Além do Planeta Silencioso
(Out of the Silent Planet), C. S. Lewis. Tradução de Waldéa
Barcellos. 220 páginas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
Lançamento original em 1938.
Há alguns meses vi na
livraria do Terminal Rodoviário Tietê, em São Paulo, os três
volumes da Trilogia Cósmica, ou Trilogia de Ransom, de C.S. Lewis:
Além do Planeta Silencioso (1938), Perelandra (1943) e
Aquela Força Medonha (1945). Lançamento de 2019, em edições
bonitas, com capa dura, da editora de livros cristãos Thomas Nelson.
Mas os preços estavam proibitivos.
O primeiro livro eu li quando
tinha 19 anos, numa edição portuguesa da coleção Europa-América,
no. 80, com título levemente diferente: Para Além do Planeta
Silencioso, e seu impacto nunca de desfez. Assim, pensei: será
que tantos anos depois valeria a pena ler de novo, agora incluindo os
dois livros seguintes? É que tive um certo receio de não macular a
memória afetiva do período da minha vida em que o li pela primeira
vez. Mas, como disse, o livro me impressionou antes e, portanto, pela
sua qualidade resolvi arriscar uma nova leitura. Por sorte, a editora
Martins Fontes já havia publicado os três livros antes, entre 2010
e 2011, e os consegui por preços bem mais acessíveis.
Além do Planeta Silencioso
é uma história de FC do subgênero planetary romance, em que
acompanhamos a incrível aventura do linguista Elwin Ransom. Ele é
raptado por dois cientistas e levado a Marte, com o intuito de ser
oferecido a alienígenas em troca de ouro, abundante no planeta. Mas
o livro revela-se muito mais do que este pobre pretexto. Ransom
consegue fugir dos seus captores e perambula pelo planeta em busca de
ajuda e sobrevivência. Com isso se depara com um mundo fantástico e
desconcertante, em suas multicores, vegetação exuberante, seus rios
e mares, planícies e montanhas. Por si só as descrições do mundo
alienígena de Lewis valem a leitura e estão entre as mais belas e
criativas de toda a ficção científica.
Ransom trava contato com uma
civilização inteligente, os hrossa – semelhantes a focas –, que
o abriga e inicia nos seus costumes e filosofia de vida poética e
integrada à natureza. É um povo que extrai por meio da harmonia e
simplicidade, uma postura tranquila e pacífica. Mas Ransom descobre
que Marte – chamado de Malacandra por seus nativos –, inclui
ainda mais duas espécies inteligentes: os sorns e os pfilfltriggi.
Os sorns, grandes e semelhantes a pássaros, e os pfilfltriggi, os
menores e parecidos com rãs. Linguista, Ransom aprende a se
comunicar com as três espécies, aprendendo a língua dos hrossa que
é comum a todos (apenas entre eles os sorns e os pfilfltriggi adotam
linguagens próprias), e percebe que eles compõem o que chamam de
hnau, os seres inteligentes que se respeitam e se complementam com
estilos de vida e habilidade próprias. Os sorns mais empreendedores
e os pfilfltriggi muito hábeis em construções e serviços manuais.
Todos vivem em conexão íntima com o ecossistema do planeta, sem
predação justificada por motivos políticos ou econômicos.
Os hanais dizem a Ransom que
ele vem de Thulcandra, o planeta silencioso, e que deve ir ao
encontro de Oyarsa, o governante e líder espiritual do planeta, que
pertence a uma outra espécie, os eldil. Difíceis de serem
descritos, por vezes se materializam, por vezes se manifestam com
vozes ou sinais indiretos, numa indicação de serem seres etéreos
ou sobrenaturais. Alguma semelhança com anjos não é
coincidência.
O romance flui de forma leve,
apesar de eivado de muitos simbolismos de ordem cristã. Há mesmo um
frescor pulp na narrativa em geral – talvez efeito do tipo
de ficção que se escrevia nos EUA na época –, o que só o torna
mais atraente e prazeroso.
Ransom e seus dois captores
descobrirão por que a Terra (Thulcandra) é chamado de o planeta
silencioso, isolado de uma espécie de comunidade cósmica que
interage pelos céus (e não pelo espaço em si), em busca de uma
convivência mais virtuosa e cheia de confiança mútua.
Embora não seja explícita, a
alegoria de Lewis é perceptível, no sentido de que a humanidade é
uma espécie que decaiu em seus valores e costumes, perdeu-se no
egoísmo, inveja, maldade e ganância, sendo mesmo orientada,
sub-repticiamente, pelo Torto, como chamado por Oyarsa – um eldil
que se bandeou para o mal. A alusão implícita aqui é com Lúcifer.
Além do Planeta Silencioso
é um livro interessante e elegante, tanto em sua narrativa, que
mistura aventura com descrições inspiradas da natureza, como na
filosofia que prega, que longe de ser proselitista, se aproxima mais
do que poderíamos chamar de uma visão de mundo pautada por uma
ética humanista e cristã.
Em mais um aspecto de
interesse o livro se revela metalinguístico, surgindo como um relato
fictício de uma experiência verdadeira, através do qual Ransom –
também um nome inventado –, achou mais adequado revelar à
humanidade sua experiência e descobertas. Não dá para deixar de
pensar que Ransom é um alter ego do próprio Lewis – que, depois
de ateu na juventude, se tornou reverendo e professor de Literatura
Medieval e Renascentista em Cambridge.
E esta literatura de ficção
especulativa baseada em alegorias cristãs prosseguiu anos depois
quando Lewis concebeu sua série As Crônicas de Nárnia (The
Chronicles of Narnia), composta por sete livros, publicados entre
1950 e 1956. Também aqui, e de forma leve e implícita, as
aventuras, agora de alta fantasia, são protagonizadas por crianças
e animais falantes no Reino de Nárnia.
Aqui no Brasil o livro tem uma
importância editorial histórica, pois inaugurou
a mais
importante coleção da ficção científica brasileira, a FC GRD,
editada pelo editor Gumercindo Rocha Dorea, em 1958 - veja a capa acima à direita. A escolha do
livro não foi um acaso,
pois uniu a paixão de Dorea pela FC e sua vinculação estreita com
o catolicismo. O livro ainda seria republicado em meados dos anos
1970, como Longe do Planeta Silencioso – tenho a segunda
edição, de 1979 –, pela editora cristã Livros Co-Lab, de
Umuarama, Paraná, numa tradução do Reverendo Amantino Adorno
Vassão. Depois os três volumes foram publicados na coleção
Europa-América, de Portugal, o já citado no. 80 (em 1984),
Perelandra Viagem a Vênus, no. 179 (em 1991), e Aquela
Força Medonha, nos. 185 e 186 (também em 1991). E voltou a ser
publicado no Brasil em 2010 com a edição que usei para esta
resenha, seguido em 2011 com a publicação inédita das duas
sequências, todos pela WMF Martins Fontes, até a edição mais
recente da editora Thomas Nelson, em 2019.
Escrito em 1938 é um livro
que também discutiu a sua época, às vésperas da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), como uma espécie de alegoria sobre a condição
crítica da humanidade, à beira da barbárie absoluta. Mas seu
interesse perene nos anos posteriores, inclusive aqui no Brasil,
confirma o seu status de clássico, por equilibrar com rara
elegância discussões filosóficas profundas e um sense of
wonder dos mais belos.
– Marcello Simão
Branco
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