segunda-feira, 30 de maio de 2016

Mushishi

Mushishi (Mushishi), Hiroshi Nagahama, Japão 2006. Série com 26 episódios.

Algumas ideias das histórias fantásticas são tão absurdas que é necessário que o autor use técnicas narrativas especiais para manter o interesse do expectador/leitor. Entretanto, algumas poucas encontram uma abordagem tão naturalista e emotiva que nos pegamos desejando que aquilo fosse real.
É o caso de Mushishi, série japonesa em desenho animado exibida no Brasil em 2010 pela extinta tv a cabo Animax, que se destacou na programação por ser uma história singela e não violenta, de estilo adulto e sem aqueles personagens "zoiúdos" que caracterizam os animes.
Trata-se uma fantasia eminentemente pastoral, que conta as histórias de Ginko, uma médico andarilho que ajuda as pessoas do Japão antigo em questões relacionadas a um tipo de ser vivo invisível, nem vegetal nem animal, conhecido como mushi.
Os mushis compartilham o mundo com os homens e animais, mas geralmente não interagem conosco. Ocupam um plano intermediário e mal notam a nossa existência. Não são maus mas, como todos os seres vivos, farão o que for preciso para sobreviver e muitas vezes isso significa interferir na vida dos homens, geralmente de forma imprevisível e essa intervenção pode ser perigosa e até mortal. É justamente nos casos mais graves que Ginko revela sua utilidade.
Desde muito jovem, Ginko demonstrou ter afinidade com os mushis, que pode enxergar facilmente, por isso os conhece muito bem. Não pode ficar muito num mesmo lugar porque alguma coisa nele atrai os mushis. Então, Ginko se tornou um mestre dos mushis peregrino, sempre movendo-se de aldeia em aldeia, ajudando os que têm problemas com os bichinhos.
A história da vida de Ginko também é um mistério revelado aos poucos. Sua aparência anacrônica, com cabelos alvos e olhos muito verdes, contrasta com o tipo físico dos japoneses. Suas roupas algo modernas também parecem deslocadas naquele universo rural.
A violência física, tão comum nos animes, é algo que não tem lugar em Mushishi. Ela eventualmente se apresenta sim, mas de forma velada, em preconceitos, desprezo e autoritarismo; armas, nem mesmo uma espada.
As histórias são calmas e suaves, traduzindo um verdadeiro espírito zen budista. A natureza é parte importante da trama e muitas vezes é a intervenção dos homens nela que causa problemas com os mushis, que dependem muito do equilíbrio ambiental.
A abertura do desenho tem uma poética toda especial, com uma trilha sonora no estilo folk norte americano.
Como a natureza dos mushis está além do espaço e do tempo, a interação dos homens com eles pode criar singularidades estranhas, o que permite histórias de diversos gêneros. Embora seja fundamentalmente um seriado de fantasia, algumas histórias chegam as franjas da ficção científica e do horror.
O seriado é baseado na história em quadrinhos homônima criada por Yuki Urushibara, publicada originalmente entre 1999 e 2008 na revista Afternoon. Tem 26 episódios ao todo e um bem produzido longa metragem em live-action lançado em 2007, dirigido por ninguém menos que Katsuhiro Otomo, mais conhecido entre os brasileiros pela hq Akira. Vale a pena procurar pela série, que tem parte de seus episódios legalmente disponível no saite Crunchyroll, aqui.
Cesar Silva

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira

Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira, Lainister de Oliveira Esteves. 256 páginas. Editora Escrita Fina, Rio de Janeiro, 2010.

