sábado, 15 de fevereiro de 2020

Perelandra


Perelandra (Perelandra), C. S. Lewis. Tradução de Waldéa Barcellos. 302 páginas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. Lançado originalmente em 1943.

Perelandra (Viagem à Vênus) é o segundo romance da Trilogia Cósmica, ou de Ransom. Como o próprio autor informa no início do livro pode ser lido de forma independente. Mas se feito na sequência faz mais sentido para acompanharmos o desenvolvimento da trilogia criada por Lewis.
Depois de voltar de Marte (Malacandra para os habitantes do planeta) Ransom retoma seus afazeres acadêmicos, mas sabe que pode ser convocado pelos eldilas – espíritos evoluídos vistos em Malacandra – para cumprir uma missão para a evangelização cósmica, conforme já havia sido dito a ele em Além do Planeta Silencioso - resenha aqui. Em todo caso, ele é surpreendido com relação ao seu novo destino, pois é levado a Vênus (Perelandra), e não sabe o que deve fazer exatamente por lá.
Ransom se depara com um mundo novo, em processo de construção, e com uma extraordinária vitalidade em seu ecossistema. Tal característica já havia sido vista de forma bela em Malacandra, mas aqui estamos diante de uma natureza (fauna e flora) em intensa transformação. Assim, a maior parte da superfície é aquática, circundada por milhares de pequenas ilhas flutuantes, onde se desenvolve a vegetação e formas de vida animal.
Após explorar parte desta natureza Ransom conhece a Dama Verde, uma mulher misteriosa, com o qual vai travar longos diálogos, em torno de se situar neste mundo, trocar informações e partilhar valores. Na verdade, a mulher – nua, assim como Ransom, levado assim ao planeta – (depois renomeada de Rainha) é a primeira e única do novo mundo. Ela procura reencontrar o Rei, de quem se perdeu em meio às turbulências climáticas. Mas Ransom só percebe o propósito de seu contato, quando aterrissa no planeta o físico Weston, justamente um dos dois sujeitos que o sequestraram para Malacandra.
Weston é o antípoda de Ransom: egoísta, materialista, inescrupuloso, e cientista. Pretende ocupar Perelandra com o objetivo de liderar uma colonização humana. Aqui se estabelece uma polêmica, pois é dado a entender de que por meio do conhecimento científico, que supõe-se superior a outros, se justificaria a expansão humana em escala cósmica, mesmo que prejudicando o destino de outras formas de vida. É provável que tenha havido menos que uma crítica ao desenvolvimento científico em si – como Lewis passou a ser acusado a partir deste livro, especialmente nos Estados Unidos –, mas ao uso instrumentalizado e politicamente imperialista da ciência e tecnologia. Afinal, ele era irlandês, parte da cultura anglo-saxã responsável por colonizar povos em todo o mundo durante alguns seculos. (E não deixa de ser irônico de que no momento em que o livro foi escrito o Reino Unido estava quase por cair sob o império nazista).
Ao longo do livro haverá um embate entre as ideias pacíficas e humanistas de Ransom e as egoístas e bélicas de Weston, em torno da figura da Dama. Ora, como já deve estar claro, Perelandra é uma alegoria sobre o Gênesis, seção do Velho Testamento. A Dama representa Eva, e o Rei, o primeiro homem, Adão. A missão de Ransom, então, é evitar que o novo mundo, belo e inocente, seja corrompido, como acabou acontecendo com a Terra (Thulcandra, para os eldilas). Pois através da construção de um novo Paraíso, que não se deixe levar pelas tentações do prazer, da vaidade e do poder, Perelandra possa se tornar o que Thulcandra poderia ter sido. Um mundo que sucumbiu a todos os tipos de pecados, moralmente corrompido e espiritualmente decaído e, por isso, silencioso, isolado da comunhão celestial. Por outro lado, é interessante pensar que embora Lewis não tivesse conhecimento de como Vênus é na realidade, possa existir uma ironia embutida: a Terra, um paraíso em termos de natureza sucumbiu ao vício e ao pecado do homem; Vênus, um inferno em termos de natureza, deve emergir como o novo paraíso da virtude e da bondade.
Assim como no primeiro da trilogia este livro também tem uma estrutura metalinguística embutida, pois quem narra os feitos de Ransom não é ele em primeira pessoa, mas um amigo dele que não é ninguém menos que o próprio C. S. Lewis. Outro aspecto curioso, é que Ransom viaja a Vênus num caixão, como se morresse e fosse renascer num novo mundo. Ainda mais por ser Perelandra, é como se Ransom despertasse no Paraíso. Aqui, como se percebe, não há nenhuma preocupação racional ou tecnológica em como justificar a viagem interplanetária. Ao invés, ressalta-se a opção mais espiritualista, ou mesmo sobrenatural.
Esta é a segunda edição em língua portuguesa de Perelandra, e a primeira no Brasil. O livro foi publicado em Portugal pela Coleção FC Europa-América, no. 179, em 1991, como Perelandra Viagem a Vênus – que foi o título que recebeu numa das edições publicadas nos Estados Unidos nos anos 1950. Mais recentemente, em 2019 a editora de livros cristãos Thomas Nelson publicou Perelandra, junto com os outros dois livros da trilogia: Além do Planeta Silencioso (Out of the Silent Planet) e Aquela Força Medonha (That Hideous Strenght).
Este romance tem uma discussão teológica cristã evidente, especialmente da metade para o final, e chega a ficar um pouco chato e cansativo, pois carece de ação e drama, ao se concentrar demais na discussão e depois no desdobramento das opções apresentadas ao Rei e à Rainha, de que rumo seguir na construção do novo mundo. Apesar de ser um bom prosador Lewis acaba exagerando, tornando o livro quase que uma peça de defesa proselitista do cristianismo. Mesmo assim, no conjunto, apesar destes problemas, Perelandra vale a leitura, em termos da riqueza filosófica que apresenta, das discussões sobre a condição moral da humanidade e, não menos significativo, da narrativa da construção de um mundo rico e diversificado, cheio de imagens belíssimas.

