sábado, 3 de agosto de 2019

O Manuscrito de Saragoça


O Manuscrito de Saragoça (Manuscrit trouvé a Saragose), Jan Potocki. Tradução de José Sanz. Capa de Benson Chin sobre arte de Gustave Doré. Orelha de Gumercindo Rocha Dorea. 165 páginas. São Paulo: Edições GRD/Devir Brasil, 2016. Original publicado entre 1804 e 1847.


Este é um dos livros mais estranhos que já vi. Talvez a história da obra seja tão misteriosa e fantástica quanto à do próprio livro. Tive o primeiro contato em junho de 1990 quando comprei a primeira edição publicada no Brasil, na coleção Literatura Fantástica, das Edições GRD, em 1965. Mas só em 2016 adquiri a edição ao qual esta resenha se baseia. Na verdade, tem o mesmo conteúdo e tradução, apenas com uma nova capa e tamanho. Estas duas edições da GRD foram entremeadas por uma de mesmo título publicada pela editora Brasiliense, em 1988.
O leitor pode perguntar por que passo estas informações, mas é que, de certa forma, elas estão de acordo com as peculiaridades do livro em questão. Isso porque O Manuscrito de Saragoça surgiu inicialmente em 1804, mas de forma incompleta. Em parte tal perda se deve ao suicídio do autor em 1815. Os originais franceses perderam-se, depois foram reivindicados por outros autores, novas partes surgiram, com contestações sobre a real autoria dos textos, até que em 1847 teria chegado ao conteúdo completo, numa versão traduzida para o polonês e publicada em Leipzig, na Alemanha, chegando às 66 narrativas que compõe a saga.
Mas as edições brasileiras têm apenas 14 destas narrativas, que foi a versão que se consolidou inicialmente após a morte do autor. Ora, estamos diante, então, de um livro muito incompleto. Confesso que me senti um pouco enganado e frustrado. Será que leria o livro se soubesse disso? Talvez não, mas se não o tivesse feito estaria perdendo uma das histórias mais fantásticas e saborosas que já me deparei.
Em meio às guerras de conquista de Napoleão, no início do século XIX, um oficial do Exército francês acha numa casa abandonada na cidade de Saragoça, na Espanha, um manuscrito com as páginas espalhadas pelo chão. Começa a ler e fica totalmente absorvido, mesmo estando escrito em espanhol, língua da qual ele pouco entende. Leva consigo os manuscritos, e logo depois é preso por inimigos espanhóis, e sob o julgo de um capitão, que descobriu que os manuscritos contavam a histórias de um de seus ancestrais. A pedido do prisioneiro o militar traduz a obra para o francês. E é a história deste manuscrito que nós leitores também passamos a ler.
Pelas terras da Espanha acompanhamos as aventuras de Alphonse van Horden, filho de um oficial de prestígio do reinado espanhol que sai de sua localidade em terras francesas para se apresentar ao rei. Mas durante a viagem se depara com situações que desafiam sua sanidade e fé no cristianismo. Por vários momentos ele se pergunta se de fato viveu os acontecimentos ou se não passaram de sonhos ou alucinações. De certa forma o leitor também fica em dúvida, pelo menos em alguns momentos, mas como o fantástico e o sobrenatural crescem na narrativa, acabam assumindo o protagonismo dos eventos e seus significados.
Alfhonse parte de uma estalagem em Venta Quemada com dois ajudantes. Apavorados por relatos de fantasmas e assassinatos na região desaparecem misteriosamente. Sozinho, Alphonse toma conhecimento do enforcamento de dois irmãos que roubavam e matavam nos arredores, fica em dúvida se prossegue, mas, em nome da honra de seu cargo e sua família, segue adiante. No Vale de Los Hermanos pernoita em um castelo, onde é surpreendido pela presença de duas lindas mulheres, Emina e Ziibeddé, que se dizem suas primas. Elas oferecem comida e hospedagem, e depois quando Alphonse se preparava para dormir o seduzem. Mas ele acorda pela manhã ao lado dos dois enfocados, sem rastros das duas mulheres. Teria mesmo as encontrado ou foi tudo um sonho?
A partir desta experiência começamos a adentrar no mundo fantástico da Espanha profunda, com seus castelos, igrejas, montanhas e cavernas secretas, isso sem falar nas figuras exóticas que surgem, interagem com Alphonse, e contam suas histórias, que se constituem em si novas narrativas que formam o contexto misterioso, oculto, sempre por se revelar, em torno da vida e da fé do oficial a serviço do rei cristão.