Muitas vezes, a diferença entre uma impressão e uma certeza pode ser mínima. E a impressão que a ficção especulativa sempre fez parte da literatura brasileira era uma convicção que eu tinha comigo. Mas sempre foi difícil argumentar com precisão quando se tratava de citar exemplos. Mas tenho que confessar que, afora alguns títulos e autores mais destacados que sempre são lembrados nesses momentos, dava até a mim mesmo a sensação que talvez estivesse forçando a tese para além do que ela poderia se sustentar.
A antipatia da crítica especializada pela ficção de gênero, que sempre desconsidera essa classificação para textos de autores canônicos, mantinha as referências à distância, sempre que possível. Parecia ser necessário um prolongado e exaustivo trabalho de pesquisa acadêmica para tirar esses trabalhos dos cofres da memória, esquecidos em livros obscuros e jornais antigos, como tem feito o pesquisador Braulio Tavares em diversas antologias recentes, como Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros (2003) e Páginas do futuro: Contos brasileiros de ficção científica (2011), ambos publicados pela editora Casa da Palavra.
A estes volumes junta-se agora Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira, organizado por Lainister de Oliveira Esteves para a Editora Escrita Fina. Na verdade, este trabalho foi publicado em 2010, mas somente agora o descobri. Esteves é um pesquisador carioca, doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e especializado em História Cultural, e este trabalho ilustra muito bem o carinho que o organizador tem para com a literatura brasileira.
Como o nome já diz, a antologia é formada por treze textos de horror de autoria de nove escritores canônicos já em domínio público: Álvares de Azevedo (1931-1852), Bernardo Guimarães (1825-1884), Machado de Assis (1839-1908), Aluísio de Azevedo (1857-1913), Thomaz Lopes (1879-1913), João do Rio (1881-1921), Gonzaga Duque (1886-1911), Humberto de Campos (1886-1934) e Lima Barreto (1881-1922). Destes autores, quatro já são bastante conhecidos entre os leitores de ficção fantástica: Álvares de Azevedo, Aluísio de Azevedo, Machado de Assis e Lima Barreto, mas os demais são gratas novidades no arcabouço da ficção fantástica nacional.
O primeiro conto selecionado pelo organizador, que decidiu dar ao volume um tratamento mais ou menos cronológico, é "Bertram", uma das cinco sangrentas histórias que formam Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, o trabalho de horror mais conhecido das letras nacionais publicado originalmente em 1885. É justamente o texto mais forte do conjunto, com a história de um conquistador que vai até as últimas consequências por um rabo de saia. O estilo elegante de Azevedo reporta diretamente a Edgar Alan Poe.
"A dança dos ossos", de Bernardo Guimarães, publicado no livro Lendas e romances, de 1871, é uma sequência de três pequenos 'causos' de assombração, confrontando o racional e o irracional a partir de um assassinato brutal motivado por ciúmes.
Machado de Assis comparece com dois textos. Em "Sem olhos", publicado em 1876 no Jornal da Família, o narrador conta a história mórbida de seu vizinho de pensão, um homem incomum enlouquecido pela proximidade da morte. É curioso notar uma certa similaridade deste trabalho, em especial, às narrativas de H. P. Lovecraft, autor norte-americano que desenvolveu sua obra posteriormente, sem os componentes intolerantes deste, contudo. "A causa secreta", publicado 1875 na Gazeta de Notícias, é menos sobrenatural e, por isso mesmo, mais perturbador, pois trata de um distúrbio psicológico algo comum, o sadismo. A narrativa se resume a fatos simples, mas assustadores, que permeiam a vida de um casal e um amigo, num triângulo amoroso insuspeito.
Aluísio de Azevedo também comparece com dois textos. "O impenitente", publicado em 1898 na coletânea Pegadas, é uma narrativa clássico de horror gótico, em que um padre descontrolado pela paixão por uma mulher, tem uma experiência aterrorizante durante uma noite de insônia. O segundo texto do autor é o clássico "Demônios", a narrativa mais longa do volume, publicado em 1893 na coletânea de mesmo nome. É uma história surrealista, que flerta com a ficção científica, antecipando diversos temas do gênero. Conta a transformação por que passa o protagonista e toda a sua realidade a partir do momento em que as estrelas começam a se apagar.
"O defunto", publicado em 1907 por Thomaz Lopes, explora um tema recorrente no gênero: o enterrado vivo. Um homem desperta de seu sono cataléptico aprisionado em uma cripta de pedra e mármore. Ainda que tenha alguma liberdade para se deslocar, ar para respirar e a luz do sol que ilumina o lugar por uma pequena fresta, todos os seus esforços não permitem que ele saia dali. Conforme os dias passam, a fome e a sede ganham contornos cada vez mais mais desesperadores.
João do Rio era um autor que eu conhecia só de ouvir falar, e fiquei surpreso com a força dos dois textos de sua autoria que o organizador selecionou para esta antologia. Em "Dentro da noite", um homem conta aos companheiros de uma viagem de trem noturna, como sua vida desmoronou por causa de uma compulsão bizarra, e o excelente "O bebê de tartalana rosa", que conta a experiência desconcertante de um libertino durante a madrugada de uma quarta-feira de cinzas. Os dois trabalhos foram publicados respectivamente em 1906 e 1908 na Gazeta da Noite.
Gonzaga Duque é outra grata novidade, com o conto "Confirmação", uma história de fantasma com pendões de ficção científica, publicada originariamente em 1914 na coletânea Horto das mágoas. Conta o que acontece durante um experimento conduzido por um cientista em uma sessão de espiritismo.
Os dois textos de Humberto de Campos exploram a linha do terror, ou seja, o medo gerado a partir de um evento não sobrenatural, ambos publicados coletânea O monstro e outros contos, de 1932. "O juramento" acompanha ao relato de um bêbado louco que conta como sobreviveu a captura de uma tribo de índios antropófagos, e "Retirantes" mostra a dor e o desespero de uma velha matrona decadente cuja única escapatória à seca terrível que assola sua terra é ir embora dali. Mas, para isso, ela precisa de roupas.
Lima Barreto, autor que tem vários outros textos ligados a ficção fantástica, fecha a seleta com o conto "O cemitério", publicado em 1956 na coletânea Marginália, no qual um homem passando por um cemitério se encanta com a fotografia de uma jovem ali sepultada.
A antologia ainda conta com os ensaios "Uma literatura envolta em sombras", que contextualiza os contos selecionados, e "Sobre os autores", com biografias breves de cada autor apresentado, ambos assinados pelo organizador.
Percebe-se a evolução do gênero ao longo dos textos, que começam com o recorrente medo do morto e da morte, que também caracterizou as primeiras obras do gênero em outras culturas, avançando para questões psicológicas e patológicas conforme a morte se desmistificou, chegando até a especulações de ordem científica, o que demonstra que a literatura brasileira não esteve alheia ao gênero e fez uso dele de forma consistente. Percebe-se também que o exercício do gênero esteve intimamente vinculado a literatura popular publicada nos periódicos, que se define assim esse como o espaço "pulp" que a literatura nacional não experimentou plenamente.
Além de muito divertido, Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira é um volume valioso para aqueles que buscam entender o desenvolvimento da literatura de gênero no Brasil e seu valor dentro do cânone nacional.
Cesar Silva

quarta-feira, 18 de maio de 2016

As aventuras de Sir Charles Mogadom e do Conde Euphrates de Açafrão, Arthur, Rubens e Carlos Matuck


O livro ilustrado As aventuras de Sir Charles Mogadom e do Conde Euphrates de Açafrão é um trabalho coletivo que os irmãos Arthur, Rubens e Carlos Matuck produziram ao longo de praticamente toda a vida. 
Trata-se, à primeira vista, de um álbum de histórias em quadrinhos, mas uma observação mais atenta revela que é mais do que isso. Cada um dos quadros é uma obra de arte em si, delicadamente produzida em lápis de cor, num efeito belo e de muita personalidade. Não há balões, nem onomatopeias, nada que se sobreponha aos desenhos, com todo o texto composto abaixo dos quadros, como numa prancha de Príncipe Valente.
São apresentados dez episódios mais alguns fragmentos, comentados pelo jornalista Oscar D'Ambrósio, que ainda brinca com os personagens da narrativa, entrevistados na edição.
O texto, tal qual as ilustrações, é poético e delicado. A história se passa na imaginária cidade de Damar, onde os cientistas Sir Charles Mogadom e do Conde Euphrates de Açafrão desenvolvem pesquisas incomuns sobre a natureza das coisas. Damar esparrama-se à sombra de uma gigantesca árvore que, a certa altura, libera sementes voadoras que serão a inspiração de Alberto Santos Dumont para seus projetos voadores. A presença de Dumont abre um leque de possibilidades interessantes para o trabalho, pois de uma certa maneira o instala no gênero steampunk, muito popular entre os fãs de ficção científica, e mesmo numa possível história alternativa, uma vez que detalhes da vida real de Dumont são citados na aventura.
A história ainda faz referência a muitas personalidades ligadas aos quadrinhos, como Flavio Colin, Angelo Agostini, George Remi, Carl Barks, Hal Foster, Winsor McCay, Ub Iwerks, Floyd Gottfredson e Ziraldo.
O álbum, que é uma publicação da Editora Terceiro Nome, tem 160 páginas em cores, com capa dura e sobrecapa. Com certeza, uma das mais luxuosas e significativas publicações de 2010 tanto na área dos quadrinhos quando da fc&f brasileira.

