terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Chung Li: A Agonia do Verde

Chung-Li: A Agonia do Verde (The Death of Grass), John Christopher. Tradução: Luiz Horário da Mata. Capa: Raul Rangel. 199 páginas. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, Coleção Mundos da Ficção Científica n. 19, 1980. Lançamento original de 1956.



Desde 2020 estamos imersos na pandemia da covid-19, nome científico para um vírus gripal que já dizimou cerca de 5 milhões e 200 mil pessoas em todo o mundo, quando escrevo, em dezembro de 2021. Apesar do avanço da vacinação já ter produzido bons resultados, a desigualdade no acesso a elas e o surgimento de novas cepas tem ameaçado a retomada da vida, ao menos próxima, da que existia antes deste evento trágico.

Pois este romance também aborda a tragédia e as consequências do surgimento de um vírus. É Chung-Li, e recebeu este nome porque, justamente, surgiu na China. Mas, em vez de ameaçar a vida humana diretamente, ele é extremamente letal contra todas as formas de gramíneas, incluindo arroz e trigo, as mais consumidas.

A praga se espalha rapidamente no Sudeste Asiático provocando o colapso da economia e a fome generalizada. Os países desenvolvidos enviam ajuda, mas quando o vírus chega às suas fazendas e plantações, tudo muda. Chung-Li destrói todas as formas de grama e, rapidamente, falta alimentos de todos os tipos e a fome se torna crônica.

O romance é narrado a partir de John Custance, um engenheiro que, após ser informado que Londres seria bloqueada para a saída, foge com sua família, a de seu amigo Roger Buckley e, inesperadamente, do vendedor de armas Pirrie e sua esposa. O objetivo do grupo é chegar a Westmorland, onde está situada a fazenda do seu irmão David.

A história acompanha o drama do grupo e, no caminho, eles se dão conta de que terão de deixar de lado seus valores morais, lutando para sobreviver matando sempre que possível. Assim, John se torna o líder e não deixa de ser chocante constatar como ele se transforma de um cidadão responsável e de personalidade amigável, em um líder frio e resoluto, o que não deixa de espantar seu amigo Roger e, principalmente, sua esposa Ann.

A fuga súbita e desesperada do grupo foi motivada, contudo, menos pela possibilidade de ficarem presos na capital britânica, mas pelo vazamento da informação de que o governo jogaria nas principais cidades do país bombas de hidrogênio para eliminar aproximadamente metade da população, cerca de 25 milhões de pessoas. Segundo este plano sinistro, metade do problema da fome estaria ´resolvido´. Esta decisão chocante e inverossímil causou grande polêmica entre os leitores quando da publicação da obra, em capítulos no The Saturday Evening Post. De fato, mesmo numa situação extrema como esta de colapso alimentar seria muito improvável que tal atitude fosse tomada, ainda mais num país de sólida tradição democrática. Ora, poderia ser declarado um Estado de sítio, com a suspensão das garantias constitucionais: restrição rígida de mobilidade, bloqueio de cidades e vias de acesso, toque de recolher, isolamento social, distribuição de pontos de racionamento de alimentos, mobilização das Forças Armadas para ocupar e policiar o território, fechamento de fronteiras etc. Como nada disso foi colocado em prática, o governo foi derrubado e um comitê civil improvisado assumiu o poder. É curioso que em nenhum momento Christopher faz alusão à família real e o que poderia ter acontecido com ela.

Como se percebe, o livro é contado dentro da realidade do Reino Unido, embora, em certo momento, o grupo ouve por um rádio que os Estados Unidos e a Austrália, ao que parece, eram os únicos lugares do mundo em que a civilização se mantinha precariamente em pé, com a adoção do pacote de medidas autoritárias citadas acima. Mas não só a Inglaterra, mas toda a Europa regrediu inexorável e rapidamente à barbárie da anarquia e luta crua pela sobrevivência: sem leis, sem Estado, sem energia e sem comida.

Esta história de pós-apocalipse ambiental aborda o tema de uma praga viral e é comparável com o clássico Só a Terra Permanece (Earth Abides; 1948), de George R. Stewart (1895-1980). Se neste, o vírus quase exterminou os seres humanos, aqui o efeito é indireto, mas não menos catastrófico.

Numa época em que a maior parte dos romances de pós-apocalipse abordava o pesadelo de um holocausto nuclear, Chung Li: A Agonia do Verde apresenta uma variação interessante e chocante do tema, ao lembrar que podemos estar sujeitos a uma situação deste tipo. E a pandemia do novocoronavírus, em certo sentido, mostra isso. Afinal, uma das possibilidades aventadas para o seu surgimento está relacionado com os intensos métodos de produção industrial da agricultura e da pecuária que, produzidos em escala maciça e padronizada, reduziriam a heterogeneidade genética, tornando grãos, vegetais e animais mais suscetíveis e fragilizados diante do surgimento de um novo vírus. Além disso, e não menos importante, os cada vez mais sofisticados pesticidas também contribuiriam com o problema. De fato, no próprio romance é justamente o desenvolvimento de um novo agrotóxico para combater a quinta cepa do vírus é que acaba, ao contrário, tornando a praga definitivamente mortal.

Ao que parece, iremos conviver com novas variantes da covid-19 e outros vírus que virão, em parte como consequência do modelo consumista e predatório de civilização capitalista que a humanidade vem praticando em escala global. Nesse sentido, este romance competente de John Christopher mantém-se, de forma perturbadora, muito atual e espero que não seja presciente do que virá.

John Christopher é, na verdade, um dos vários pseudônimos usados pelo escritor Sam Youd (1922-2012), que variou sua obra entre romances de FC com forte crítica social e aventuras infanto-juvenis. E o que torna Chung-Li: A Agonia do Verde – aliás, que belo título escolheram para a versão da obra entre nós –, tão efetivo é também a sua prosa limpa, econômica, objetiva. O que não reduz a construção densa e verossímil dos personagens e as situações dramáticas mostradas na história.

O romance recebeu uma adaptação para o cinema com o título de A Mais Cruel Batalha (No Blade of Grass; 1970), dirigida por Cornel Wilde, lançada no Brasil mas raríssimo de ser vista, e é o único livro do autor publicado em nosso país. Em Portugal recebeu o título de A Última Fome, na Coleção FC Europa-América n. 4. Além disso esta coleção publicou Os Dias do Cometa (The Year of the Comet; 1955) (n. 14) e Os Possessores (The Possessors; 1964) (n. 8). Já outra editora lusa, a Presença, publicou em sua coleção Volta ao Mundo, As Montanhas Brancas (The White Mountains; 1967) (n. 7), A Cidade de Ouro e Chumbo (The City of Gold and Lead; 1967) (n. 8) e O Poço de Fogo (The Poll of Fire; 1968) (n. 9), livros que compõe a série de FC infanto-juvenil “The Tripods”. Vale a pena procurar e ler estes também.

John Christopher mostra que há escritores de FC interessantes e necessários, entre os não muito conhecidos. E isso fica claro especialmente com Chung Li: A Agonia do Verde, pois é o tipo de obra que ecoa perfeitamente o argumento de Ray Bradbury (1920-2012), de que a melhor FC é aquela que nos alerta sobre problemas que podem ocorrer. Para que possamos, ao menos, tentar evitá-los.

Marcello Simão Branco