A estrutura do romance é comparada a outros dois clássicos da literatura universal, As Mil e Uma Noites (século IX), sem autoria definida, e O Decameron (1348-1353), de Giovanni Boccaccio (1313-1375), com as histórias dentro de uma história, mas cada obra com suas particularidades. Nestas duas mais antigas, os próprios narradores é que contam as histórias, enquanto no livro de Potocki são as pessoas que o protagonista encontra pelo caminho é que relatam os eventos que estão indiretamente ligados ele. A atmosfera das aventuras contadas por suas primas, um padre ermitão, um ladrão fugitivo, um possuído pelo diabo, dois irmãos cabalistas, e por ciganos, são permeados pelo inusitado de situações e seres sobrenaturais. Assim, surgem fantasmas, demônios, vampiros, que se ora se travestem de belas mulheres ou homens que se apresentam como benfeitores para tentar confundir Alphonse. Chama a atenção também o erotismo presente em várias situações, seja entre homens e mulheres ou entre mulheres. Tudo com sugestão, mas com plena força de efeitos. Cada uma das histórias mostra a vida pregressa das pessoas que ele encontra e elas acabam por interagir com a própria trajetória dele que, de encontro em encontro percebe que não consegue avançar sempre voltando ao mesmo local de onde teve início a história.
De forma engenhosa Potocki nos insere numa teia de tramas e conspirações onde o conceito de real e irreal se confunde de forma crescente, e o recurso metalinguístico de estarmos diante de um manuscrito que é contado com histórias dentro de uma história só torna a leitura mais desconcertante. Em certos momentos parece que há uma perda da linha narrativa, mas ao final de cada relato percebemos que cada uma delas cumpre uma etapa no processo de compreensão do plano mais geral. Assim, é um livro que narra as quatorze narrativas que correspondem a quatorze dias de sua jornada, e é realmente uma pena que o livro termina ao final de uma delas sem conclusão alguma do que irá acontecer ou que tipo de destino aguarda Alphonse em sua jornada.
O Manuscrito de Saragoça é um romance gótico com forte apelo sobrenatural e religioso. A realidade apresentada é cristã e a fé de Alphonse é testada a todo o momento por meio de eventos sobrenaturais e, principalmente, por outras crenças que surgem nas jornadas, como a das primas mulçumanas, no casal de cabalistas, no padre que pede que ele confesse seus pecados ou no chefe cigano. De certa forma é como se estas outras formas de compreensão do mundo do além estivesse a cercar da fé cristã, numa espécie de conspiração mágica com o intuito de, através da eventual conversão de Alphonse a alguma delas, subjugar o cristianismo dele e do reino espanhol.
Escrito entre o fim do século XVIII e o início do XIX o livro também se situa numa espécie de transição de costumes e mentalidades entre o fim da Idade Média e o início da modernidade, e ele se expressa, justamente através da jornada do mundo antigo (interior rural, aldeias, líderes religiosos, eventos sobrenaturais) para outro pretensamente mais civilizado, de onde ele parte no início e espera concluir sua missão. Resta saber se Alphonse conseguirá manter sua fé cristã na jornada em direção a um mundo mais racional.
Nesse sentido vejam o que escreveu o editor Gumercindo Rocha Dorea (das Edições GRD) na dedicatória do meu volume da edição de 1965: “Marcello cuidado com este volume! O mundo que aí se encontra está tentando (se é que já não conseguiu) dominar o mundo.” É o velho temor do desafio à fé cristã e seus valores, num processo que se anunciava como de desencantamento do mundo, para usar a expressão com que Max Weber (1864-1920), interpretou a passagem do mundo sacro (tradicional) ao laico (moderno). Potocki tinha em mente sua época, mas esta ideia continua, em alguma medida, presente nos cristãos do mundo, desafiados, justamente pela modernidade que se instaurou e outras crenças que permanecem influentes como forma de interpretar e influenciar o mundo.
A obra recebeu duas adaptações. Uma produção polonesa ao cinema em 1965 – lançada em DVD no Brasil, mas já esgotada –, e uma minissérie de TV na França, em 1973. Raridades que se somam aos mistérios em torno da obra. Mas a boa notícia é a de que sim, está disponível em língua portuguesa a edição completa da obra. As 66 jornadas foram reunidas em dois volumes pela editora portuguesa Cavalo de Ferro, em 2010. Se você leitor que não leu o livro já se interessou a partir desta resenha, imagine para alguém que como eu leu apenas parte da narrativa. Mas seja por qual edição você se deparar, valerá, em primeiro lugar o prazer da leitura. É escrito com beleza e uma fruição acima da média e, também por isso, fadado a seduzir o leitor. Mas, cuidado. Sendo ou não cristão a advertência do Gumercindo faz sentido: pode abalar sua visão de mundo e os valores que têm como corretos. É um livro fascinante e provocador.

– Marcello Simão Branco 

Nenhum comentário:

Postar um comentário