sexta-feira, 30 de agosto de 2019

De A a Z: Dicas para escritores

De A a Z: Dicas para escritores, Fábio Fernandes. São Paulo: edição de autor, 2017.

Fábio Fernandes é um nome conhecido entre os leitores de ficção fantástica no Brasil. Tradutor e escritor, diga se de passagem um dos melhores do gênero no país, com textos publicados tanto no Brasil como no estrangeiro, Fernandes estudou com Neil Gaiman e Samuel Delany na Clarion West Writers Workshop de Seattle, é professor da PUC de São Paulo e desenvolve um importante trabalho de pesquisa sobre as mídias sociais.
De A a Z: Dicas para escritores é um breve compêndio alfabético no qual Fernandes reuniu um pequeno mas valioso lote de conselhos úteis para escritores, inclusive os experientes, uma vez que ninguém está livre de adquirir cacoetes indesejáveis.
Algumas letras têm mais de um verbete, que pode ser tão inspirador quanto "Bunda", "Gaveta", "Síndrome da folha em branco" ou "Zona de conforto", tornando a leitura uma experiência divertida, apesar de rápida: dá para ler tudo em pouco mais de meia hora.
A edição em ebook foi uma opção do autor, entusiasta do formato desde a sua criação, no final do século. Tanto que seu primeiro livro, a coletânea Interface com o vampiro, publicada em 2000, foi um dos primeiros ebooks profissionais no país, editado pela extinta editora Writers. Contudo, não se encontra mais disponível.
Em 2018, o livro recebeu edição real pela Editora Monomito com o singelo título De A a Z: Coisas que você deveria saber antes de publicar um livro, como parte da coleção Enciclopédia Monomito para Escritores.
Cesar Silva

Anacrônicos, Luiz Bras

Anacrônicos, Luiz Bras. São Paulo: edição de autor, 2017

Um dia, sem maiores explicações, a sua mãe morta há anos ressurge na cozinha, repetindo continuamente uma ação do seu passado. Ela não interage com você; apenas revive a cena, como se fosse um filme antigo em realidade expandida. Ela pode ser tocada, mas aparentemente não sente o seu toque. A textura é estranha, borrachuda. Não pode ser ferida e não muda uma vírgula no roteiro. No começo, é emocionante mas, com o passar do tempo, torna-se dolorosamente insuportável. Outras pessoas começam a experimentar situações similares, com seus antepassados retornando da morte para interpretar repetidamente antigos papéis. Tudo se complica quando outros momentos dessa pantomima macabra começam a se sobrepor, com diversas cópias dos duplos ressurretos entrecruzando-se no espaço. E fica ainda pior quando mais personagens materializam-se do passado, numa cacofonia enlouquecedora. E quando ressurgirem personagens famosos, como Hitler e Jesus Cristo, onde o mundo irá parar?
Esta é a história que o escritor Luiz Bras oferece aos leitores no ebook Anacrônicos, um conto de ficção fantástica de 30 páginas, ao estilo New Weird, em que o autor retoma o tema da solidão, explorado em profundidade no romance Sozinho no deserto extremo (Prumo, 2012). Mas aqui a situação se inverte: ao invés do isolamento físico, a solidão emerge da multidão de pessoas alheias que impedem a interação social e emocional dos indivíduos. Também a questão dos personagens famosos ressuscitados dialoga com outras obras da ficção especulativa, como a série Riverworld, de Philip Jose Farmer, uma influência de peso que revela a possibilidade de uma exploração mais profunda no tema, que não foi o objetivo de Bras nesta obra.
Luis Bras é escritor de ficção fantástica, nascido na cidade imaginária de Cobra Norato, mas na verdade é uma persona do premiado escritor Nelson de Oliveira, que experimenta aqui os préstimos da edição digital através da plataforma de autopublicação da Amazon. A produção editorial é gráfica é do próprio autor, que também fez sua revisão e encomendou a Teo Adorno, a persona ilustradora de Oliveira, o ótimo desenho da capa. A produção interna também é minimalista, com pequenos toques coloridos nas aberturas dos capítulos. Tudo muito limpo e elegante.
A edição ainda está disponível no saite da livraria Amazon, aqui.
Cesar Silva

sábado, 24 de agosto de 2019

Flash Forward


Flash Forward (idem), Robert J. Sawyer. Tradução de Ana Carolina Mesquita. Capa de Igor Campos. Rio de Janeiro: Galera Record, 2014. 382 páginas. Lançamento original de 1999.