Marcello Simão Branco

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

O Jovem Frankenstein (Young Frankenstein, 1974)

“Das mais escuras trevas, uma súbita luz brilhou sobre mim. Tão brilhante e maravilhosa e ainda assim, tão simples. Trocar os pólos do positivo para o negativo e do negativo para o positivo. Eu acabo de descobrir o segredo de dar a vida. Não, é muito mais. Eu me tornei capaz de dar vida à qualquer matéria morta.” – Barão Victor Frankenstein


O famoso comediante Mel Brooks sempre gostou de satirizar o cinema fantástico em filmes divertidos como “S.O.S. – Tem Um Louco Solto no Espaço” (Spaceballs, 87), uma paródia de ficção científica principalmente à série “Star Wars”, ou “Drácula, Morto Mas Feliz” (Dracula: Dead and Loving It, 95), uma gozação aos filmes de vampirismo. Mas, inegavelmente, sua grande obra-prima foi produzida bem antes, em 1974, com “O Jovem Frankenstein” (Young Frankenstein), fotografado em preto e branco numa grande e muito honrada homenagem aos filmes de horror antigos dos anos 30 da “Universal”, especialmente os clássicos “Frankenstein” (31) e “A Noiva de Frankenstein” (35), inspirados no famoso livro de Mary Wollstonecraft Shelley. 
A história inicia com o jovem neurocirurgião Dr. Frederick Frankenstein (Gene Wilder) dando aulas nos Estados Unidos sobre o cérebro humano. Ele faz questão de pronunciar seu sobrenome de forma diferente para não haver nenhuma ligação com seu avô Victor Frankenstein, que foi conhecido por roubar cadáveres para utilizar em experiências de criação de vida artificial em seu imponente castelo gótico na Transilvânia, Romênia. Após uma demonstração prática sobre os estímulos nervosos com resultados hilariantes com o Sr. Hilltop (Liam Dunn) como cobaia, o Dr. Frankenstein recebe a visita de Gerhard Falkstein (Richard Haydn), que viajou da Europa especialmente para entregar o testamento de seu avô.
Frederick decide então ir até a Transilvânia conhecer o castelo de seus ancestrais, se despedindo de sua noiva Elizabeth (Madeline Kahn) na estação ferroviária, numa sequência super hilária com a preocupação exagerada da mulher em não manchar o batom dos lábios, despentear o cabelo ou amassar a roupa. Uma vez chegando em seu destino, o jovem Frankenstein encontra o corcunda Igor (Marty Feldman), que se apresenta como seu ajudante geral e guia para o castelo, além também da bela Inga (Teri Garr), que se tornaria sua assistente de laboratório.
Chegando ao castelo, eles são recebidos pela velha arrumadeira Frau Blucher (Cloris Leachman), que os aguardava com ansiedade e revela que tinha um caso amoroso com o falecido Barão Victor Frankenstein. Uma vez explorando os incontáveis e imensos aposentos do castelo, Frederick encontra o antigo laboratório do avô e também sua biblioteca particular de onde resgata um livro com as explicações de suas experiências em reanimar carne morta. Mudando de opinião e agora obcecado pela possibilidade de reativar o trabalho de seu avô, Frederick concentra seus esforços para dar vida a um cadáver de um criminoso enforcado, roubado de seu túmulo, gerando um monstro (Peter Boyle, que apareceu como um sinistro vilão em “Scooby-Doo 2: Monstros à Solta).
Como o cérebro implantado na criatura era “anormal”, o monstro foge e causa alguns tumultos nos arredores do castelo, despertando a ira dos aldeões, sob o comando do Inspetor de Polícia Kemp (Kenneth Mars), que decidem invadir o laboratório no momento em que o Dr. Frankenstein fazia uma experiência com sua criatura tentando compartilhar suas mentes.
"O Jovem Frankenstein” foi filmado em preto e branco com a intenção acertada de reconstruir aquele clima típico das produções antigas da “Universal”, em especial os filmes impagáveis da década de 30. E o diretor Mel Brooks conseguiu com êxito o objetivo, pois sua obra é uma grande homenagem com inteligência e muito bom humor aos primeiros anos do cinema de horror falado, sobretudo os filmes inspirados na clássica história “Frankenstein”, escrita em 1818 por Mary Shelley.
São muitos os momentos super divertidos ao longo de todo o filme, mas os destaques são uma cena hilária envolvendo o Dr. Frankenstein e o corcunda Igor desenterrando um caixão com um enorme cadáver num cemitério. Frankenstein, cansado pelo esforço em levantar o pesado caixão de sua cova cheia de terra, reclama da situação desfavorável em que se encontra. Já Igor, responde que não estava tão ruim, pois poderia ser pior, poderia estar chovendo. Mal terminou de falar, e trovões aparecem trazendo uma chuva forte. Logo em seguida, quando estão tentando levar o caixão para o castelo, são surpreendidos por um policial (Richard A. Roth), que decide conversar com eles, obrigando-os a terem que simular um cumprimento com um aperto de mão do cadáver.
