sábado, 25 de novembro de 2017

Um Editor Apaixonado

A morte inesperada de Douglas Quinta Reis deixou todos passados, surpresos, e tristes. Havia estado com ele três dias antes na Devir conversando sobre as provas finais da antologia As Melhores Histórias Brasileiras de Horror e ele me recebeu com o bom humor de sempre. Ainda no dia seguinte falei com ele ao telefone para tirar algumas dúvidas sobre a concepção da capa, e ele estava com aquele ar de apressado por tantas tarefas, mas atento para que o trabalho ficasse o melhor possível.
A primeira lembrança que tenho dele é numa reunião do Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC), acho que em 1988 ou 1989, ainda na Livraria Paisagem, que ficava numa galeria na Avenida São Luís, Centro de São Paulo. Eu estava no clube há pouco mais de um ano, e o Douglas aparecia de vez em quando. Após esta reunião lembro que todos os presentes foram para a livraria BookCentre, que ficava numa travessa da Rua 7 de Abril, onde ficamos extasiados com a grande quantidade de livros importados de FC. O Douglas, naquele dia, tinha ido retirar um exemplar da The Magazine of Fantasy & Science Fiction, como fazia todos os meses.
Embora gostasse de ler livros de ficção científica a maior paixão do Douglas era mesmo os quadrinhos, onde ele esteve à frente, como um dos fundadores da Devir, na publicação de um catálogo enorme e de grande qualidade de obras e artistas do primeiro nível, do Brasil e do exterior, além de abrir espaço para muitos jovens talentos. Na mesma Devir Douglas também publicou livros de role playing games (RPG), um dos pioneiros no Brasil, desta febre de jogos baseados em histórias que cresceu a partir dos anos 1990.
Depois de alguns anos retomei meu contato com o Douglas, através do Roberto de Sousa Causo, que estava à frente da coleção Pulsar de FC na Devir. Causo meu abriu as portas num momento em que eu estava terminando o doutorado e, com a bolsa expirada, vivia de bicos para pagar as contas. Ele e o Douglas me passaram vários pequenos trabalhos, onde pude, além de contar com um dinheirinho útil, aprender mais sobre o processo editorial. Desde revisão e digitação de livros até parecer para obras enviadas, sou grato a ambos por esta oportunidade. Logo depois eu e o Cesar Silva, que publicávamos o Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica na Tarja Editorial, procuramos o Douglas para ver se poderíamos passar a publicá-lo na Devir. Foi fácil, pois o Douglas nos apoiou de forma entusiasmada, ciente do seu papel de incentivador, promotor da ficção científica brasileira.
Graças a ele eu e Cesar publicamos cinco edições do Anuário (2009 a 2013), e eu ainda tive a chance única de organizar a antologia Assembleia Estelar: Histórias de Ficção Científica Política, em 2011, dentro do selo Pulsar. Incrível é que o Douglas não fazia restrições quanto ao tamanho do livro. Lembro que quando numa reunião lhe disse, preocupado, que imaginava que o livro inicialmente previsto para 300 páginas, passaria das 400, ele nem pestanejou: “Melhor assim, mais histórias para ler!”.
Devido a tantas atividades que misturavam edições de quadrinhos, RPG e literatura, além da parte administrativa na qual também atuava, o fato é que ele era uma pessoa muito ocupada, mas estava sempre disposto a ouvir novas ideias e acompanhar os projetos em andamento. E mesmo que a FC não fosse o carro-chefe da editora ele foi, provavelmente, o publisher brasileiro que esteve à frente da maior quantidade de coleções de FC&F ao mesmo tempo: Pulsar, para FC; Quimera, para Fantasia; Pentagrama, para o Horror; Enciclopédia Galáctica, para obras de não-ficção, e ainda Asas do Vento, para livrinhos de bolso de FC&F. É verdade que a maioria destas coleções não teve regularidade, devido, principalmente, a alguns problemas de reestruturação financeira pelo qual a editora passou no últimos anos, mas elas, ainda hoje, não foram oficialmente descontinuadas.
No plano pessoal o Douglas era humilde, avesso a badalações e não se envolvia nas polêmicas estéreis e, por vezes, destrutivas, nos círculos do fandom. Tinha mais o que fazer sendo um editor profissional e competente e, acima de tudo, um apaixonado pelos gêneros fantásticos, generoso e parceiro abriu portas e oportunidades para vários talentos que não teriam o mesmo espaço em outras editoras. Pois além de amparar vários projetos, permitiu aos autores participarem ativamente de todo o processo editorial, atuando em parceria com ele e os outros profissionais da Devir. Quem já trabalhou com outras editoras sabe que esta não é a praxe, e isso me fez também aprender mais no que diz respeito ao trabalho editorial.
Com a morte de Douglas Quinta Reis não sei quais rumos a Devir tomará, e espero que seja o melhor possível. Mas é provável que tenhamos fechado um ciclo, pois será difícil encontrar alguém tão dedicado e aberto a novas ideias como ele. Fará falta e o melhor que podemos fazer é prosseguir com a mesma postura com que ele nos abrigou e fez da Devir uma editora respeitada no mercado editorial. Vá em paz, companheiro.
Marcello Simão Branco

