sábado, 28 de julho de 2018

The War in Space / Battle in Outer Space 2 (Japão, 1977)



The War in Space” é o título americano dessa bagaceira de FC japonesa produzida pela “Toho” em 1977, aproveitando o lançamento de “Star Wars” para tentar lucrar com as histórias de guerras no espaço. O filme também é conhecido como “Battle in Outer Space 2”, numa referência como algum tipo de sequência para “Os Bárbaros Invadem a Terra” (The Mysterians, 1957) e “Mundos em Guerra” (Battle in Outer Space, 1959), ambos dirigidos por Ishirô Honda.
A história é ambientada em 1988, um futuro para a época da produção e um passado já distante para os tempos atuais, 30 anos depois. A Terra está sendo atacada por alienígenas de um planeta muito distante que está em processo de extinção, e que procuram outro lugar para viverem, um dos clichês mais saturados desse sub-gênero da FC. Eles estabelecem uma base em Vênus e promovem um ataque destrutivo nas principais cidades do nosso mundo. Para combatê-los, um renomado cientista japonês, Professor Takigawa (Ryô Ikebe, que esteve também no anterior “Mundos em Guerra”), projetou a nave de guerra “Gothen”, que é utilizada como representante da humanidade e da “Federação Espacial das Nações Unidas” para deter a invasão alienígena.
A “Gothen” tem uma broca perfuradora gigante localizada na parte frontal e com suas armas de raios laser e um sistema de lançamento de aviões similar ao disparo de projéteis de um revólver, vai até Vênus para destruir a base inimiga. A bela filha do cientista, June (Yûko Asano), é sequestrada pelo líder dos vilões e seu antigo namorado, Miyoshi (Kensaku Morita), tenta resgatá-la, respondendo um pedido do atual noivo da moça, o piloto Morrei (Masaya Oki), formando um tradicional e clichê triângulo amoroso. Trava-se então uma guerra no espaço longínquo, no distante planeta Vênus, entre os humanos e os alienígenas invasores, com sua imensa nave na forma de um galeão típico de navegação em nossos oceanos, com suas esferas voadoras que soltam raios laser.
“The War in Space” ou “Wakusei Daisenso” (no original japonês) é um filme bagaceiro de ficção científica dirigido por Jun Fukuda, com uma história típica das exageradas batalhas espaciais entre os humanos e invasores alienígenas, pela defesa de nosso planeta tão cobiçado. A única característica realmente interessante, para os apreciadores do cinema fantástico bagaceiro, são as esperadas maquetes e miniaturas de naves e aviões de guerra, os cenários coloridos tanto das bases terrestre como a alienígena, os computadores gigantes imaginados pelas mentes dos roteiristas da época, e o vilão estranho, aqui representado pelo líder tirano Comandante Supremo do Império da Galáxia, de pele verde e usando um capacete e vestuário hilários. As naves são barulhentas e a “Gohten” até solta fumaça, “poluindo” o espaço.
Porém, de resto, o filme é muito ruim. A interpretação dos atores é sofrível, sendo impossível estabelecer alguma empatia com os personagens e seus destinos. O inexpressivo ator David Perin, que faz o papel do piloto Jimmy, tem uma cena patética onde tenta esboçar alguma emoção ao saber da morte da família num ataque alienígena. Mas, ele falha de forma desastrosa na tentativa. O roteiro é extremamente superficial, explorando os mesmos elementos de dezenas de filmes similares sobre invasão alienígena pela posse da Terra.
Curiosamente, em outra cena patética, temos um clone pobre do “Chewbacca”,o “Wookiee” que se tornou um ícone popular pela cultuada saga “Star Wars”. Só que a cópia japonesa tem chifres bizarros e é um simples guarda que aterroriza a mocinha presa pelo vilão. Porém, ao contrário do famoso guerreiro original, esse é tão incompetente que dá pena.
(Juvenatrix – 26/07/18)



sexta-feira, 27 de julho de 2018

De jogos e festas, José J. Veiga

De jogos e festas, José J. Veiga. 190 páginas. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2016.