Todas as cenas com o inspetor Kemp são muito engraçadas, principalmente quando ele decide falar de forma super rápida e incompreensível, e quando todos não entendem nada do que falou, ele repete pausadamente. Aliás, como ele tem o braço direito artificial feito de madeira, ele o utiliza para uma série de atividades fora do comum como atear fogo no dedo para acender um charuto, ou usar seu braço como uma espécie de tora de madeira para os aldeões arrombarem a porta do castelo do Dr. Frankenstein.
O corcunda Igor, com seus olhos esbugalhados, também é responsável por vários outros momentos de bom humor, principalmente quando ele trocava sua corcunda de lugar, ora estando no lado direito do ombro, ora no esquerdo, e sempre que era questionado sobre a corcunda, ele fingia não reconhecer que tinha uma anomalia física. Como quando num dos primeiros encontros com o Dr. Frankenstein, o médico lhe diz que é um ótimo cirurgião e que poderia operar a corcunda, porém sua existência foi logo negada por Igor.
Já a arrumadeira do castelo Frau Blucher, também não ficava muito atrás nas cenas engraçadas, pois o roteiro reservou especialmente para ela o desagradável fardo de ter que suportar um incômodo e estridente relinchar de cavalos toda as vezes em que o seu nome era pronunciado.
Abaixo seguem várias curiosidades sobre “O Jovem Frankenstein” e seus bastidores, e que valem a pena serem registradas.
Os cenários, principalmente o imponente castelo, são recriações muito próximas dos originais utilizados nos filmes da “Universal”, sendo que inclusive os instrumentos e todo o maquinário elétrico e equipamentos do laboratório do Dr. Frederick Frankenstein são exatamente os mesmos criados por Kenneth Strickfaden para os clássicos dos anos 30 (com um agradecimento especial nos créditos de abertura).
A cena onde o monstro está carregando Elizabeth desacordada à noite por uma sinistra floresta é uma referência e homenagem ao clássico “O Monstro da Lagoa Negra” (54), de Jack Arnold, que tem uma sequência similar envolvendo o monstro do título e a bela Kay, a mocinha interpretada por Julie Adams.
No início do filme, ouvem-se treze badaladas do relógio, algo difícil de perceber a não ser que se contem todas as batidas pacientemente. Aliás, também perto do início, um casal de passageiros num trem fala exatamente as mesmas palavras em inglês (quando simulam a passagem por uma estação em New York) e também em alemão (quando passam por uma estação na Transilvânia).
O estridente e ameaçador uivo do lobisomem que se ouve quando o Dr. Frankenstein, sua assistente Inga e o corcunda Igor estão chegando ao castelo numa carruagem, foi feito pelo próprio diretor Mel Brooks, que aliás também foi o autor de um grito imitando um gato sendo atingido por um dardo arremessado de forma errada pelo Dr. Frankenstein, quando tentava acertar um tabuleiro como alvo.
Quando o Dr. Frankenstein localiza a biblioteca particular de seu avô, Victor, num aposento secreto no imenso castelo, ele encontra um livro escrito por seu avô intitulado “How I Did It” (Como eu Fiz), que é uma brincadeira do roteiro ao mencionar a existência de um registro que revelava como Victor Frankenstein conseguiu reanimar carne morta, um fato que não está revelado no livro original de Mary Shelley.
Naquela cena onde o monstro encontra na floresta uma garotinha, Helga (Anne Beesley), numa referência à mesma sequência do filme de 1931 de James Whale, eles ficam jogando flores num lago, e no momento em que a menina diz não ter mais flores para jogar, perguntando o que poderia então ser arremessado na água (para quem conhece o filme da Universal sabe o que o monstro escolheu para jogar no lago, numa cena que chocou o público na época e que ficou censurado por muitos anos), a criatura faz uma expressão de deboche para a câmera.
Quando o monstro faz uma visita espontânea ao homem cego, e depois de não ter obtido sucesso com a sopa quente, vinho e um charuto oferecidos por ele, numa série antológica de trapalhadas totalmente hilariantes, o monstro decide fugir com raiva e em seu encalço o homem cego ainda lhe oferece um cafezinho (essa última parte foi improvisada pelo ator Gene Hackman, pois não estava no roteiro).
O primeiro cérebro escolhido para a criatura era de um tal de Hans Delbruck, que no filme era descrito como cientista e santo, homem de grande inteligência e ideal para fazer parte do monstro, e na realidade Delbruck era mesmo um historiador e professor alemão de grande relevância nas áreas de economia e política.  
Numa das cenas finais, Elizabeth utiliza um cabelo igual ao da noiva do monstro no filme de 1935, quando a atriz Elsa Lanchester tinha um penteado com enormes mechas brancas no cabelo, que foi inspirado em antigas esculturas da rainha egípcia “Nefertiti”.       