Em julho de 2012 físicos do CERN (Centro Europeu de Pesquisa Nuclear), em Genebra, na Suíça, realizaram um experimento de aceleração de partículas com o objetivo de encontrar o Bóson de Higgs. Este componente supremamente ínfimo da natureza seria a peça fundamental que formaria as partículas subatômicas e, por extensão, toda a matéria do universo. O evento foi cercado por alguma polêmica, pois alguns grupos de esotéricos e religiosos temeram que o acelerador de partículas pudesse alterar a tessitura da realidade, talvez criando um miniburaco negro que pudesse engolir a própria Terra.
Em termos de ficção científica a concretização deste temor foi abordada de forma brilhante por David Brin em seu romance Terra (Earth), publicado em Portugal pela coleção Europa-América, nos. 182 e 183 (1991). Mas em Flash Forward, ocorre um outro fenômeno tão ou mais surpreendente e improvável: No ano de 2009, quando a experiência para a descoberta do Bóson de Higgs é realizada toda a humanidade perde os sentidos. Fica neste estado por dois minutos e dezessete segundos. E durante este período cada pessoa se vê 21 anos à frente, no qual cada um sente o fenômeno por meio de sua consciência no futuro, ou seja, em 2030.
Aqueles que estavam em movimento no momento do evento sofrem acidentes ou morrem: em escadas, carros, aviões etc. Milhares perdem a vida em todo o mundo. Mas afora esta tragédia imediata o evento altera de várias maneiras as vidas das pessoas em toda a parte. Pense: como você reagiria se pudesse saber como seria o seu futuro daqui a 21 anos? Para muitas pessoas o futuro é interessante: está com saúde, casou e tem filhos, progrediu na carreira, realizou algum sonho antigo. Mas para muitos outros os objetivos se mostraram um fracasso: sofre de doença grave, relacionamentos sem futuro, carreiras malsucedidas, e o pior: escuridão. Várias pessoas não viram nada, numa indicação de que, então, não terão futuro porque não estarão vivas.
Tal é o caso de um dos cientistas que participam da experiência, o grego Theo Procopides. Com apenas 28 anos, teria 49 duas décadas depois. Mas nada viu. Como vaticina de maneira lúgubre seu chefe, Lloyd Simcoe, é porque ele estará morto em 2030. Mas Simcoe também vê seus planos mais imediatos serem abalados: prestes a casar com Michico Tamura, sua assistente, constatou que sua visão o mostra numa cama com outra mulher, que ele ainda nem chegou a conhecer. E para piorar Tamiko, a filha pequena do primeiro casamento de Michico, morre atropelada por causa do flashforward. Você planejaria um futuro com alguém que não vai estar com você?
Mas as consequências também assumem contornos coletivos, em termos econômicos e tecnológicos. Como o evento ocorreu às 17 horas em Genebra, vislumbrou situações de possíveis vantagens econômicas (de saber como tal produto ou segmento estará) ou tecnológicas (com possíveis invenções). Isso porque boa parte das visões relatadas pelos habitantes da Ásia relatou situações desconexas e sem sentido. Claro, estavam dormindo, e viram seus sonhos. Por outro lado, morreram menos do que os ocidentais, acordados em sua maioria na hora do fenômeno.
