sábado, 31 de outubro de 2015

Experiência Diabólica / O Cérebro Maligno (Donovan´s Brain, EUA, 1953)


Com direção e roteiro de Felix E. Feist, fotografia em preto e branco e história baseada no conto “O Cérebro de Donovan”, escrita em 1942 pelo alemão Curt Siodmak, “Experiência Diabólica” é mais uma daquelas preciosidades do cinema fantástico dos anos 1950. Foi lançado em DVD no Brasil com o título alternativo de “O Cérebro Maligno” e o conto de Siodmak já havia sido filmado antes em 1944 com “A Dama e o Monstro”, além de outra versão em 1962 com o nome “The Brain”.
Na história, temos o tradicional “cientista louco” que acredita que suas ações são bem intencionadas, sempre envolvidas em experiências sinistras para ajudar a humanidade. Nesse caso o papel ficou para o Dr. Patrick J. Cory (Lew Ayres), que é auxiliado pelo também médico Dr. Frank Schratt (Gene Evans), que aprecia consumir bebidas alcoólicas em excesso, e ambos contam com a ajuda da enfermeira Janice Cory, esposa do cientista. A personagem foi interpretada pela atriz Nancy Reagan, creditada como Nancy Davis, e curiosamente ela foi casada com o ex-presidente americano Ronald Reagan, que também foi ator.
Eles trabalham com experiências para manter o cérebro ainda vivo de animais mortos, e utilizam macacos como cobaias. Porém, ocorre um acidente com um pequeno avião nas proximidades do laboratório e uma das vítimas é um famoso milionário, William H. Donovan, conhecido pelo envolvimento em negócios obscuros e sonegação de impostos. Ele é ferido gravemente no acidente e levado pela polícia para a casa do cientista, que não consegue salvar sua vida. Mas, a morte do milionário despertou a oportunidade da realização de uma “experiência diabólica” com a tentativa de manter seu cérebro vivo, semi mergulhado num tanque com uma solução de nutrientes e ativado com constantes impulsos elétricos. A experiência é bem sucedida, estimulando o cientista a tentar comunicação com o cérebro de Donovan. Só que eles não imaginariam as consequências desastrosas depois que o “cérebro maligno” consegue controlar telepaticamente o Dr. Cory, manipulando-o para continuar com seus negócios ilegais, eliminando todos que cruzassem seu caminho, como o fotógrafo sensacionalista Herbie Yocum (Steve Brodie), que descobriu a experiência e utilizava-se de chantagem para lucrar com a história.
“Experiência Diabólica” é um típico filme com orçamento menor do cinema fantástico bagaceiro dos anos 50 do século passado, explorando uma história exagerada na fantasia e que diverte justamente por essa fuga da realidade. Um cientista obcecado por seu trabalho, que coloca de lado a vida social para estudar a possibilidade de um cérebro humano manter-se vivo, mesmo após a morte de seu corpo, e ainda podendo comunicar-se por telepatia. E claro, as consequências dessa ideia extravagante seriam catastróficas pelo fato do cérebro pertencer a um homem sem escrúpulos e envolvido numa série de atos desonestos que geraram sua fortuna.
Os desfechos da maioria dos filmes com temáticas semelhantes produzidos nesse período geralmente são parecidos e positivos, com a ameaça sendo detida e a tensão turbulenta eliminada, dando espaço para a esperança de dias melhores. Então não é “spoiler” revelar que em “Experiência Diabólica” o mesmo novamente acontece, e nesse caso seria interessante e intrigante imaginar como seriam as coisas se o caos prevalecesse e o “cérebro maligno” conseguisse manter-se vivo e controlando a mente das pessoas.
(Juvenatrix – 31/10/15)

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Páginas do Futuro, Braulio Tavares

Páginas do Futuro: Contos Brasileiros de Ficção Científica, Braulio Tavares, organização e apresentação. 156 páginas. Capa e ilustrações de Romero Cavalcanti. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011.