Desde o dia fatídico como lama fedorenta que arraste-se do mar e grita paras as estrelas. Eu sou o Homem. Nosso maior temor tem sido saber de nossa mortalidade. Mas esta noite, vamos fazer a ciência desafiar e enfrentar a terrível face da morte. Esta noite, vamos chegar até as nuvens. Nós vamos imitar o terremoto. Vamos comandar os trovões. E conhecer as profundezas da impenetrável natureza.”
discurso do Dr. Frederick Frankenstein, momentos antes da experiência em conceber vida à criatura

O Jovem Frankenstein (Young Frankenstein, Estados Unidos, 1974). 20th Century Fox. Preto e Branco. Duração: 106 minutos. Direção de Mel Brooks. Roteiro e história de Gene Wilder e Mel Brooks, inspirados em personagens da novela de Mary Wollstonecraft Shelley. Produção de Michael Gruskoff. Fotografia de Gerald Hirschfeld. Música de John Morris. Edição de John C. Howard. Direção de Arte de Dale Hennessy. Desenho de Produção de Dale Hennesy. Maquiagem de Ed Butterworth e William Tuttle. Efeitos Especiais de Hal Millar e Henry Millar Jr.. Elenco: Gene Wilder (Dr. Frederick Frankenstein), Peter Boyle (O Monstro), Marty Feldman (Igor), Madeline Kahn (Elizabeth), Cloris Leachman (Frau Blucher), Teri Garr (Inga), Kenneth Mars (Inspetor de polícia Hans Wilhelm Friederich Kemp), Richard Haydn (Gerhard Falkstein), Gene Hackman (Harold, o homem cego), Liam Dunn (Sr. Hilltop), Danny Goldman (Estudante de medicina), Oscar Beregi Jr., Arthur Malet, Monte Landis, Rusty Blitz.

(Juvenatrix - 30/12/04)