No início não estava claro que o flashforward havia sido provocado pela experiência de alta energia, mas evidências indiretas foram sendo compostas até ficar claro de que se tratava de algum fenômeno estranho, que levou ao desmaio de sete bilhões de pessoas. Um dos efeitos secundários inquietantes é que nenhum aparelho de gravação registrou as pessoas desmaiadas ou os acidentes. Não filmou nada, só estática. Uma explicação oferecida pelos cientistas – mas que não me convenceu totalmente – é que com a ausência de qualquer consciência humana durante o flashforward, é como se a realidade tivesse ficado suspensa. Uma evidência do efeito observador na teoria quântica.
Depois de evitar realizar novamente o experimento e de ficar claro de que deviam alguma explicação pública para o ocorrido, Simcoe anuncia a provável conexão e, embora ele e o CERN não sejam imediatamente culpabilizados, é claro que há uma percepção geral de que alguma responsabilidade eles têm pelo que aconteceu.
Sawyer poderia ter desenvolvido a história numa espécie de mosaico, que pudesse mostrar o ponto de vista de vários personagens, em diferentes partes do mundo. Talvez reunindo seus destinos ou não, para mostrar as muitas nuances possíveis de como o fenômeno afetou as mais diversas vidas. Talvez com isso o romance ganhasse no desenvolvimento de dramas particulares, e o romance provavelmente seria maior. Contudo, ele optou por apresentar os dramas das pessoas diretamente envolvidas com a deflagração do evento: os físicos do CERN. De como afetou suas vidas pessoais e profissionais.
Neste aspecto, obviamente, o futuro mais inquietante é o de Procopides. Será mesmo que a escuridão representa a morte? Se sim, poderia haver alguma maneira de evitá-la, já que há um conhecimento prévio de sua ocorrência? Ele divulga publicamente seu problema na internet e encontra pessoas que teriam compartilhado a visão do momento de sua morte, como a de um menino de sete anos que daqui a 21 anos será o policial que investigará o seu assassinato. Mas o drama de Procopides não para aí. Seu irmão mais novo, um escritor talentoso comete suicídio ao descobrir que não teria o futuro de sucesso que imaginava.
Mas será que o futuro seria mesmo imutável? No fundo o livro faz uma ampla discussão sobre se existe livre-arbítrio ou tudo já está determinado. Talvez alguma contribuição religiosa ou mística também pudesse ser incluída, na voz de alguns personagens, mas a discussão fica restrita mesmo às teorias da física. Mesmo assim não deixa de ser altamente instigante acompanhar os diferentes argumentos a defender um ou outro ponto de vista. Acredito que o futuro é aberto, e cada um traça o seu destino, a cada segundo de vida. Mas quase fui quase levado a crer que a visão determinista prevalece, como defendida por Simcoe. Ele se baseou nas teorias de Minkowski, de que a estrutura da realidade seria uma espécie de bloco que conteria passado, presente e futuro. E ao transitarmos pelos diferentes trechos deste espaço poderíamos constatar o que já passou e o que irá ocorrer. Embora seja sugestiva, a observação de Michico ajuda a entender por que Simcoe, no seu íntimo, a defende: seria um álibi para todas as mortes ocorridas. Ele não teria tido responsabilidade porque já estava tudo traçado no continuum inscrito no bloco de Minkowski. Sobretudo pela morte da sua enteada, a razão maior da crise de relacionamento entre os dois, até mais do que a visão dele com outra mulher. Mas aos poucos alguns fatos vão mostrando que o futuro pode ser mudado. Principalmente quando pessoas dão cabo da própria vida, como o irmão de Procopides.
