverte justamente pelas características bagaceiras da produção, somadas às atuações inexpressivas do elenco e dos efeitos toscos do monstro assassino, com um trabalho risível de maquiagem, numa época sem computação gráfica. Tem também boas cenas com mortes violentas como uma decapitação sangrenta. A condução da investigação policial não empolga e é até bem sonolenta, mas o filme tenta passar um clima sinistro no interior de cavernas e nas ruínas de um castelo de uma pequena cidade atormentada por um fantasma em busca de vingança contra seus algozes. Além de interessantes sequências aquáticas quando um grupo de mergulhadores investiga o barco naufragado no fundo do lago e é surpreendido pelo capitão Ghor apodrecido e ansioso para aumentar sua coleção de vítimas.
As primeiras cenas de ataques do fantasma zumbi até conseguem estabelecer um atmosfera sombria onde o assassino sobrenatural não é visto, aparecendo apenas sua sombra e ouvindo seus grunhidos nos últimos momentos que antecedem a morte das vítimas. E depois que ele é mostrado, com uma maquiagem tosca de cadáver podre, suas aparições tornam-se os destaques do filme, justamente pelas características bagaceiras. Vale conhecer o obscuro “A Maldição de Ghor” por curiosidade e para comprovar como os efeitos toscos são bem mais divertidos que o CGI vagabundo do cinema tranqueira do século XXI.
(Juvenatrix – 10/08/16)

sábado, 6 de agosto de 2016

O Perigo Vem do Lago (Beneath, EUA, 2013)


Exibido pelo canal de TV a cabo “SyFy”, “O Perigo Vem do Lago” (Beneath) parece tratar-se num primeiro momento de apenas mais um filme bagaceiro com tubarões. É até compreensível a comparação, pois ao invés de um tubarão assassino temos um imenso peixe carnívoro que ataca um grupo de jovens num barco à deriva num lago. Porém, a história traz elementos interessantes, ao contrário das incontáveis tranqueiras com roteiros completamente desprovidos de conteúdo. Nesse filme dirigido por Larry Fessenden (que também é ator e produtor com muitos trabalhos no currículo), o foco é evidenciar a fragilidade da amizade entre os jovens, que em situações perigosas com ameaças reais de morte, permite que venha à tona a verdadeira face da natureza humana. Outro diferencial é a troca dos efeitos vagabundos de CGI que tornam tudo muito artificial por um monstro mecânico de borracha que devora suas vítimas, lembrando aquelas preciosas bagaceiras dos anos 1950 que faziam do cinema fantástico de baixo orçamento uma grande opção de diversão sem compromisso.
Em “O Perigo Vem do Lago”, seis estudantes que acabaram de se formar decidem se reunir pela última vez para comemorar a amizade da escola, antes de cada um deles tomar seus próprios rumos em novos desafios. O grupo é formado por quatro homens e duas mulheres. Eles decidem passear de barco num lago localizado numa região rural próxima à propriedade do avô de Johnny (Daniel Zovatto), e que parece esconder um segredo mortal em suas águas. O grupo de amigos é ainda formado pelo nerd Zeke (Griffin Newman), que gosta de filmar tudo que acontece, além da morena Deb (Mackenzie Rosman), os irmãos Matt (Chris Conroy) e Simon (Jonny Orsini), e a loira Kitty (Bonnie Dennison), que é a namorada de Matt, o líder do grupo.
A diversão com direito a nadar no lago e beber cerveja logo é interrompida quando um enorme peixe com dentes pontiagudos ataca o grupo e começa a colecionar vítimas, degustando o sangue e carne humanos. A partir daí, sem remos e com rachaduras no casco do barco, eles não conseguem voltar para a segurança da margem do lago, E precisam lutar por suas vidas combatendo o monstro e também uns aos outros, depois que os laços de amizade que pareciam fortes se rompem facilmente com conflitos. Onde cada um deles passa a defender seus próprios interesses, não hesitando em colocar em prática e hipocrisia da raça humana com traição e exposição do rancor que todos carregam dentro de si.
No final das contas, o filme é simples e não tem nada de especial, utilizando uma ideia básica com clichês já muito explorados. Mas, o fato dos realizadores optarem em não utilizar ridículos efeitos de computação gráfica para o monstro aquático e contar uma história destacando o conflito entre os personagens num ambiente ameaçador de morte com desfecho pessimista, já o torna diferente da infinidade de produções do mesmo tema, as quais priorizam CGI vagabundo com histórias fúteis e dispensáveis.
(Juvenatrix – 05/08/16)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Tubarões de Gelo (Ice Sharks, EUA, 2016)


Como a moda é lançar filmes ridículos com ataques de tubarões, numa espécie de sub-gênero do cinema fantástico bagaceiro do início do século XXI, a parceria entre a produtora “The Asylum” e o canal de TV a cabo “SyFy”, conhecidos pelos filmes ruins, resultou em outra tranqueira chamada “Tubarões de Gelo” (Ice Sharks, 2016). A direção e o roteiro são de Emile Edwin Smith, que têm muitos trabalhos na área de efeitos visuais (como na franquia “Sharknado”), e dirigiu a tranqueira “Mega Shark vs. Mecha Shark” (2014).
As histórias são sempre as mesmas, e o objetivo é encontrar um meio de colocar tubarões atacando as pessoas, não importando como, onde ou os motivos. No Ártico, uma pequena estação de pesquisas chamada “Oásis” está trabalhando para identificar as razões do derretimento do gelo na região. Entre os técnicos e pesquisadores temos o casal David (Edward DeRuiter) e Tracy (Jenna Parker). Ao investigarem o misterioso desaparecimento de vários caçadores, eles descobrem que tubarões vindos da Groenlândia evoluíram e tornaram-se mais ágeis e violentos, atacando animais e pessoas rompendo facilmente as finas camadas de gelo enfraquecidas pelo derretimento. Os animais conseguem isolar a estação de pesquisas, que primeiramente flutua à deriva no mar, e depois afunda sem controle, obrigando seus ocupantes a lutarem pela vida combatendo os tubarões ávidos por suas carnes, enquanto esperam a possibilidade de resgate por um navio quebra gelo.
Trata-se de apenas mais um filme com história ruim e elenco inexpressivo, utilizando tubarões em efeitos vagabundos de computação gráfica. Tem algumas mortes sangrentas bem artificiais e cenas que tentam passar sem sucesso a tensão e claustrofobia de um ambiente fechado atacado pelas criaturas aquáticas assassinas. Mas, até os tubarões, que obviamente são os elementos principais da trama, aparecem pouco quando em comparação com outros filmes similares, e então temos menos cenas ridículas do que o habitual visto nas dezenas de produções genéricas do tema. O filme tenta ser sério, sem apelar para o tradicional “pastelão” que vemos na maioria dos filmes de tubarão, mas ainda assim não funcionou. Percebemos que o diretor preferiu investir mais num suspense com a luta dos pesquisadores para sobreviver ao ataque dos tubarões, mas o convite ao tédio é inevitável. O espectador, mesmo com muito esforço, não consegue estabelecer qualquer tipo de empatia com os personagens, não se importando com suas mortes. Se, até eles próprios não demonstram nenhuma reação convincente em relação à perda violenta dos amigos, é praticamente impossível para quem está assistindo também se importar com eles.
Seria ótimo se os realizadores parassem de explorar esses animais e os deixassem em paz nos oceanos.  
(Juvenatrix – 01/08/16)