Desde 2015, quando se comemorou o centenário do nascimento do fantasista goiano José J. Veiga (1915-1999), e o catálogo do autor passou a integrar o acervo da Companhia das Letras, que iniciou a republicação de suas obras em uma coleção dedicada ao autor. Foram publicados em 2015 a coletânea Os cavalinhos do Platiplanto e os romances A hora dos ruminantes e Sombras de reis barbudos. Depois de um pequeno hiato, a coleção seguiu em frente em 2016 com o lançamento da coletânea De jogos e festas, publicada originalmente em 1980. O acabamento segue o padrão da coleção, com a capa ilustrada por Deco Frakas, mas sem capas duras desta vez.
Trata-se de uma seleta com apenas três textos, sendo duas novelas e um conto, além de um posfácio assinado por José Castello, em que comenta curiosidades sobre o autor e sua obra, principalmente a amizade com o também escritor João Guimarães Rosa.
Em respeito a opinião do autor, o volume não tem prefácio – o que é explicado por Castello –, e entra de cara na novela que dá nome ao livro e toma quase a metade de suas páginas. Esta é uma história de contornos realistas, em torno do mistério da morte de Vicente, cuja solução passa a ser o obsessão de seu irmão mais novo, Mário, que retornou à cidade natal depois de um período de afastamento. Há uma série de detalhes que o autor tece em torno desse mistério e de suas consequências familiares e sociais, mistérios estes que vão alterando a percepção e o comportamento de Mário que, aos poucos, vai assumindo a personalidade do irmão para tentar entender os motivos e o causador de sua morte, envolvendo-se com seus amigos, e demais pessoas de sue passado. A narrativa tem momentos oníricos característicos das obras de Veiga, mas sem a proposital indefinição do tempo da ação: desta vez, quando é sonho, sabemos que é.
Bem no centro do livro, temos o conto curto "Quando a Terra era redonda", o texto mais fantástico do volume. É escrito em forma de um artigo, como se fosse um texto de estudo acadêmico. Nele, o estudioso comenta, em algum momento do futuro distante, sobre as característica do mundo no tempo em que a Terra era redonda, pois em sua época ela não é mais: tornou-se chata assim com o tudo o que antes era arredondado. Assim, discute como, no passado, deveria ser a percepção de um mundo redondo, algo quase incompreensível para os habitantes do futuro. O texto é divertidíssimo, e dialoga com o clássico da ficção científica Planolâdia, do escritor britânico Edwin A. Abbott (1838-1926).
A segunda metade do volume é ocupada pela novela "O trono no morro", uma espécie de versão veiguiana a Grande Sertão: Veredas, de seu grande amigo Guimarães Rosa. O início do texto tem um tom de fantasia medieval, que vai se justificar ao final da leitura. A história é sobre Quintino que, quando jovem, foi "recrutado" pelo bando de Gumercindo Frade, cangaceiro violento que o inicia na arte da bala. Quintino sonha em voltar a vida pacífica e previsível de agricultor da qual foi sequestrado, mas seu talento com as armas acaba por torná-lo uma referência no grupo cangaceiro. Até o dia em que, depois de uma tocaia à traição que dizimou o bando, Quintino consegue escapar e se torna um pacato comerciante numa cidadezinha esquecida. O rumo da história muda radicalmente, saindo das correrias e tiroteios para uma relação social estável com a comunidade, onde Quintino vai encontrar o amor e a realização pessoal, bem como as tragédias da vida ordinária, que são tão ou mais dolorosas que aquelas enfrentadas no cangaço. Resta a Quintino a fuga para dentro de si mesmo.
Veiga nunca decepciona seus leitores. Trata-se de um verdadeiro gigante da narrativa, que faz emergir o maravilhoso das situações mais corriqueiras. Porque, afinal, a vida é por si só um milagre e cada detalhe dela é, em si, um fato tão fantástico quanto improvável, conforme o ponto de vista. Ponto de vista este que Veiga, como um experiente fotógrafo, é mestre em focalizar.
Cesar Silva

sábado, 21 de julho de 2018

O Templo do Passado


O Templo do Passado (Le Temple du Pasè), Stefan Wul. Tradução de André Varga. Capa de Lima de Freitas. Lisboa: Edição Livros do Brasil, Coleção Argonauta no. 85, 1964. 149 páginas. Lançado originalmente em 1957.

