sábado, 24 de agosto de 2019

Flash Forward


Flash Forward (idem), Robert J. Sawyer. Tradução de Ana Carolina Mesquita. Capa de Igor Campos. Rio de Janeiro: Galera Record, 2014. 382 páginas. Lançamento original de 1999.


Em julho de 2012 físicos do CERN (Centro Europeu de Pesquisa Nuclear), em Genebra, na Suíça, realizaram um experimento de aceleração de partículas com o objetivo de encontrar o Bóson de Higgs. Este componente supremamente ínfimo da natureza seria a peça fundamental que formaria as partículas subatômicas e, por extensão, toda a matéria do universo. O evento foi cercado por alguma polêmica, pois alguns grupos de esotéricos e religiosos temeram que o acelerador de partículas pudesse alterar a tessitura da realidade, talvez criando um miniburaco negro que pudesse engolir a própria Terra.
Em termos de ficção científica a concretização deste temor foi abordada de forma brilhante por David Brin em seu romance Terra (Earth), publicado em Portugal pela coleção Europa-América, nos. 182 e 183 (1991). Mas em Flash Forward, ocorre um outro fenômeno tão ou mais surpreendente e improvável: No ano de 2009, quando a experiência para a descoberta do Bóson de Higgs é realizada toda a humanidade perde os sentidos. Fica neste estado por dois minutos e dezessete segundos. E durante este período cada pessoa se vê 21 anos à frente, no qual cada um sente o fenômeno por meio de sua consciência no futuro, ou seja, em 2030.
Aqueles que estavam em movimento no momento do evento sofrem acidentes ou morrem: em escadas, carros, aviões etc. Milhares perdem a vida em todo o mundo. Mas afora esta tragédia imediata o evento altera de várias maneiras as vidas das pessoas em toda a parte. Pense: como você reagiria se pudesse saber como seria o seu futuro daqui a 21 anos? Para muitas pessoas o futuro é interessante: está com saúde, casou e tem filhos, progrediu na carreira, realizou algum sonho antigo. Mas para muitos outros os objetivos se mostraram um fracasso: sofre de doença grave, relacionamentos sem futuro, carreiras malsucedidas, e o pior: escuridão. Várias pessoas não viram nada, numa indicação de que, então, não terão futuro porque não estarão vivas.
Tal é o caso de um dos cientistas que participam da experiência, o grego Theo Procopides. Com apenas 28 anos, teria 49 duas décadas depois. Mas nada viu. Como vaticina de maneira lúgubre seu chefe, Lloyd Simcoe, é porque ele estará morto em 2030. Mas Simcoe também vê seus planos mais imediatos serem abalados: prestes a casar com Michico Tamura, sua assistente, constatou que sua visão o mostra numa cama com outra mulher, que ele ainda nem chegou a conhecer. E para piorar Tamiko, a filha pequena do primeiro casamento de Michico, morre atropelada por causa do flashforward. Você planejaria um futuro com alguém que não vai estar com você?
Mas as consequências também assumem contornos coletivos, em termos econômicos e tecnológicos. Como o evento ocorreu às 17 horas em Genebra, vislumbrou situações de possíveis vantagens econômicas (de saber como tal produto ou segmento estará) ou tecnológicas (com possíveis invenções). Isso porque boa parte das visões relatadas pelos habitantes da Ásia relatou situações desconexas e sem sentido. Claro, estavam dormindo, e viram seus sonhos. Por outro lado, morreram menos do que os ocidentais, acordados em sua maioria na hora do fenômeno.
No início não estava claro que o flashforward havia sido provocado pela experiência de alta energia, mas evidências indiretas foram sendo compostas até ficar claro de que se tratava de algum fenômeno estranho, que levou ao desmaio de sete bilhões de pessoas. Um dos efeitos secundários inquietantes é que nenhum aparelho de gravação registrou as pessoas desmaiadas ou os acidentes. Não filmou nada, só estática. Uma explicação oferecida pelos cientistas – mas que não me convenceu totalmente – é que com a ausência de qualquer consciência humana durante o flashforward, é como se a realidade tivesse ficado suspensa. Uma evidência do efeito observador na teoria quântica.
Depois de evitar realizar novamente o experimento e de ficar claro de que deviam alguma explicação pública para o ocorrido, Simcoe anuncia a provável conexão e, embora ele e o CERN não sejam imediatamente culpabilizados, é claro que há uma percepção geral de que alguma responsabilidade eles têm pelo que aconteceu.
Sawyer poderia ter desenvolvido a história numa espécie de mosaico, que pudesse mostrar o ponto de vista de vários personagens, em diferentes partes do mundo. Talvez reunindo seus destinos ou não, para mostrar as muitas nuances possíveis de como o fenômeno afetou as mais diversas vidas. Talvez com isso o romance ganhasse no desenvolvimento de dramas particulares, e o romance provavelmente seria maior. Contudo, ele optou por apresentar os dramas das pessoas diretamente envolvidas com a deflagração do evento: os físicos do CERN. De como afetou suas vidas pessoais e profissionais.
Neste aspecto, obviamente, o futuro mais inquietante é o de Procopides. Será mesmo que a escuridão representa a morte? Se sim, poderia haver alguma maneira de evitá-la, já que há um conhecimento prévio de sua ocorrência? Ele divulga publicamente seu problema na internet e encontra pessoas que teriam compartilhado a visão do momento de sua morte, como a de um menino de sete anos que daqui a 21 anos será o policial que investigará o seu assassinato. Mas o drama de Procopides não para aí. Seu irmão mais novo, um escritor talentoso comete suicídio ao descobrir que não teria o futuro de sucesso que imaginava.