Então era preciso tirar tudo isso a limpo. Não principalmente para eles, mas a maioria das pessoas que ansiavam por uma nova visão que confirmasse ou não seu porvir. Com autorização da ONU a experiência é repetida, mas às 5 horas da manhã, em Genebra, ou seja, invertendo o horário da primeira vez e dando a chance ao Oriente de, eventualmente, vislumbrar mais seus futuros e eventuais ganhos em termos econômicos e tecnológicos. É claro que tudo desta vez é preparado para que as pessoas não sejam pegas de surpresa e se acidentem.
Mas será que haverá um novo vislumbre do futuro? E, afinal de contas, o que o teria provocado? Num laboratório de pesquisas físicas no Canadá, surge a hipótese de que o flashforward teria ocorrido por um súbito aumento da ocorrência de neutrinos na Terra no momento da experiência. Os neutrinos são partículas quase sem massa que vagam pelo universo sem nenhuma resistência. No sistema solar são produzidos principalmente pelas explosões nucleares no interior do Sol, e trilhões deles preenchem o nosso planeta – e nossos corpos – em frações de segundo, mas sem interação alguma com outros átomos e moléculas. Neste caso, contudo, o aumento repentino não teria sido provocado pelo Sol, mas pelo acréscimo de neutrinos ainda em vigência pela explosão da supernova 1987A, a maior de uma estrela observada pela humanidade em 383 anos, ocorrida em 1987 na estrela supergigante azul Sanduleak, na Grande Nuvem de Magalhães, a 170 mil anos-luz da Terra.
De certa forma, a não imutabilidade do destino e a descoberta da provável causa do flashforward, causa alívio nas pessoas, fazendo-as perder o receio de repetir a experiência, justamente na data: 21 de outubro de 2030. Mas como seria possível reproduzir o fenômeno, totalmente fortuito na interação dos neutrinos? É enviada uma sonda em direção aos restos da supernova, com um sistema de alerta para determinar o próximo pico de atividade dos neutrinos. Com isso haveria a chance de repetir um novo flashforward. Contudo, se o futuro não é imutável, parte das visões vislumbradas em 2009 se tornaram realidade. Inclusive para Simcoe, Michico e Procopides.
Flash Forward acrescenta mais um aspecto interessante ao tema da viagem no tempo, um dos mais clássicos da ficção científica. Se os viajantes não comparecem de corpo presente à outra época, eles têm visões do que pode vir a ocorrer com eles. Nesse sentido lembra um pouco o porviroscópio, uma máquina de visualizar o futuro, imaginada por Monteiro Lobato em seu romance O Presidente Negro (1926). Mas o que dá um ganho substancial à obra é o tratamento realista da premissa: O que aconteceria ao mundo se um fenômeno desses acontecesse? Além disso, uma narrativa vigorosa, que soma ao tema fascinante, personagens críveis e humanos que faz com que o interesse pela leitura só cresça a cada página.
O romance foi uma das sensações da ficção científica no final do século XX, embora não tenha vencido o Prêmio Nebula como afirma a Record na capa do livro, mas sim o Aurora, prêmio canadense de FC, em 2000. Foi adaptado numa cultuada série de TV entre 2009 e 2010, que durou apenas uma temporada. Mas o que este livro sobretudo demonstra é como o vigor das boas ideias bem desenvolvidas sustenta uma narrativa criativa e inteligente de ficção científica.