Esta antologia era aguardada há alguns anos, mas não deixou de surpreender ao ser lançada na virada de 2011 para 2012. O escritor Braulio Tavares, um dos nomes mais importantes da ficção científica brasileira, tem consolidado uma carreira de antologista tão notável quando a do escritor talentoso que despontou no fim da década de 1980, ainda no ambiente do fandom.
Nestes primeiros anos do século xxi, Tavares tem coordenado a coleção “Contos Fantásticos”, pela editora carioca Casa da Palavra. Em 2003, lançou Páginas de Sombra Contos Fantásticos Brasileiros, e em 2005 e 2007, organizou respectivamente duas ótimas antologias internacionais voltadas a duas personalidades próximas ao fantástico: Contos Fantásticos no Labirinto de Borges e Freud e o Estranho: Contos Fantásticos do Inconsciente. Já em 2009, no contexto comemorativo do bicentenário de nascimento do mestre americano do horror, apresentou a antologia Contos Obscuros de Edgar Allan Poe.
Páginas do Futuro: Contos Brasileiros de Ficção Científica é, portanto, a sexta antologia da série e demarca uma proposta formativa dentro da literatura brasileira que procura o diálogo entre a literatura de gênero e o chamado mainstream literário. Como disse, era aguardada há anos pelos fãs e críticos da fc brasileira. Mas, ao que parece, chegou no melhor momento, depois de uma certa maturação dentro da própria coleção e no contexto intelectual do mainstream, mais favorável nestes anos recentes a uma maior abertura para a ficção científica e gêneros afins.
Tanto é assim que a esta antologia somam-se outras que vem sendo organizadas com perfil de informação e formação semelhante, a série “Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica”, iniciativa do escritor Roberto de Sousa Causo junto a Devir Livraria.[1]  Mas se em Causo o aspecto histórico e mais próximo aos temas tradicionais da fc, em Tavares a proposta segue uma linha mais conceitual em termos de definição e panorama, ao apresentar para os não aficcionados uma espécie de arco de possibilidades, tanto em termos temáticos, como de estilo.
Nesse sentido, Páginas do Futuro apresenta uma sucinta mas robusta apresentação em que Tavares situa o gênero nos seus termos mais gerais, para em seguida voltar-se a uma profícua reflexão sobre as suas características no Brasil, além de suas possibilidades enquanto literatura que acrescente alguma coisa para além do ambiente restrito do fandom, como quando afirma:

[...] a fc brasileira não pode abrir mão de um conhecimento da fc internacional, sob o risco de deixar de ser fc, e não pode abrir mão de um conhecimento equivalente da literatura brasileira do nosso país, sob o risco de deixar de ser brasileira. (pág. 16).