Tenho uma história curiosa com este livro. Estava de férias com a família no interior de Santa Catarina. Era 19 de janeiro de 1989 e voltávamos para casa. Meu pai parou num posto de gasolina na saída de Joinville para abastecer o carro. Da janela da parte de trás eu vi um sebo. Sim, um sebo! Saí do carro e fui até lá, sob protestos dos meus acompanhantes. E foi aí que achei O Templo do Passado e mais uns dez outros livrinhos da Argonauta. Foi o momento mais feliz das férias e, até hoje, a única coisa que lembro dela.
Escolhi a esmo um dos livros. Era O Templo do Passado, que li durante todo o tempo da viagem de sete horas até São Paulo. Valeu muito a pena, pois o livro é sensacional. FC pulp da melhor cepa, e minha estreia com a ficção incrivelmente imaginativa de Stefan Wul.
Este pequeno romance é o quinto da carreira de Pierre Pairault (1922-2003), que escreveu toda a sua obra de ficção científica sob o pseudônimo de Stefan Wul. Foi publicado pela primeira vez na célebre coleção francesa Fleuve Noir, no. 106, em 1957, e é o quinto publicado na igualmente célebre Coleção Argonauta, de Portugal, em seu número 85, no ano de 1964.
Durante uma viagem espacial a nave sobre um acidente e entra velozmente na atmosfera de um planeta desconhecido. Foi tudo muito rápido, e com o choque a maioria da tripulação morreu instantaneamente. Inicialmente, quatro sobreviveram mas, em parte por causa dos ferimentos, apenas dois permaneceram vivos: o piloto Massir e o médico Jolt.
A nave foi seriamente avariada e eles percebiam que ela balançava de um lado para outro, subia de cima para baixo ou vice-versa. Para solucionar o mistério Massir sai da nave e adentra num ambiente surpreendente: o interior de uma gigantesca baleia! Mas como foram parar dentro dela? Não há como ter certeza mas, provavelmente, em sua queda a nave penetrou, tal como uma bala, no corpo do cetáceo. Desta forma, além de estarem dentro de um ser vivo, ainda se encontravam no fundo do mar.
Esta é uma típica história identificada com o que os americanos chamam de problem story, na qual os personagens são colocados em perigo e, para sair desta situação, tem de buscar soluções científicas ou tecnológicas. Pois, então,  depois de vencerem a estupefação e o desespero puseram-se a trabalhar com o que tinham à mão dentro da nave. Primeiro, retirá-la do interior do estômago da baleia e depois consertar a nave para decolarem novamente. Duas tarefas extremamente difíceis e improváveis. Mas eles conseguem injetar algumas substâncias moleculares no metabolismo da baleia, para provocar mutações que a fizessem deixar o mar e passasse a viver, gradativamente, na superfície.
Após algumas experiências frustradas Massir e Jolt finalmente conseguem o seu intento, pois a baleia desenvolve patas dianteiras e traseiras, que a permitem deixar a água e viver em terra. Nunca deixa de ser aquático, contudo, transformando-se num anfíbio, mas que passa a maior parte do tempo num ambiente intermediário: um enorme pântano, que lhe dá muito prazer! (As passagens em que a baleia assume a narrativa são encantadoras e nos fazem ter simpatia por ela).
Assim, quando ambos percebem que, na verdade, estavam numa situação ainda mais complicada, decidem sacrificar a baleia, apesar dos protestos de Jolt. Conseguem, depois, retirar a nave do interior do enorme corpo, que acabou por se liquefazer diante de poderosos compostos ácidos presentes na própria atmosfera do planeta, à base de ácidos clorídricos.
É interessante observar que em O Templo do Passado, Wul explora mais profundamente a aventura de uma missão no interior de um organismo, vista pela primeira vez em seu primeiro romance, Regresso a Zero (Retour à “0”), de 1956, quando uma equipe de cirurgiões operou um astronauta acidentado. Outro aspecto interessante é que Wul faz uso do seu conhecimento científico, pois era dentista de formação e profissão. Ele faz um largo e detalhado processo descritivo de como Jolt desenvolve os mecanismos possíveis para uma rápida mutação, além de também usar do próprio organismo da baleia para produzir oxigênio para eles. Nesse sentido é uma FC pulp com pendor hard bastante apurado.
Após a morte da baleia eles descobrem dezenas de ovos. Ela estava grávida e acaba gerando alguns bebês mutantes, anfíbios que, depois de adultos e se reproduzirem, produzem répteis, lagartos de vários tipos que passam a povoar a superfície do planeta. Passam-se anos, mas os dois não desistem de seu objetivo de consertar a nave e voltar para a Terra. Mas ao perceberem que os lagartos os adoram e são telepatas, acabam por se atrapalhar em seu objetivo, ficando, por fim, presos ao planeta desconhecido.
Mas a que se refere o templo do passado do título? Após ficar sozinho no planeta, Massir, fazendo uso de seus conhecimentos técnicos, constrói uma câmara à base de gelo cristalizado, onde hiberna na esperança de ser resgatado num futuro distante. O tal templo é finalmente descoberto alguns milhares de anos depois por uma expedição vinda exatamente da Terra. E o final do livro ainda reserva uma surpresa de cair o queixo. É um daqueles livros com um final extremamente impactante, que fica na memória por anos. Nesse sentido, relutei em voltar a ler o livrinho décadas depois. Mas redescobri o prazer da prosa fluente e direta, de personagens ativos e pragmáticos, e de uma imaginação pulpesca com raro paralelo dentro do campo da ficção científica, deste que é, possivelmente, o melhor livro de Stefan Wul.