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Douglas Quinta Reis (1954-2017)

Se há uma coisa que não gosto de escrever são obituários, que adio o máximo que posso. Fica ainda mais difícil quando se trata de uma pessoa é próxima, como é o caso. Mas não posso me furtar a testemunhar aqui o passamento de Douglas Quinta Reis que, por muitos anos, foi o meu principal editor.
Reis foi um dos fundadores da Devir Livraria que, ao longo dos anos 1980, montou um esquema próprio de distribuição de revistas importadas, para o qual criou o boletim Recado Devir, fanzine que marcou uma geração de leitores. A Devir também ficou conhecida pela publicação de livros de RPG e card games, jogos que se tornaram grandes coqueluches dos anos 1990. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, a Devir também se envolveu com a publicação de quadrinhos de artistas nacionais e estrangeiros – sempre apresentados na forma de álbuns de luxo –, e com a literatura fantástica, para a qual mantinha selos exclusivos para ficção científica, horror e fantasia, de autores brasileiros e estrangeiros, clássicos e modernos. Reis era como um malabarista que mantém muitos pratos girando ao mesmo tempo na ponta de varetas, sem derrubar nenhum e sem perder a classe. O trabalho adiante de todas essas linhas editoriais ao longo dos 30 anos da Devir colaborou decisivamente para estabelecer no Brasil um segmento hoje muito disputado, o da chamada cultura geek.
Conheci Reis em 1995 quando me lancei a tarefa de realizar a primeira de quatro convenções anuais de horror, as HorrorCons. Logo de cara, e com toda boa vontade e gentileza que sempre o caracterizaram, Reis se aproximou do evento, patrocinou cartazes de divulgação e esteve presente em todas elas. Mais tarde, acolheu a publicação do meu Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, do qual publicou cinco edições, sem falar em vários outros projetos dos quais participei direta e indiretamente. Neste momento estávamos envolvidos na preparação de uma antologia de contos de horror, que organizei ao lado de Marcello Simão Branco – que também foi meu parceiro nas HorrorCons e no Anuário –, e estávamos em contato quase diário. Foi um choque receber a notícia de sua morte repentina, vitimado por um ataque cardíaco fulminante na noite de 12 de outubro. Até porque Reis não tinha histórico algum, era jovem e ativo. Divertido, bem informado e sempre pronto para um bom papo - sem falar nas lições sobre edição que passava naturalmente durante as conversas - era um prazer compartilhar sua presença.
Seu corpo foi velado e enterrado no dia 14 de outubro no Cemitério da Quarta Parada, em São Paulo.
A Devir continua e torcemos por seu sucesso, mas por certo que não será a mesma sem a presença de Douglas Quinta Reis. Não há dúvida que testemunhamos aqui o fim de uma era.
Cesar Silva