Esta posição apresenta novidade em relação ao pensamento do autor em anos anteriores — quando ele era mais voltado à valorização literária do gênero, se posso colocar assim —, e chega num momento especialmente sensível da produção de fc no país, marcado por resultados ainda incertos de uma nova geração de autores surgidos neste início de século xxi. Um cenário com muitos títulos publicados por autores novos sem grande experiência e conhecimento literário, principalmente em termos de fc. É certo que o chamado à responsabilidade se dirige aos autores contemporâneos de Tavares, dos anos 1980 em diante, mas olhando o cenário de maneira geral, é mais do que necessário que os autores novos sejam incluídos dentro dessa perspectiva que dialoga tanto com os temas de fronteira da fc internacional, como com as tradições mais concretas da literatura nacional.
Coerente com essa proposta, a antologia apresenta uma dúzia de histórias bastante diversificadas, em termos históricos, temáticos e de estilo. Difícil mesmo puxar na memória uma antologia de alcance tão abrangente quanto esta, nesses três quesitos. Em certo sentido, Páginas do Futuro é quase que uma antologia de intervenção, ao conceituar, refletir e apresentar um leque de histórias que objetiva formar um debate sobre a ficção científica praticada no Brasil.
Não há, porém, um caráter didático ou prescritivo: o tom é leve e descontraído, com textos que antes de mais nada primam pelo bom gosto e pelo entretenimento provocativo, que procuram tirar o leitor do convencional, do lugar comum. Pode parecer óbvio esperar isso de uma antologia de ficção científica, mas nem sempre o processo de seleção realizado em antologias reflete plenamente este objetivo. O projeto gráfico já consagrado também contribui para o êxito final, com ótimas ilustrações de Romero Cavalcanti.
O leitor brasileiro sem grande intimidade com a fc, mas também o leitor assíduo que nem sempre olha com atenção para o gênero de próprio país, é apresentado a nomes que surpreendem, como Joaquim Manuel de Macedo e Rachel de Queiroz — esta com “Ma-Hôre” (1961), uma pequena joia de encontro com alienígena, de perspectiva tipicamente brasileira —, ou nomes conhecidos apenas no ambiente do fandom, como os contemporâneos Ataíde Tartari, Finisia Fideli e Fábio Fernandes; ou ainda nomes que se consagraram nos anos 1960 e servem de norte à evolução do gênero no país, como André Carneiro e Jerônymo Monteiro.
O livro inclui um conjunto de temas que explora concepções que, em certo sentido, contemplam uma visão do gênero em cada época. Por exemplo, no caso de uma abordagem mais ligeira ou irônica da ciência típica do início do início do século xx — como no divertido “O Inimigo Gaseificado, ou a Vingança do Sr. Concreto” (1923), de Oswald Beresford —, ou mais socialmente contestadoras e literariamente arrojadas, como no surpreendente (mas falho) texto de Ruben Fonseca, “O Quarto Selo (Fragmento)” (1967), ou no delirante “Vanessa von Chrysler” (1992), de Fausto Fawcett, um autor caótico que parece querer brigar sonoramente com as palavras.
Há também narrativas que apresentam prosas mais convencionais, mas com uma especulação mais segura e informada sobre a ficção científica em si, como no clássico “Exercícios de Silêncio” (1983), de Fideli, talvez a única história à lá Golden Age do livro, ou ainda no humanista “O Copo de Cristal” (1969), de Monteiro. Por outro lado, inversões da noção de realidade e exercícios temáticos que utilizam a própria estrutura narrativa estão bem representados no conto de André Carneiro e na obra-prima de Luiz Bras, “Déjà-vu” (2010), uma história candidata a clássica da nossa fc.
Mesmo bem amarrada em termos de proposta, a antologia entretanto, apresenta uma certa irregularidade, principalmente em termos de preferências temáticas. Poder-se-ia escolher outras histórias de perfis um pouco diferentes, mas isso depende do critério crítico de cada organizador e não tira o mérito destas escolhas específicas, pois para além da mera seleção em si, joga a favor esta proposta que procura formar e aproximar dois círculos literários ainda estranhos um ao outro: o do fandom de fc e o do mainstream literário. Não é apenas com Páginas do Futuro que este hiato será preenchido, mas trata-se sem dúvida uma das mais relevantes contribuições que poderiam ser realizadas. Que a sequência do trabalho de antologista de Braulio Tavares possa consolidar a aproximação destes dois mundos menos distantes do que parecem.

– Marcello Simão Branco



[1] São elas: Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica (2007), Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica: Fronteiras (2009) e As Melhores Novelas Brasileiras de Ficção Científica (2011).

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Será, Ivan Hegenberg

Será, Ivan Hegenberg, 240 páginas. Editora Ragnarok, São Paulo, 2007.