Os lançamentos da fcf&h no Brasil em 2015

Está disponível para download gratuito a primeira edição do Almanaque da Arte Fantástica Brasileira, que dá sequência ao trabalho realizado até 2014 pelo Anuário Brasileiro de Arte Fantástica, com uma ampla lista de livros de literatura de ficção científica, fantasia e horror publicados no Brasil em 2015.
A proposta é a mesma do Anuário, de catalogar os lançamentos e relançamentos de fcf&h de autores nacionais e estrangeiros, albergando também as edições virtuais. A edição tem 34 páginas e relaciona 696 títulos, sendo 282 nacionais e 414 estrangeiros.
Apesar de ampla, a pesquisa não é absoluta, pois é praticamente impossível relacionar tudo o que se publica no país, uma vez que muitas edições são lançadas regionalmente e sua divulgação não alcança a pesquisa, mas o levantamento cumpre seus objetivos na medida em que, seguindo os mesmos critérios do Anuário, monta um panorama bastante confiável da publicação do gênero por aqui.
Podemos observar a evolução do mercado na figura abaixo, na qual foram computados, ano a ano desde 2004, os números da publicação de autores brasileiros (em azul), estrangeiros (em vermelho) e o total geral (em verde). Houve um crescimento contínuo e explosivo até 2010, quando a crise começou a se manifestar derrubando fortemente a quantidade de lançamentos do ano seguinte e, ainda que 2012 tenha sido o melhor ano do período estudado, desde então os números têm sofrido quedas sucessivas, especialmente no que se refere a publicação de autores locais, colocando o mercado de 2015 no pior patamar desde 2009.
Também percebemos que a publicação de autores nacionais, que havia superados a de estrangeiros traduzidos entre 2010 e 2013, em 2015 voltou a ficar bem abaixo, como também aconteceu em 2014. Isso é decorrente da recuperação da credibilidade do gênero entre as grandes editoras que, contudo, não se reflete positivamente para os autores nacionais porque elas preferem traduzir estrangeiros.
Mas as notícias não são ruins de todo, pois os lançamentos de 2015 mostram-se estáveis em relação ao ano anterior.
Para os mais curiosos, a última página do Almanaque relata todos os números de 2015, não apenas os totais, mas também os subtotais por formato e gênero. Os levantamentos dos anos anteriores podem ser obtidos nas edições do Anuário, algumas delas disponíveis gratuitamente aqui.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Trash, Náusea Total (Bad Taste, Nova Zelândia, 1987)


Escrito originalmente em 13/02/2005.

“Carne humana para hamburgers intergaláticos”