– Marcello Simão Branco

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Shiroma Matadora Ciborgue


Shiroma Matadora Ciborgue, Roberto de Sousa Causo. Introdução de Nelson de Oliveira. Capa de Vagner Vargas. 241 páginas. São Paulo: Devir, 2015.

     
Desde 2008 Roberto de Sousa Causo escreve uma série de histórias no chamado Universo Galaxy, com aventuras militares espaciais na melhor tradição da space opera, com aventuras, intrigas políticas e muita tecnologia. De início elas foram pensadas para serem protagonizadas pelo Capitão Jonas Peregrino, mas pouco depois foi incorporada também uma segunda personagem, Shiroma, uma ciborgue treinada para matar.
Tanto Peregrino como Shiroma lideram histórias próprias dentro deste universo ficcional, não tendo, pelo menos até o momento, interagido um com o outro de forma direta. Habitam um mesmo contexto, situado no século XXV, em que a humanidade está profundamente envolvida na expansão e colonização da Via Láctea, nas chamadas Zonas de Expansão, sendo a região da Esfera a maior e mais rica, embora contestada pelos Tadai, alienígenas misteriosos que não mostram o seu rosto.
O universo ficcional de Peregrino e Shiroma contraria, em parte, o futuro de consenso, uma das convenções da FC norte-americana, de que no futuro a humanidade explorará o cosmos politicamente unida. A referência mais popular ao conceito é a série de TV Jornada nas Estrelas (Star Trek). Em parte, porque a humanidade continuou dividida politicamente, entre a América Latina – ao qual pertence o militar e a assassina –, os Norte-Americanos, os Asiáticos e os Euro-Russos. É de se pensar que, para que quatro alianças na Terra tenham condições de se expandir pelo espaço de forma autônoma, o nível de afluência econômica e de produção científico-tecnológica seja mais alto do que jamais chegou antes o capitalismo em sua história. Se em termos políticos, de fato, pode fazer mais sentido a continuidade da competição e conflito entre diferentes povos da Terra, em termos econômicos, por outro lado, uma solução de consenso – de juntar forças – faria mais sentido. A construção do consenso é muito difícil, mas a escassez de recursos poderá, talvez, levar, senão a uma união, a parcerias estratégicas em torno de objetivos comuns.
Embora Causo tenha desenvolvido bastante as aventuras de Peregrino, numa série intitulada “As Lições do Matador”, publicando ao menos quatro contos e o romance Glória Sombria (2009), em termos cronológicos de publicação a primeira aventura é de Shiroma, com o conto “Rosas Brancas”, em 2008. Isso porque, como afirma Causo no posfácio, ele escreveu este conto para a série de revistas “Portal”, de Nelson de Oliveira, embora ainda não tivesse consciência de que poderia partilhar o mesmo universo ficcional de Peregrino. Foi com a sequência dos seis contos publicados na série que ele incorporou Shiroma ao Universo Galaxys, acrescentando, assim, uma segunda protagonista e, mais interessante, com uma segunda linha narrativa – e levada à frente por uma mulher.
Shiroma Matadora Ciborgue reúne onze histórias com a personagem, cinco delas publicadas pela primeira vez neste volume. Elas estão dispostas em ordem cronológica das aventuras e não, necessariamente, na sequência em que foram publicadas. Foi uma decisão acertada, pois o leitor pode acompanhar de forma mais coerente os diferentes momentos vividos pela personagem e seu próprio desenvolvimento, muito embora algumas situações anteriores sejam lembradas em cada uma das histórias. Pode também ser considerado um romance fix-up, ao reunir diversas histórias de um mesmo universo ficcional.
Shiroma, na verdade não é seu nome de batismo. Quando criança chamava-se Bella Nunes, e foi sequestrada por um misterioso casal de criminosos Tera e Tiago, que passou a criá-la para torná-la uma espiã e matadora, a serviço dos seus interesses. A criança despertou atenção e cobiça pelo fato de ser um protótipo de um ciborgue com sistemas biocibernéticos supereficientes e indetectáveis. Sua primeira história “Rosas Brancas”, mostra como foi desenvolvida por seu pai, e retirada de sua mãe, morta por Tera e Tiago. O que fica claro desde o início é que Bella Nunes foi uma criança que perdeu a sua liberdade, ou nunca a teve, pois cresceu para se tornar um instrumento de interesses escusos.