Primeiro romance de Ivan Hegenberg, escritor paulista formado em Artes Plásticas pela ECA-USP que, em 2005, teve publicada a coletânea A grande incógnita, pela Editora Annablume. Desta vez, o autor envereda pelo fantástico e experimenta a ficção científica, inspirado em livros como 1984 de George Orwell, Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, conforme evoca o texto da orelha do livro. Porém, no que se refere à estrutura, este romance tem mesmo é a aparência de uma coletânea, sendo formado pelo encadeamento de narrativas independentes e não contínuas, situadas no mesmo universo. São elas:
“História do mundo”: Um homem desiludido com a vida dialoga com um robô sem emoções, enquanto viaja pelo tempo e pelo espaço através de um programa simulador. O conto contextualiza o ambiente de um futuro superpopuloso controlado política e socialmente por programas de computador, no qual as pessoas aprenderam a dominar a telepatia, e a carência de água e comida é o problema principal.
“Água”: Membros de uma equipe de assassinos do estado, chamado Comando da água, torturam e matam civis inocentes apenas porque eles são infelizes, como forma de reduzir a tensão social pela falta de água. Um deles, entretanto, depois de uma vida de assassinatos, decide dar baixa do pelotão.
“Dia qualquer”: Um homem virtual vive insipidamente num programa simulador. Obcecada por ele, uma mulher morre de inanição depois de passar vários dias ligadas ao computador.
“Passagem”: Uma menina de oito anos aprende, precocemente, como se comunicar por telepatia e passa por problemas de relacionamento com seus amigos da escola e com a sua mãe, ao tomar contato com a alma das pessoas. Sua professora, uma mulher madura e infeliz, torna-se sua principal vinculação emocional com a realidade.
“Zeitgeist”: O capítulo mais longo do romance. O maior telepata do mundo invade a mente das pessoas e constrói um mosaico insano da sociedade do futuro.
“O supremo esteta”: Grafado em corpo diferenciado, este conto simula um texto de divulgação de uma espécie de religião do futuro.
“Encanto”: Um homem cético fica com dúvidas sobre a validade de seu ceticismo depois de participar de um ritual místico religioso em que os participantes, que têm todo o tipo de implantes e reconstruções físicas, tomam um chá alucinógeno que induz um estado de êxtase.
“A aldeia dos índios Tympi”: Jovens intelectuais reúnem-se para um sarau poético. Suas poesias são compostas por computadores, a partir de suas próprias moléculas de sangue. Depois do sarau, um casal tem sua primeira experiência sexual num inferninho.
“Explorações”: Três narrativas se intercalam neste trecho, sendo uma sobre um diretor de cinema que tem problemas conjugais e está produzindo um filme pornô. O segundo é sobre a trágica viagem de um grupo de cientistas ao interior de uma célula e, na terceira, um solilóquio do maior filósofo do mundo concluindo alguma coisa insondável sobre existência de Deus.
“Festa do Último Grito”: Alguns dos personagens do livro se encontram em Praga, uma das poucas cidades do mundo que não é monitorada pelos computadores, para participar de uma cerimônia de suicídio coletivo. O evento é realizado durante uma noite e apenas uma vez ao ano.  Geralmente, metade dos participantes consegue morrer. Os restantes ou sobrevivem da tentativa ou desistem, embora seja perigoso mesmo assim: os habitantes da cidade atuam como assassinos, matando todos os que encontram pela frente. Ali estão, por exemplo, a menina precoce, o ex-assassino do Comando Água, o homem cético, e muitos outros apenas citados ao longo dos inúmeros segmentos narrativos. Para cada um deles, a Festa do Último Grito é o um apocalipse. Sobrevivendo, terão enfim esperança suficiente para recomeçar. 
“Epílogo: atração”: Um casal – visto no conto “A aldeia dos índios Tympi” – colhe argila num barranco enquanto discute sua relação.
O final anti-climático, depois das emoções sangrentas do conto anterior, dá o exemplo para análise do livro todo: uma antologia de textos pós-modernos, sem princípio e sem final, com trechos de interesse intercalados com solilóquios que pouco contribuem com a narrativa. Em alguns casos, a intercalação dos períodos é tão arbitrária que o contexto se perde completamente. Os trechos filosóficos não são convincentes e mais contornam do que abordam os temas que sugerem, dando a impressão que o autor não os domina com profundidade suficiente.
Apesar da premissa base do universo de Será estabelecer que se trata de um mundo superpovoado com problemas de abastecimento gravíssimos, isso parece ter um significado quase desprezível na vidas das personagens, mais preocupadas com seus relacionamentos pessoais do que com água e comida. Tanto que, na maior parte do tempo, suas vidas parecem tão normais que soam até sem graça.
Um pouco melhor é tratada a questão da telepatia, que ensaia ser um detalhe importante nos primeiros contos, mas vai perdendo consistência ao longo do livro até ficar insignificante nos últimos textos.
Dessa forma, Hegenberg desperdiçou dois dos principais temas que caracterizariam o seu mundo do futuro, escrevendo histórias que ficariam bem melhores se ambientadas nos dias de hoje. Sem a devida consistência ambiental, a história se tornou frágil, presa fácil à incredulidade e ao desinteresse do leitor, o que é agravado pela falta de um personagem principal com o qual o leitor se identifique. Nem mesmo as cenas de sexo explícito narradas em “Explorações” causa algum impacto.
Quando tudo parece perdido, vem o melhor texto do livro, o capítulo intitulado “Festa do último grito”, com niilismo suficiente para levantar o interesse do leitor, embalando-o até as páginas finais do volume. Este conto, se descolado do livro, pode figurar com louvor em qualquer antologia literária e deixa claro que, bem orientado, Ivan Hegenberg tem talento suficiente para escrever obras de impacto e interesse.
Cesar Silva