A “Editora Van Blad” lançou no formato VCD com distribuição nas bancas de jornais no início de Fevereiro de 2005 pela revista “VCD Collection” ano 1, número 4, o primeiro trabalho de maior porte do cineasta Peter Jackson, responsável por “Meet the Feebles” (89), “Fome Animal” (92), “Os Espíritos” (96) e a trilogia de “O Senhor dos Anéis” (2001/02/03). Trata-se de “Trash, Náusea Total” (Bad Taste, 87), que já havia sido lançado no Brasil no formato VHS e fora de catálogo há muito tempo.
É um filme de baixo orçamento e muita violência e sangue, onde Peter Jackson fez de tudo, desde atuar em dois papéis diferentes, dirigir, produzir, escrever o roteiro, editar e até criar os efeitos especiais e a maquiagem, além da direção da fotografia, filmando nos finais de semana com amigos e uma câmera 16 mm. Inicialmente, a ideia era apenas um projeto de curta metragem com cerca de dez minutos, abordando basicamente uma história de canibais e que chamava-se “Roast of the Day” (algo como “O Assado do Dia”), com os trabalhos se iniciando em 1983. Porém, com o passar do tempo foram surgindo novas ideias e com o lançamento bem sucedido de “The Evil Dead”, de Sam Raimi, o filme de Peter Jackson foi aumentado para quase uma hora e meia em quatro anos de filmagens, e o roteiro recebeu mudanças interessantes passando a se chamar “Bad Taste”, ou “Mau Gosto” / “Sabor Ruim” em traduções literais. Aliás, o nome nacional escolhido é até interessante pois “Náusea Total” é bastante coerente com a história (sem o desnecessário “Trash” colocado para aproveitar a moda “trashmania” que surgiu no Brasil na época).
Um coletor de impostos, Giles Copland (Craig Smith), vai até uma pequena cidade do interior da Nova Zelândia chamada Kaihoro, e encontra tudo estranhamente vazio, sendo surpreendido pela perseguição de um psicopata armado com uma faca enorme, Robert (Peter Jackson, com barba). Ao pedir socorro numa das casas, Giles é recebido por um grupo de alienígenas disfarçados de humanos, que o capturam para tornar-se o cardápio. Os extraterrestres vieram ao nosso planeta com o objetivo de estocar carne humana para vender como alimento numa famosa rede intergaláctica de restaurantes chamada de “Deliciosas Mordidas” (que por sua vez precisava apresentar uma iguaria diferente aos seus clientes para combater a concorrente “Frituras Lunáticas”).
Porém, para enfrentá-los e salvar o coletor de impostos de se tornar janta dos alienígenas canibais, surge um grupo bizarro de agentes especiais fortemente armados, representando o “Serviço de Defesa e Investigação Alienígena” (ou A.I.D.S. – “Alien Investigation and Defense Service”) do governo neozelandês. O grupo é formado pelo nerd Derek (Peter Jackson, sem barba), companheiro de Barry (Pete O´Herne), além da dupla Frank (Mike Minett) e Ozzy (Terry Potter).
O filme é uma paródia super divertida e extremamente sangrenta, repleta de situações hilárias e fortes cenas de violência com direito a cabeças explodidas à bala, banhos de sangue em profusão, vísceras expostas, desmembramentos, dilacerações, canibalismo, e todo tipo de atrocidades. Algumas cenas são antológicas e que merecem destaque como quando o alienígena Robert vomita uma imensa gosma verde num prato, a qual é considerada um delicioso mingau que deve ser experimentado pelos companheiros, obrigando o agente Frank disfarçado a comer um pouco da fina iguaria. Ou ainda quando o outro agente especial Ozzy (que lembra um soldado tipo “Rambo”) dispara uma arma enorme contra a casa onde os alienígenas estão escondidos, e o imenso projétil atravessa as janelas abertas e acerta uma ovelha que estava pastando distraída nos fundos, explodindo o bicho num monte de sangue e carne destroçada.
Algumas homenagens também podem ser reparadas como numa cena onde Peter Jackson referencia o momento de dormir dos integrantes da família de “Os Waltons”, famosa série de TV dos anos 70. Ou ainda numa cena homenageando o clássico moderno “O Iluminado” (1980), quando Derek está enlouquecido depois de bater a cabeça e perder partes do cérebro (e também de misturar pedaços de cérebros dos alienígenas ao seu próprio), e arrombar uma porta com uma serra elétrica, numa cena similar àquela de Jack Nicholson no filme de Stanley Kubrick.
Sem contar a completamente estranha e hilária nave espacial dos alienígenas (que só rivaliza com a nave de “Palhaços Assassinos” / “Killer Clowns From Outer Space”, 88). Aliás, uma curiosidade é que não existem mulheres entre os principais personagens (existem apenas uma ou outra embaixo de fantasias interpretando alienígenas masculinos). E o cineasta multifuncional Peter Jackson durante o período em que filmava “Trash, Náusea Total” (quatro longos anos), conheceu a roteirista Francis Walsh,que se tornou sua esposa e parceira em muitos trabalhos posteriores como a badalada saga “O Senhor dos Anéis”.
 “Trash, Náusea Total” é recomendado para todos aqueles que apreciam o cinema fantástico de baixo orçamento, produções menores e mais caseiras com histórias bizarras e não convencionais. É indicado também para os fãs do cineasta Peter Jackson, que antes de tornar-se mundialmente conhecido pela trilogia de “O Senhor dos Anéis”, já fazia seus filmes baratos com temas escatológicos. E para os colecionadores de filmes, certamente vale a pena adquirir o VCD distribuído nas bancas de jornais, como um item indispensável em qualquer videoteca de horror.
A “Editora Van Blad”, a exemplo do que já havia ocorrido com o lançamento anterior do VCD de “O Túnel do Horror” (uma antologia com um episódio baseado em conto de Stephen King), cometeu novamente alguns equívocos que inevitavelmente incomodam. A começar pela capa do VCD, informando duas vezes que o filme é do diretor Peter Jackson (bastava uma única vez, não precisava mencionar o fato no topo e embaixo da ilustração de capa). Porém, eles acertaram em reproduzir o cartaz original, onde um alienígena faz um gesto obsceno com o dedo médio (nos Estados Unidos, houve um fato ridículo sobre a distribuição do vídeo, onde acrescentaram mais um dedo ao lado do dedo médio do alienígena, não simulando mais um gesto obsceno e sim um dispensável sinal tipo “paz e amor”).
Na contra capa do VCD, a sinopse tem um erro grotesco, mencionando que o filme tem muitas “decepções”, onde provavelmente eles queriam dizer “decepamentos” (pois a palavra “decepação” não existe no famoso dicionário da língua portuguesa “Aurélio”). Sem contar que quem fez a arte final trocou uma simples palavra no nome de Peter Jackson, que ficou como “Oeter”. Tem também a informação “Tempo VCD: 60 min”, que não faz o menor sentido, já que o filme tem 88 minutos e não foi cortado (ainda bem...). A editora deveria se preocupar mais com o trabalho de revisão para a arte final das capas do VCD.
Já a revista “VCD Collection” número 4, tem como maior erro colocar na capa uma foto onde destaca um “orc” de “O Senhor dos Anéis”, quando o certo deveria ser uma imagem relacionada ao filme que está sendo lançado pela revista, ou seja, um cartaz ou foto de “Bad Taste”.

Trash, Náusea Total” (Bad Taste, Nova Zelândia, 1987). Duração: 88 minutos. Direção, produção, roteiro, fotografia, edição, efeitos especiais e maquiagem de Peter Jackson. Música de Michelle Scullion. Elenco: Peter Jackson (Derek / Robert), Barry (Pete O´Herne), Frank (Mike Minett), Ozzy (Terry Potter), Craig Smith (Giles Copland), Doug Wren (Líder alienígena), Dean Lawrie, Peter Vere-Jones, Ken Hammon, Robin Griggs, Michael Gooch, Peter Gooch, Laurie Yarrall, Shane Yarrall, Philip Lamey.

(Juvenatrix - 13/02/2005)

domingo, 15 de maio de 2016

Tarântula (Tarantula, EUA, 1955)


Escrito originalmente em 25/06/2011.