– Marcello Simão Branco

sábado, 3 de agosto de 2019

O Manuscrito de Saragoça


O Manuscrito de Saragoça (Manuscrit trouvé a Saragose), Jan Potocki. Tradução de José Sanz. Capa de Benson Chin sobre arte de Gustave Doré. Orelha de Gumercindo Rocha Dorea. 165 páginas. São Paulo: Edições GRD/Devir Brasil, 2016. Original publicado entre 1804 e 1847.


Este é um dos livros mais estranhos que já vi. Talvez a história da obra seja tão misteriosa e fantástica quanto à do próprio livro. Tive o primeiro contato em junho de 1990 quando comprei a primeira edição publicada no Brasil, na coleção Literatura Fantástica, das Edições GRD, em 1965. Mas só em 2016 adquiri a edição ao qual esta resenha se baseia. Na verdade, tem o mesmo conteúdo e tradução, apenas com uma nova capa e tamanho. Estas duas edições da GRD foram entremeadas por uma de mesmo título publicada pela editora Brasiliense, em 1988.
O leitor pode perguntar por que passo estas informações, mas é que, de certa forma, elas estão de acordo com as peculiaridades do livro em questão. Isso porque O Manuscrito de Saragoça surgiu inicialmente em 1804, mas de forma incompleta. Em parte tal perda se deve ao suicídio do autor em 1815. Os originais franceses perderam-se, depois foram reivindicados por outros autores, novas partes surgiram, com contestações sobre a real autoria dos textos, até que em 1847 teria chegado ao conteúdo completo, numa versão traduzida para o polonês e publicada em Leipzig, na Alemanha, chegando às 66 narrativas que compõe a saga.
Mas as edições brasileiras têm apenas 14 destas narrativas, que foi a versão que se consolidou inicialmente após a morte do autor. Ora, estamos diante, então, de um livro muito incompleto. Confesso que me senti um pouco enganado e frustrado. Será que leria o livro se soubesse disso? Talvez não, mas se não o tivesse feito estaria perdendo uma das histórias mais fantásticas e saborosas que já me deparei.
Em meio às guerras de conquista de Napoleão, no início do século XIX, um oficial do Exército francês acha numa casa abandonada na cidade de Saragoça, na Espanha, um manuscrito com as páginas espalhadas pelo chão. Começa a ler e fica totalmente absorvido, mesmo estando escrito em espanhol, língua da qual ele pouco entende. Leva consigo os manuscritos, e logo depois é preso por inimigos espanhóis, e sob o julgo de um capitão, que descobriu que os manuscritos contavam a histórias de um de seus ancestrais. A pedido do prisioneiro o militar traduz a obra para o francês. E é a história deste manuscrito que nós leitores também passamos a ler.
Pelas terras da Espanha acompanhamos as aventuras de Alphonse van Horden, filho de um oficial de prestígio do reinado espanhol que sai de sua localidade em terras francesas para se apresentar ao rei. Mas durante a viagem se depara com situações que desafiam sua sanidade e fé no cristianismo. Por vários momentos ele se pergunta se de fato viveu os acontecimentos ou se não passaram de sonhos ou alucinações. De certa forma o leitor também fica em dúvida, pelo menos em alguns momentos, mas como o fantástico e o sobrenatural crescem na narrativa, acabam assumindo o protagonismo dos eventos e seus significados.
Alfhonse parte de uma estalagem em Venta Quemada com dois ajudantes. Apavorados por relatos de fantasmas e assassinatos na região desaparecem misteriosamente. Sozinho, Alphonse toma conhecimento do enforcamento de dois irmãos que roubavam e matavam nos arredores, fica em dúvida se prossegue, mas, em nome da honra de seu cargo e sua família, segue adiante. No Vale de Los Hermanos pernoita em um castelo, onde é surpreendido pela presença de duas lindas mulheres, Emina e Ziibeddé, que se dizem suas primas. Elas oferecem comida e hospedagem, e depois quando Alphonse se preparava para dormir o seduzem. Mas ele acorda pela manhã ao lado dos dois enfocados, sem rastros das duas mulheres. Teria mesmo as encontrado ou foi tudo um sonho?
A partir desta experiência começamos a adentrar no mundo fantástico da Espanha profunda, com seus castelos, igrejas, montanhas e cavernas secretas, isso sem falar nas figuras exóticas que surgem, interagem com Alphonse, e contam suas histórias, que se constituem em si novas narrativas que formam o contexto misterioso, oculto, sempre por se revelar, em torno da vida e da fé do oficial a serviço do rei cristão.