Mas será que o futuro seria mesmo imutável? No fundo o livro faz uma ampla discussão sobre se existe livre-arbítrio ou tudo já está determinado. Talvez alguma contribuição religiosa ou mística também pudesse ser incluída, na voz de alguns personagens, mas a discussão fica restrita mesmo às teorias da física. Mesmo assim não deixa de ser altamente instigante acompanhar os diferentes argumentos a defender um ou outro ponto de vista. Acredito que o futuro é aberto, e cada um traça o seu destino, a cada segundo de vida. Mas quase fui quase levado a crer que a visão determinista prevalece, como defendida por Simcoe. Ele se baseou nas teorias de Minkowski, de que a estrutura da realidade seria uma espécie de bloco que conteria passado, presente e futuro. E ao transitarmos pelos diferentes trechos deste espaço poderíamos constatar o que já passou e o que irá ocorrer. Embora seja sugestiva, a observação de Michico ajuda a entender por que Simcoe, no seu íntimo, a defende: seria um álibi para todas as mortes ocorridas. Ele não teria tido responsabilidade porque já estava tudo traçado no continuum inscrito no bloco de Minkowski. Sobretudo pela morte da sua enteada, a razão maior da crise de relacionamento entre os dois, até mais do que a visão dele com outra mulher. Mas aos poucos alguns fatos vão mostrando que o futuro pode ser mudado. Principalmente quando pessoas dão cabo da própria vida, como o irmão de Procopides.
Então era preciso tirar tudo isso a limpo. Não principalmente para eles, mas a maioria das pessoas que ansiavam por uma nova visão que confirmasse ou não seu porvir. Com autorização da ONU a experiência é repetida, mas às 5 horas da manhã, em Genebra, ou seja, invertendo o horário da primeira vez e dando a chance ao Oriente de, eventualmente, vislumbrar mais seus futuros e eventuais ganhos em termos econômicos e tecnológicos. É claro que tudo desta vez é preparado para que as pessoas não sejam pegas de surpresa e se acidentem.
Mas será que haverá um novo vislumbre do futuro? E, afinal de contas, o que o teria provocado? Num laboratório de pesquisas físicas no Canadá, surge a hipótese de que o flashforward teria ocorrido por um súbito aumento da ocorrência de neutrinos na Terra no momento da experiência. Os neutrinos são partículas quase sem massa que vagam pelo universo sem nenhuma resistência. No sistema solar são produzidos principalmente pelas explosões nucleares no interior do Sol, e trilhões deles preenchem o nosso planeta – e nossos corpos – em frações de segundo, mas sem interação alguma com outros átomos e moléculas. Neste caso, contudo, o aumento repentino não teria sido provocado pelo Sol, mas pelo acréscimo de neutrinos ainda em vigência pela explosão da supernova 1987A, a maior de uma estrela observada pela humanidade em 383 anos, ocorrida em 1987 na estrela supergigante azul Sanduleak, na Grande Nuvem de Magalhães, a 170 mil anos-luz da Terra.
De certa forma, a não imutabilidade do destino e a descoberta da provável causa do flashforward, causa alívio nas pessoas, fazendo-as perder o receio de repetir a experiência, justamente na data: 21 de outubro de 2030. Mas como seria possível reproduzir o fenômeno, totalmente fortuito na interação dos neutrinos? É enviada uma sonda em direção aos restos da supernova, com um sistema de alerta para determinar o próximo pico de atividade dos neutrinos. Com isso haveria a chance de repetir um novo flashforward. Contudo, se o futuro não é imutável, parte das visões vislumbradas em 2009 se tornaram realidade. Inclusive para Simcoe, Michico e Procopides.
Flash Forward acrescenta mais um aspecto interessante ao tema da viagem no tempo, um dos mais clássicos da ficção científica. Se os viajantes não comparecem de corpo presente à outra época, eles têm visões do que pode vir a ocorrer com eles. Nesse sentido lembra um pouco o porviroscópio, uma máquina de visualizar o futuro, imaginada por Monteiro Lobato em seu romance O Presidente Negro (1926). Mas o que dá um ganho substancial à obra é o tratamento realista da premissa: O que aconteceria ao mundo se um fenômeno desses acontecesse? Além disso, uma narrativa vigorosa, que soma ao tema fascinante, personagens críveis e humanos que faz com que o interesse pela leitura só cresça a cada página.
O romance foi uma das sensações da ficção científica no final do século XX, embora não tenha vencido o Prêmio Nebula como afirma a Record na capa do livro, mas sim o Aurora, prêmio canadense de FC, em 2000. Foi adaptado numa cultuada série de TV entre 2009 e 2010, que durou apenas uma temporada. Mas o que este livro sobretudo demonstra é como o vigor das boas ideias bem desenvolvidas sustenta uma narrativa criativa e inteligente de ficção científica.

– Marcello Simão Branco

Um comentário:

  1. Eu vi a série toda antes de saber da existência do livro e me frustrei ao saber que tratava apenas dos cientistas, não de pessoas comuns que viriam a se relacionar com os responsáveis.

    Não comprei o romance por conta de avaliação da Amazon, mas, vendo sua resenha, uma esperança surge.

    Obrigado!
    Lucas Palhão

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