A cada missão a rebatizada Shiroma mostra-se extremamente eficiente em eliminar seus alvos, fazendo uso tanto de suas habilidades como lutadora, como também de suas vantagens cibernéticas. De certo modo conta a seu favor também o fato de ser uma garota recém-saída da adolescência, surpreendendo seus oponentes que se deixam enganar por seu sexo e aparência frágil. Pois vemos esta situação se repetir em várias histórias, embora com a sucessão das missões seus oponentes passem a ver Shiroma mais segura e consciente do que representa. Isso se torna mais claro em histórias como “Arribação Rubra”, “Tempestade Solar” e, sobretudo a última, “Renegada”.
O que torna Shiroma uma personagem interessante é que ela não se transformou apenas numa máquina assassina, tão sem caráter quanto os criminosos que a criaram. Mesmo sendo utilizada para atividades ilegais, ela se ressente desta condição e se questiona a todo o momento. Sabe que o que faz é errado, que o casal que a criou não presta, e imagina como poderá, em algum momento, se desvencilhar desta situação de submissão. Recuperar, de certo modo, seu futuro que foi desviado, após o assassinato de sua mãe. Simbólico deste objetivo é a relação que estabelece com uma concha do mar, achada num planeta anônimo, ainda bem jovem. Sempre nos momentos difíceis ou de reflexão ela imagina falar com sua mãe ou com a criança inocente que foi um dia, ao ouvir a concha junto ao ouvido. Por onde vai, em cada missão num diferente canto da galáxia, a concha é a sua referência poética e ética do que poderia ter sido. Uma esperança de que poderá se libertar das garras que a aprisionam, e expressar sua verdadeira identidade.
Estas situações ambíguas de ilegalidade e retidão, força e fragilidade, violência e sonho, é o que estrutura a sua personalidade e a torna tão complexa e interessante, mesmo que seja difícil compreender como pôde conviver por tanto tempo com atividades tão vis sem se tornar também parte desta engrenagem de criminalidade e maldade. Lendo as histórias fiquei com uma sensação de que ela poderia romper este vínculo, sendo tão forte e hábil, não precisando se submeter ao casal de criminosos. Pois assim como ela amadurece como lutadora, também mudará sua relação de dependência com o casal, deixando seu destino aberto a novas possibilidades, conforme mostra a noveleta que encerra o volume, “Renegada”.
Uma história particularmente interessante é “A Extração”, pois é contada do ponto de vista de uma investigação no interior de uma nave espacial, para se descobrir o assassinato de um general num planeta gelado. É como se a missão de Shiroma fosse invertida, isto é, não se mostrou sua ação em si, mas as consequências do seu ato. Ela fica incógnita no interior da nave e é descoberta pelo diplomata Silvano Vieira de Mello, que terá suas próprias razões para decidir o que fazer com ela. Ele é o personagem principal desta história, uma homenagem ao renomado diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, Alto Comissário dos Direitos Humanos da ONU, que estava cotado para se tornar Secretário-Geral, quando morreu num atentado da Al Qaeda no Iraque em 2003.
Numa comparação das duas linhas narrativas lideradas por Peregrino e Shiroma, constatamos que nas aventuras de Jonas Peregrino mostra-se mais o contexto macro, político, de disputa pelo poder e da ameaça representada pelos Tadais, que ameaçam a expansão humana. Neste cenário ele se coloca, muitas vezes, como se fosse uma espécie de referência ética involuntária, por força dos acontecimentos em que é envolvido, em meio às intrigas políticas e militares. Já com Shiroma temos o contexto mais miúdo das relações em sociedade, as culturas e o cotidiano dos lugares em que parte para realizar suas missões. Pois ela se insere num contexto marginal e criminoso, ao contrário do mais institucionalizado – embora não menos perverso – de Peregrino.
Na introdução Nelson de Oliveira disse que deseja ver Peregrino e Shiroma atuando juntos numa mesma história, e também compartilho desta possibilidade, muito embora acredite que Shiroma ainda tenha muito potencial próprio a desenvolver, talvez agora no formato de um romance, a partir do desfecho desta coletânea. Enfim, um ótimo exemplo de uma ficção científica espacial de primeira qualidade, pois para além do cenário espacial deslumbrante, ganha ainda mais relevo com as discussões éticas e políticas que dizem respeito, antes de mais nada, a nós mesmos.

– Marcello Simão Branco