Os anos 50 do século passado foram muito produtivos para o cinema fantástico, com uma infinidade de bagaceiras super divertidas como “Tarântula” (Tarantula, EUA, 1955), produzido pela Universal em preto e branco, com direção de Jack Arnold e roteiro de Robert M. Fresco e Martin Berkeley.
Curto com apenas 80 minutos de duração, é considerado como um dos mais expressivos filmes com aranhas gigantes, situado dentro do sub-gênero conhecido como “big bug”, ou seja, filmes que apresentam histórias com insetos de tamanhos descomunais como formigas, gafanhotos, louva-deus, vespas e escorpiões. Nesse caso, temos uma tarântula que acidentalmente cresce a uma altura de 30 metros devido ao contato com um hormônio de crescimento de uma fórmula desenvolvida pelo “cientista louco” Prof. Gerald Deemer (o inglês Leo G. Carroll), especialista em biologia nutricional que também se transformou num mutante grotesco por causa da mesma solução química injetada em si mesmo. Trabalhando num laboratório isolado no deserto do Arizona, sua intenção era criar um nutriente especial capaz de auxiliar na alimentação da população mundial, numa preocupação com seu crescimento desenfreado no futuro e os problemas com a fome.
Porém, um casal formado pelo médico local da pequena cidade de “Desert Rock”, Dr. Matt Hastings (John Agar), juntamente com a estudante de biologia Stephanie “Steve” Clayton (Mara Corday), está desconfiado do misterioso trabalho de pesquisa do cientista. Eles tentam investigar o caso e descobrem a ameaça mortal da tarântula gigante faminta por carne, que passa a aterrorizar a região atacando animais e pessoas, sendo combatida por bombas incendiárias dos caças da força aérea americana.
Curiosamente, o então ainda jovem ator Clint Eastwood, tem uma rápida e pequena participação próximo ao final do filme, com o rosto parcialmente coberto por um capacete, no papel do líder do esquadrão de aviões de guerra. Ele que obteve depois um estrondoso sucesso em sua carreira como ator e também como cineasta de grande reconhecimento.
Mesmo sendo uma produção tipicamente de baixo orçamento e pelas dificuldades técnicas existentes numa época de mais de meio século atrás, os efeitos especiais com a aranha gigante são ótimos e impressionam, apesar de obviamente as cenas de ataques do enorme aracnídeo serem escuras de forma proposital para esconder os defeitos e manter ao máximo o clima de tensão.
O diretor Jack Arnold é conhecido por suas incursões no cinema fantástico, sendo o responsável por pérolas como “Veio do Espaço” (53), “O Monstro da Lagoa Negra” (54) e “O Incrível Homem Que Encolheu” (57). A bela atriz Mara Corday esteve também em outro filme de inseto gigante, “O Escorpião Negro” (The Black Scorpion, 1957). O ator John Agar (1921 / 2002) é lembrado por suas participações em inúmeros filmes “B” de horror e ficção científica como “Revenge of the Creature” (1955), “The Mole People” (1956), “The Brain From Planet Arous” (1957), “Attack of the Puppet People” (1958), “Invisible Invaders” (1959), “Journey to the Seventh Planet” (1962), “O Monstro de Vênus” (1966) e  “Women of the Prehistoric Planet” (1967).
“Tarântula” foi lançado em DVD no Brasil pela “Continental”, trazendo como material extra breves biografias de Clint Eastwood e Jack Arnold, além de um trailer original.
(Juvenatrix - 25/06/2011)

sábado, 14 de maio de 2016

Martyrs (França / Canadá, 2008)



Escrito originalmente em 23/04/2009.

“Alta Tensão” (Haute Tension / High Tension, 2003), “Eles” (Ils / Them, 2006), “A Invasora” (À L´intérieur / Inside, 2007), “Fronteira (A)” (Frontiere (s) / Frontier (s), 2007), e agora “Martyrs” (2008). O cinema de horror francês é atualmente um dos mais violentos e perturbadores, com filmes tensos, carregados de “gore” em roteiros que prendem a atenção e principalmente que ficam na memória do espectador. E também, com algumas exceções, constatamos que o tão badalado e popular cinema americano de horror não tem conseguido nos dias de hoje deixar de ser comum, trivial, repleto de clichês e excessivamente comercial, em detrimento de histórias originais e imagens ousadas de violência gráfica.
É difícil apresentar a sinopse de “Martyrs” sem esbarrar em armadilhas reveladoras de “spoilers”, portanto a história será resumida em poucas palavras básicas apenas para registro: Lucie (Mylène Jampanoi) é uma jovem em busca de vingança contra as pessoas que a aprisionaram e torturaram quando criança e de quem conseguiu fugir de forma desesperada, abandonando o cativeiro. Em sua jornada por justiça pessoal, conta com a ajuda da amiga Anna (Morjana Alaoui), que a apoiou durante anos nos momentos de depressão e com seu problema de auto mutilação. Porém, tanto Lucie (atormentada num mundo de insanidade), quanto principalmente Anna, não imaginariam a horrenda experiência com propósitos obscuros em que seriam vítimas.
Dirigido e escrito por Pascal Laugier, o cineasta escolhido para comandar a refilmagem de “Hellraiser” (com previsão de lançamento em 2011), o filme é ultra violento (a cena de vingança com o tiroteio é memorável), sangrento ao extremo (o líquido vermelho banha a tela em demasia), e explora um tema original (depois de ver o filme o espectador refletirá sobre o real significado de “mártir”), através de elementos interessantes que nos remetem a outros filmes como o americano “O Albergue” (Hostel), de Eli Roth, na idéia de uma sociedade secreta com objetivos sinistros, e as películas orientais com fantasmas atormentados, nas cenas de alucinação de uma das personagens. E ainda temos um desfecho adequado, tão perturbador quanto toda a bizarra história que é apresentada. É interessante também notar como os cineastas franceses procuram colocar mulheres como protagonistas (reparem nos filmes citados no início desse texto), fazendo-as sofrer na carne dores e torturas inimagináveis, transformando-as em mártires literalmente. Altamente recomendável, “Martyrs” é cinema de horror puro, que merece e deve ser respeitado e reverenciado.