A estrutura do romance é comparada a outros dois clássicos da literatura universal, As Mil e Uma Noites (século IX), sem autoria definida, e O Decameron (1348-1353), de Giovanni Boccaccio (1313-1375), com as histórias dentro de uma história, mas cada obra com suas particularidades. Nestas duas mais antigas, os próprios narradores é que contam as histórias, enquanto no livro de Potocki são as pessoas que o protagonista encontra pelo caminho é que relatam os eventos que estão indiretamente ligados ele. A atmosfera das aventuras contadas por suas primas, um padre ermitão, um ladrão fugitivo, um possuído pelo diabo, dois irmãos cabalistas, e por ciganos, são permeados pelo inusitado de situações e seres sobrenaturais. Assim, surgem fantasmas, demônios, vampiros, que se ora se travestem de belas mulheres ou homens que se apresentam como benfeitores para tentar confundir Alphonse. Chama a atenção também o erotismo presente em várias situações, seja entre homens e mulheres ou entre mulheres. Tudo com sugestão, mas com plena força de efeitos. Cada uma das histórias mostra a vida pregressa das pessoas que ele encontra e elas acabam por interagir com a própria trajetória dele que, de encontro em encontro percebe que não consegue avançar sempre voltando ao mesmo local de onde teve início a história.
De forma engenhosa Potocki nos insere numa teia de tramas e conspirações onde o conceito de real e irreal se confunde de forma crescente, e o recurso metalinguístico de estarmos diante de um manuscrito que é contado com histórias dentro de uma história só torna a leitura mais desconcertante. Em certos momentos parece que há uma perda da linha narrativa, mas ao final de cada relato percebemos que cada uma delas cumpre uma etapa no processo de compreensão do plano mais geral. Assim, é um livro que narra as quatorze narrativas que correspondem a quatorze dias de sua jornada, e é realmente uma pena que o livro termina ao final de uma delas sem conclusão alguma do que irá acontecer ou que tipo de destino aguarda Alphonse em sua jornada.
O Manuscrito de Saragoça é um romance gótico com forte apelo sobrenatural e religioso. A realidade apresentada é cristã e a fé de Alphonse é testada a todo o momento por meio de eventos sobrenaturais e, principalmente, por outras crenças que surgem nas jornadas, como a das primas mulçumanas, no casal de cabalistas, no padre que pede que ele confesse seus pecados ou no chefe cigano. De certa forma é como se estas outras formas de compreensão do mundo do além estivesse a cercar da fé cristã, numa espécie de conspiração mágica com o intuito de, através da eventual conversão de Alphonse a alguma delas, subjugar o cristianismo dele e do reino espanhol.
Escrito entre o fim do século XVIII e o início do XIX o livro também se situa numa espécie de transição de costumes e mentalidades entre o fim da Idade Média e o início da modernidade, e ele se expressa, justamente através da jornada do mundo antigo (interior rural, aldeias, líderes religiosos, eventos sobrenaturais) para outro pretensamente mais civilizado, de onde ele parte no início e espera concluir sua missão. Resta saber se Alphonse conseguirá manter sua fé cristã na jornada em direção a um mundo mais racional.
Nesse sentido vejam o que escreveu o editor Gumercindo Rocha Dorea (das Edições GRD) na dedicatória do meu volume da edição de 1965: “Marcello cuidado com este volume! O mundo que aí se encontra está tentando (se é que já não conseguiu) dominar o mundo.” É o velho temor do desafio à fé cristã e seus valores, num processo que se anunciava como de desencantamento do mundo, para usar a expressão com que Max Weber (1864-1920), interpretou a passagem do mundo sacro (tradicional) ao laico (moderno). Potocki tinha em mente sua época, mas esta ideia continua, em alguma medida, presente nos cristãos do mundo, desafiados, justamente pela modernidade que se instaurou e outras crenças que permanecem influentes como forma de interpretar e influenciar o mundo.
A obra recebeu duas adaptações. Uma produção polonesa ao cinema em 1965 – lançada em DVD no Brasil, mas já esgotada –, e uma minissérie de TV na França, em 1973. Raridades que se somam aos mistérios em torno da obra. Mas a boa notícia é a de que sim, está disponível em língua portuguesa a edição completa da obra. As 66 jornadas foram reunidas em dois volumes pela editora portuguesa Cavalo de Ferro, em 2010. Se você leitor que não leu o livro já se interessou a partir desta resenha, imagine para alguém que como eu leu apenas parte da narrativa. Mas seja por qual edição você se deparar, valerá, em primeiro lugar o prazer da leitura. É escrito com beleza e uma fruição acima da média e, também por isso, fadado a seduzir o leitor. Mas, cuidado. Sendo ou não cristão a advertência do Gumercindo faz sentido: pode abalar sua visão de mundo e os valores que têm como corretos. É um livro fascinante e provocador.

– Marcello Simão Branco