domingo, 18 de outubro de 2015

A Invasão Zumbi (Rise of the Zombies, EUA, 2012)


O que se pode esperar de um filme de zumbis produzido pela “The Asylum”? A resposta somente pode ser uma tranqueira colossal sem absolutamente nenhuma intenção em apresentar algo diferente de tudo que já se viu nesse super explorado sub-gênero do cinema de Horror. “A Invasão Zumbi”, dirigido por Nick Lyon, que também foi o cineasta de outro filme de mortos-vivos da “The Asylum”, “Apocalipse Zumbi” (2011), certamente faz parte do que costumo chamar de cinema fantástico bagaceiro do século XXI. Ele se enquadra na imensa lista de filmes ruins de horror e ficção científica produzidos nesse início de novo século, onde alguns até divertem um pouco justamente pelas características bagaceiras. No caso de “A Invasão Zumbi”, uma das poucas coisas que vale o registro é a curiosidade de apresentar no elenco dois nomes interessantes que chamam a atenção dos fãs. Temos o veterano Danny Trejo, com mais de 300 filmes no currículo, e que não se importa nem um pouco em participar de uma infinidade de porcarias, sempre fazendo papéis de homem durão com cara feia e portando armas, e também tem a presença de LeVar Burton, mais conhecido como o Tenente Geordi La Forge da série de TV “Jornada nas Estrelas: A Nova Geração” (1987 / 1994).
O filme é ambientado na cidade americana de São Francisco, Estado da Califórnia, onde um apocalipse zumbi instaura o caos através de um vírus que transforma as pessoas infectadas em mortos-vivos em busca de carne e sangue. Nesse cenário depressivo, um grupo de sobreviventes está isolado numa ilha na prisão de Alcatraz, tentando impedir a invasão dos zumbis e encontrar uma cura para a contaminação. O grupo é formado, entre outros, pelos cientistas Dra. Lynn Snyder (Mariel Hemingway) e Dr. Dan Halpern (LeVar Burton), a jovem Ashley (Heather Hemmens), além de homens armados como Marshall (Ethan Suplee), Capitão Caspian (Danny Trejo) e seu sobrinho de criação Kyle (Chad Lindberg).
Após os zumbis invadirem Alcatraz, os refugiados deixam o local na tentativa de encontrarem na cidade o cientista Dr. Arnold (French Stewart), que está trabalhando numa vacina para curar a contaminação e evitar a extinção da humanidade. No caminho, eles enfrentam hordas de mortos-vivos famintos por suas carnes.
Pela sinopse percebe-se claramente o imenso clichê que é a história, algo já contado tantas vezes, mas que ainda é explorado pelos produtores picaretas. É a manjada fórmula constituída por infecção desenfreada pela propagação de um vírus desconhecido, com pessoas isoladas lutando pela sobrevivência em meio ao caos, e a tentativa de estudar a origem da contaminação e encontrar uma cura para impedir o extermínio da raça humana. O filme é ruim não apenas pelo roteiro comum, e sim também pela produção geral, com o uso exagerado de CGI vagabundo e imensas falhas como o fato das cenas externas não mostrarem uma cidade destruída por um apocalipse zumbi, não convencendo como um ambiente de desolação. Ao contrário, é possível até percebermos uma movimentação normal ao redor. E ainda tem uma tentativa frustrada com diálogos rasos para discutir conceitos de religião, com a fé do personagem Marshall na esperança de dias melhores, contra a razão defendida pela cientista Dra. Snyder, que vê o mundo em decadência crescente. Porém, apesar do clichê gigantesco da história com a total falta de vontade dos realizadores em mostrar algo diferente, por menor que seja, é ainda possível com esforço do espectador e pouca exigência, destacar um sentimento de pessimismo com a morte violenta de vários personagens, e uma cena tensa envolvendo um bebê recém-nascido.
“A Invasão Zumbi” é mais uma daquelas bagaceiras que diverte pouco, e nem a presença do cultuado Danny Trejo consegue evitar que o destino do filme seja o limbo dos esquecidos.
Curiosamente, tem uma cena copiada de “Dia dos Mortos” (Day of the Dead, 1985), do mestre George Romero, envolvendo um braço zumbificado decepado e a forma dolorosa de cauterização da ferida. 
(Juvenatrix – 18/10/15)