Obs.: Em 05/05/16 estreou nos cinemas brasileiros uma refimagem americana produzida em 2015, com direção dos irmãos Kevin e Michael Goetz, e que recebeu por aqui o mesmo título original. De uma forma geral é inferior ao filme francês, mas ainda assim passa a sua mensagem com boas cenas de violência e um final também perturbador.
(Juvenatrix - 23/04/2009 - 14/05/2016)

quarta-feira, 11 de maio de 2016

O quadrinho brasileiro de fc&f em 2004

Ficção científica não é uma tradição na arte dos quadrinhos brasileiros, e isso é um fato. Poucos são os autores que destacaram-se na hq nacional com histórias ou personagens claramente vinculados a fc. Mas isso não significa que não exista uma tradição razoavelmente forte em outros gêneros fantásticos, principalmente o horror e a fantasia, dentro dos quais podemos identificar um bom número de trabalhos antigos e recentes.
Entretanto, em 2004 nenhum desses gêneros foi muito prestigiado pelos autores brasileiros e reunir os títulos que formam a lista de lançamentos no ano foi uma tarefa árdua, sendo necessária alguma permissividade quanto ao alcance dos gêneros. E mesmo assim, foi um ano muito fraco.
O conteúdo dos trabalhos publicados não superou o óbvio e não aconteceu o lançamento de nenhum bom trabalho inédito. As revistas publicaram histórias de personagens já vistos, sendo algumas apenas compilações do que já havia sido publicado em outros tempos. Entre os fanzines houve estreias de personagens, mas sem inovação quanto a forma e conteúdo que continuaram a imitar o que é visto nos quadrinhos estrangeiros, especialmente americano e japonês.
Entre os velhos personagens que retornaram em edições novas tivemos As aventuras do Leão Negro, da dupla Ofeliano e Cynthia, fantasia publicada nos anos 1980 em tiras no jornal carioca O Globo e em álbum pela Meribérica Brasil, e nos anos 1990 na revista Saga (Escala). Retornou numa coleção com edição por demanda comercializada pela internet, republicando as tiras saídas no jornal citado há pouco.
Quebra-queixo, personagem de ficção científica criado por Marcelo Campos para a revista Pau Brasil (Vidente) em 1991, e com uma edição especial publicada pela editora Brainstore em 1999, ganhou em 2004 o álbum Quebra-queixo: Technorama, Volume 1, pela editora Devir, com histórias elaboradas por diversos autores convidados.
Dungeon crawlers, de Marcelo Cassaro e diversos ilustradores, publicado pela Editora Mythos, conta a história de Aurora, uma humana versada nas artes mágicas que quer chegar a Lenórienn, a cidade perdida dos elfos, um local de grande conhecimento mágico que foi tomado por hordas de hobgoblins que de lá expulsaram seus ocupantes originais. Aurora pretende resgatar livros que lhe ensinem conhecimentos secretos. Para isso é acompanhada da humana Brigandine e do elfo Fren, que se uniu a elas no caminho.
Em tese, Dungeon crawlers é uma série nova, mas parece vinculada de muitas maneiras aos trabalhos anteriores do autor, especialmente a série Holy avenger, publicada inicialmente pela editora Trama e depois pela Talismã. Ambas são histórias de fantasia que usam boa parte do imaginário do romance O senhor dos anéis, porém com o desenho imitando o estilo dos quadrinhos japoneses, também muito populares no Brasil nesse ano.
Apesar de realizado com competência técnica, não há nada de muito original a ser destacado.
Mais ou menos no mesmo estilo vimos Ethora, de Beth Kodama, Karina Erica Horita e Elton Azuma, publicada pela Talismã. Os personagens apareceram anteriormente com histórias curtas na revista periódica Tsunami e esta edição apresenta-se como um especial. Raposa é um meio elfo fora da lei, que está viajando com a jovem ladra Satine. Ela roubou um livro de magias que é cobiçado por outros magos. Eles são atacados na estrada por dois desses magos e o livro é retirado deles. Uma história um tanto inconclusiva para uma edição especial. Há uma ligeira personalidade dark fantasy na narrativa, mas o fundo heroico unido aos desenhos em estilo japonês tornam muito difícil a percepção de uma identidade realmente original, o que talvez tenha sido proposital.
Ainda imitando o estilo gráfico japonês, foi distribuído nas bancas brasileiras o almanaque Banzai, publicado pela editora Escala. Uma única edição com várias histórias inéditas de artistas experientes, tais como Mozart Couto, Watson Portela e Paulo Yokota. O material publicado tem alguma qualidade mas a precária produção editorial da publicação deu pouca visibilidade a mesma, que mal foi vista inclusive pelos fãs dos mangás.
Brado retumbante, produzida e publicada independentemente por uma cooperativa de autores emergidos dos fanzines, apresenta várias séries de autores diversos. As histórias seguem o modelo dos super heróis americanos, tanto no estilo narrativo quanto na plástica. Não há muito o que se destacar nas histórias, mas alguns dos ilustradores surpreendem.
No final de 2004, apareceu nas bancas a revista Kaos!, publicada pela Manticora, editora especializada em jogos de representação (RPG) em sua primeira incursão nos quadrinhos. A revista apresenta cinco histórias curtas de vários autores, entremeadas por entrevistas com artistas dos quadrinhos. Entre os autores das hqs publicadas aparecem os nomes de Sam Hart e Roger Cruz, quadrinhistas brasileiros com carreiras bem sucedidas nos exterior. Nem todas as histórias são de fc&f, mas isso não lhe tira os méritos.
Entre os fanzines observa-se o mesmo predomínio de fantasias em estilo mangá e de super-heróis, mas duas publicações destacam-se entre eles, porém sem serem novidades.
Uma delas é O martelo, editado por Erick Lustosa em Recife. O fanzine é dedicado aos quadrinhos de horror brasileiro clássico, lançou três edições em 2004 republicando histórias anteriores a 1980, de autores como Rubens Lucchetti, Nico Rosso, Toninho Lima, José Menezes, Renato Silva e Francisco Armond, com comentários relevantes do editor. Ainda que não tenha trazido nada de novo aos leitores, isso não impediu que O martelo fosse uma das mais expressivas publicações de quadrinhos fantásticos brasileiros em 2004, por conta de seu caráter documental.
O outro fanzine que se destacou em 2004 foi Aventura, editado em Valença por Luiz Eduardo "Luga" de Castro, com mais uma história da saga do Lôbo, personagem de fc que tem muitos fãs entre os leitores que acompanham os fanzines brasileiros. Lôbo é um oficial militar cheio de bons princípios que tenta sobreviver sem perder a dignidade em um Brasil destruído pela guerra num futuro próximo. O personagem foi criado na década de 1980 e teve a maior parte de suas edições então, mas autor esteve ausente do cenários dos fanzines por longo tempo, só voltando em 2001, com edições espaçadas e sem periodicidade fixa. Por isso, é sempre bom registrar a sua publicação, ainda que desta vez a história tenha sido bem curtinha.
2004, portanto, foi um ano no qual a hq brasileira de fc&f andou pouco e para o lado. Talvez tenha sido inibida pela publicação massiva de quadrinhos estrangeiros, entre eles muitos títulos de qualidade indiscutível vindos do Japão. Há uma gangorra histórica entre os quadrinhos nacionais e estrangeiros em ação no país: quando um está em alta, o outro está em baixa. Este ano foi a vez dos quadrinhos brasileiros ficarem na posição inferior, infelizmente.
Cesar Silva