terça-feira, 13 de outubro de 2015

A caverna de cristais: Aliança dos povos, Helena Gomes

A caverna de cristais, Volume 2: Aliança dos povos, Helena Gomes. 592 páginas. Capa de Milton Nakata. Idea Editora, Bauru, 2007.

Romance de fantasia heroica com trechos de ficção científica, segundo volume de uma série cujo primeiro episódio, O arqueiro e a feiticeira, foi primeiro publicado em 2003 pela Devir Livraria.
A autora, Helena Gomes, natural de Santos (SP), é jornalista e professora universitária. Estreou com o livro Memórias da hotelaria santista (1997), não ficção em coautoria com Viviane Pereira e Laire José Giraud, e também publicou em 2006 o romance de horror Lobo Alpha (Rocco).
A caverna dos cristais: Aliança dos Povos divide-se em três partes principais, cada uma com cerca de 200 páginas: “Herdeiro”, “Mudu-Za” e “Terceiro guerreiro”.
A primeira parte inicia com os jovens irmãos Gothilan e Caleb, e como eles foram tocados pelos cristais mágicos conhecidos como Parenthis. Gothilan viria se tornar um grande líder militar e espiritual, e seria traído por seu irmão. Mas isso é apenas o primeiro capítulo: a história começa mesmo milhares de anos depois, quando vivem os irmãos Thomas e Vince, reencarnações de Gothilan e Caleb que mantêm, ao longo de todo o romance, um triângulo amoroso com a garota Erin.
A Terra está praticamente desabitada, exceto por tribos isoladas vivendo em organização feudal. O reino dos protagonistas chama-se, com efeito, Britanya. Thomas e Vince têm poderes especiais, concedidos pelas parenthis e herdados de suas vidas passadas. As parenthis também permitem alguma comunicação com os bondosos seres extradimensionais chamados eloras.
Para dar combate à Mudu-Za, líder dos anjos negros conhecidos como nergals – poderosa força alienígena enfrentada no primeiro volume da série –, os três jovens vão ao planta Gaia, capital da Aliança dos Povos – uma espécie de federação interplanetária –, para encontrar o mago Tolkien, o último guardião do universo. Para isso, tomam posse de uma espaçonave abandonada, envolvem-se com piratas espaciais e, finalmente, chegam ao destino auxiliados pelos amigos de Vince, que vêm em seu resgate.
Vince sente-se em casa, pois já vivera em Gaia, mas Thomas e Erin deparam-se com uma realidade muito diferente da que conheceram em Britanya. Gaia é um planeta moderno, tecnologicamente similar à Terra dos nosso dias – porém, com espaçonaves –, com um governo mundial que acaba de sair de uma ditadura, mas ainda guarda aspectos de um estado policial.
A busca por Tolkien é facilitada pelos poderes das parenthis, sendo ele, na verdade, o escritor de best sellers conhecido como Nicolas Sheridan. Entretanto, o encontro não passa despercebido da polícia de Gaia que, influenciada pelos nergals, tenta eliminar tanto Tolkien quanto os jovens heróis medievais. Os garotos conseguem escapar e, acompanhados do mago escritor, fogem de Gaia num cargueiro espacial.
Durante a viagem, ficam sabendo de um iminente ataque nergal à Gaia, e decidem sacrificar sua missão principal contra Mudu-Za para trabalhar na defesa da capital da Aliança dos Povos antes que seja tarde demais. Durante a aventura, os jovens isolam-se uns dos outros, cada um acreditando que os demais estão mortos.
A segunda parte do romance conta o que acontece a cada um deles enquanto estão separados, como se lhes revelam as identidades de Mudu-Za e dos eloras, e como despertam a totalidade de seus poderes.