Lançamentos de quadrinhos de fc&f de autores brasileiros publicados no Brasil em 2004
Álbuns e revistas:
Fantasia
- Dungeon crawlers, Marcelo Cassaro/Daniel HDR/Ricardo Riamonte, Mythos
- As aventuras do Leão Negro, Ofeliano de Almeida/Cynthia, Vitor Moura, ed.
- Ethora, Beth Kodama/Karina Erica Horita/Elton Azuma, Talismã
- Brado retumbante (antologia), Leonado Santana, org., dos autores
- Kaos! (antologia), Gisele Roth Saiz, Fabio Akio Fugikawa, eds., Manticora
- Banzai (antologia), Franco de Rosa, ed., Escala
Ficção científica
Quebra-Queixo: Technorama, Volume 1, Marcelo Campos, Devir
Fanzines:
Fantasia
- Máscara de Prata, Cleber Cachoeiras, ed.
- Power of the dreams, Marco/Cris/ Vanessa, eds.
- Demônios lendários, Júlio Cesar da Silva Costa, ed.
- Tormenta, Eduardo Manzano, ed.
- Projeto Continuum, Rafael de Melo Tavares, Daniel Siqueira e Adriano Sapão, eds.
Ficção científica
- Aventura, Luiz eduardo de Castro, ed.
- Freedom, Fabrício Santos e Gleison Santos, eds.
- A maldição, Reciney Rodrigues, ed.
Horror
- O martelo, Erick Lustosa, ed.
- Trindade, Pablo Augusto da Silva, ed.
- Canibais, Michael Kiss, ed.
- Assombração, Michael Kiss, ed.
- Demônios, Eudes S. Lopes, ed.

Obs: Este artigo relata o que se pode encontrar nas bancas de São Paulo em 2004, mas muitas das publicações citadas trazem datas anteriores. Isso acontece porque a publicação de quadrinhos no Brasil não é cuidadosa com as datas que faz estampar – quando o faz –, por isso muitas revistas apresentam disparidades. E a distribuição setorizada pode fazer uma publicação demorar a chegar as bancas em certas regiões, dificultando os registros mesmo entre testemunhas oculares.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

O Fim da Infância

O Fim da Infância (Childhood's End), de Arthur C. Clarke. Tradução de Carlos Angelo. Capa de Thiago Ventura e Luiza Franco. 319 páginas. Editora Aleph, São Paulo, 2010.

Arthur C. Clarke escreveu O Fim da infância entre fevereiro e dezembro de 1952, quando tinha 35 anos. Publicado um ano depois, mostrou ser a sua obra-prima, dentre outras de quilate semelhante que viriam posteriormente, como A Cidade e as Estrelas (The City and the Stars; 1956) e Encontro com Rama (Rendezvous with Rama; 1973).
O Fim da Infância é uma das obras mais pungentes e influentes da ficção científica da segunda metade do século xx por tratar de um tema comum no gênero, a partir de uma perspectiva incomum – ao menos para a época: uma invasão de extraterrestres aparentemente benignos que ocultam da humanidade os reais propósitos da sua missão. Pode-se dizer que o romance estabeleceu um marco de qualidade superior para o tema, que tinha como principal referência o bélico e politicamente crítico A Guerra dos Mundos (The war of the worlds), do também britânico H.G. Wells, publicado em 1898. Tornou possível que as interações entre espécies e civilizações diferentes pudessem alcançar novos parâmetros de criação e interpretação, fugindo do maniqueísmo do bem contra o mal – ou do alienígena vilanizado –, então vigente, e inaugurou uma temática que seria recorrente na carreira de Clarke: a da vida humana justificada por sua evolução final para uma transcendência cósmica.
É este o livro que a Editora Aleph oferece ao leitor brasileiro, numa edição primorosa em todos os sentidos: solução instigante e perturbadora na ilustração de capa; boa tradução de Carlos Angelo; um prefácio do autor escrito em 2000; a apresentação de um primeiro capítulo alternativo escrito depois da Guerra Fria, mas depois sabiamente rejeitado pelo autor; e a publicação inédita do conto “Anjo da guarda” (1950), que inspirou a criação posterior da primeira parte do romance.
O Fim da Infância segue o projeto da Aleph de relançar livros notáveis da fc há algumas décadas fora de catálogo. Títulos anteriores incluem A Trilogia da Fundação (Foundation Trilogy), de Isaac Asimov, e A Mão Esquerda da Escuridão (The Left Hand of Darkness), de Ursula K. Le Guin. Este livro de Clarke apareceu primeiro em Portugal, ainda nos anos 1950, na lendária Coleção Argonauta, em seu número 26, com o título de A Era de Ouro. No Brasil, foi primeiramente lançado em 1979 pela editora Nova Fronteira, com o mesmo título de agora. Trinta anos depois, justifica-se um relançamento pela importância da obra e por colocar novamente nas livrarias um autor importante e com histórico de boas vendas no país.
Estamos nos anos 1970, em plena Guerra Fria e com americanos e soviéticos prestes a lançarem seus foguetes para a Lua. Sem aviso algum, gigantescas naves alienígenas surgem nos céus das principais cidades da Terra anunciando uma nova era. Os homens não mais iriam ao espaço; ao contrário, aqueles a quem buscávamos – uma civilização inteligente – vieram até nós. Para o leitor mais jovem ou ligado ao cinema, a vinculação imagética é quase imediata à de filmes como Independence Day (1996) e o mais recente Distrito 9 (2009). Mas a possível semelhança se encerra na imagem das naves pairando nos céus das metrópoles.
Os Senhores Supremos impõem um despotismo esclarecido à humanidade: obrigam todos a cessarem suas guerras e disputas nacionalistas. Em poucos anos é estabelecido um governo mundial que se reporta aos alienígenas. Toda a administração econômica e social é supervisionada por eles, que trazem um grau inédito de qualidade de vida e paz a todos os homens e seres vivos do planeta. Uma verdadeira utopia torna-se realidade, mas os novos governantes proíbem os terrestres de deixarem o planeta e agirem em qualquer ramo de conhecimento – ciência, religião e artes – sem que tenha a sua aprovação.
Os alienígenas não explicitam as razões de sua visita e do seu domínio incontestável que eliminou também a chance real de autodestruição com um holocausto nuclear. Escrito nos anos 1950, o livro ecoava os temas sensíveis da política internacional de então: a corrida armamentista entre americanos e soviéticos, e o consequente perigo iminente de um conflito catastrófico.
O livro discute em profundidade a questão da escolha moral entre uma situação permanente de segurança e prosperidade versus a de livre arbítrio, quando nossas escolhas encaminham o nosso destino. Se a utopia traz um bem estar jamais conhecido, também esmorece as inquietações humanas, tornando as sociedades e culturas mais indolentes e homogêneas: a busca do conhecimento e da criação artística perde ímpeto e sentido em meio à riqueza material e a resignação com a perda da liberdade.


Mas qual é mesmo o objetivo final dos Senhores Supremos? A resposta vem de forma chocante. Passados 50 anos, os Senhores Supremos mostram-se fisicamente pela primeira vez. E a imagem apavora, pois remete ao que existe de mais sinistro no imaginário religioso ocidental. Seriam eles o cumprimento às avessas de uma profecia? Uma possível interpretação místico-religiosa para o livro é inevitável, mas não é a única, embora possivelmente a mais perturbadora.
Senão vejamos. A analogia entre os Senhores Supremos e o que eles oferecem – ou melhor, impõem – à humanidade é clara: em troca da paz e prosperidade, levaremos por fim as suas “almas”, representadas neste caso pelas figuras puras e imaculadas das crianças. Só que aqui talvez o fato seja ainda mais sombrio, pois não foi – e nem poderia ser – dado a conhecer ao homem o verdadeiro propósito das intenções dos conquistadores extraterrestres.
Quando li este livro pela primeira vez, aos 17 anos, tive um grande impacto existencial: nem a busca pela felicidade, a luta pela liberdade ou por ideais, a crença em Deus ou a esperança num porvir fazia sentido nesta vida. A humanidade encontraria seu sentido na interação com forças desconhecidas do Cosmos. Mais propriamente, no romance, estava condenada, com uma última geração de crianças a sofrer súbitas mutações que as transformaram em seres com um propósito além do compreensível. Nesse esquema, mesmo os Senhores Supremos são apenas os guardiões de um processo controlado por uma espécie ainda superior a ela, que manifesta seu poder através da indução de mutações em outras espécies, que desenvolveriam incríveis poderes mentais rumo a uma união coletiva entre diferentes civilizações do Universo.
Relendo este livro agora, mais de trinta anos depois, fico com uma sensação de renovado estranhamento sobre as implicações existenciais, ainda que relativizada por outras experiências e formas de conhecimento. Clarke defende que o Universo não é para o homem, pois é um ambiente incognoscível à nossa capacidade de compreensão, e em relação com forças que muito nos superam. Tal argumento é estranho vindo dele, que se notabilizou em incentivar a exploração do espaço e os avanços da tecnologia, e ele mesmo sublinha esta aparente contradição no prefácio do livro. Talvez para se eximir, na edição original da obra, era antecedida pela frase: “As opiniões expressas neste livro não são as do autor.” Como observa David Pringle, em Science Fiction: The 100 Best Novels (1985), é possível que Clarke tenha feito um paralelo dos Senhores Supremos com o papel dos britânicos como colonizadores civilizadores da Índia e outros países do Sul da Ásia – que, no caso, seriam os terrestres no romance –, até cumprirem sua “missão” e os libertarem no final dos anos 1940, na mesma época em que Clarke escrevia O Fim da Infância.
Em todo caso, a linha de interpretação místico-religiosa, apesar de toda a moldura realista que Clarke procura construir no mundo criado pelos Senhores Supremos, dá também a medida de sua linha de pensamento e abordagem que viria a seguir, em obras como 2001: Uma Odisséia no Espaço (2001: A Space Odissey, 1968) – livro e filme –, que, inclusive, é mais sutil a respeito dos impactos do relacionamento da humanidade com os mistérios do Universo. Nesse sentido, O Fim da Infância é mais contundente e explícito, mas não menos inquietante.
Se o título do romance nos remete ao encontro da humanidade com o fim de seus sonhos e ilusões, a obra mostra maturidade precoce do autor em abordar um tema polêmico e fascinante, ajudando a iluminar – possivelmente influenciado por sua convivência com as culturas hindu e budista –, eventuais explicações para a condição humana e sua relação com o Universo, que estará sempre a surpreender. Seja pelo encantamento, seja pelos mistérios que nos intriga.


Marcello Simão Branco