Na terceira parte, todos reencontram-se em Britanya, para onde a batalha contra os nergals se desloca. Ali se prepara o confronto final entre as forças sombrias de Mudu-Za e as forças do bem dos eloras, com muitos conflitos de consciência entre os personagens, traições e superação frente a forças irresistíveis.
As quase 600 páginas do romance impressionam a primeira vista. Ainda mais quando percebemos que é apenas o segundo volume de sete previstos pela autora. A caverna de cristais é, provavelmente, a mais ambiciosa série da ficção fantástica brasileira.
Não há dúvida que Helena Gomes sabe escrever. Seu texto é limpo e fácil de entender, não soa grandiloquente nem infantil, situando-se adequadamente naquele agradável modelo que caracteriza a ficção fantástica. Mas a narrativa é lenta, mesmo com as incontáveis cenas de ação que a autora espalhou pela história. As batalhas são caracterizadas por uma violência caricata, com longos diálogos em que os adversários provocam-se com piadas infames e citações da cultura pop do século 20 da nossa realidade. De acordo com este romance, o futuro da humanidade não acrescentará mais nada à história da cultura popular interplanetária. Além disso, a autora nem tenta disfarçar as inúmeras citações e homenagens aos seus seriados preferidos, como Guerra nas estrelas, Galactica, Babilon 5, O senhor dos anéis etc, um recurso frequente entre os autores-fãs brasileiros, com melhores e piores resultados, mas que pulveriza qualquer verossimilhança dramática e causa grandes prejuízos à já delicada suspensão de incredulidade em que a ficção fantástica brasileira, de forma geral, tem deficiências históricas. Além do mais, há um claro discurso proselitista religioso por detrás da história. Não que isso seja um pecado mortal: muita da boa ficção fantástica mundial é proselitista, seja religiosa, seja política, eventualmente ambas. Mas esse proselitismo só é perdoável quando vem acompanhado de uma história muito interessante e bem escrita, que entretém durante a leitura e suscita discussões depois da última página, como em Os despossuídos (The dispossessed), de Ursula K. LeGuin, Tropas estelares (Starship troopers), de Robert Heinlein, ou Além do planeta silencioso (Out of the silent planet), de C. S. Lewis.
Para os leitores que superarem as duas primeiras partes do romance, há a promessa de uma movimentada e bem articulada terceira parte, que retoma o modelo de fantasia medieval visto no primeiro volume. Os personagens finalmente ganham corpo e os seus dramas pessoais vêm à tona, com ações firmes e definitivas. Mas o cansaço cobra um alto preço: a ideia de ler mais cinco volumes para chegar ao fim dessa história não é muito animadora.*
Cesar Silva

* A Idea publicou, em 2008, o terceiro volume de A caverna dos cristais: Despertar do dragão, e, no ano seguinte, republicou o primeiro volume, O arqueiro e a feiticeira. Em 2015, a editora Rocco lançou o quarto volume, A tríade,  além de A adaga mágica, ebook com uma aventura no mesmo universo da série.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Reconhecimento de Padrões, William Gibson


Reconhecimento de Padrões (Pattern Recognition), William Gibson. Tradução de Fábio Fernandes. 409 páginas. São Paulo: Editora Aleph, 2004.


William Gibson foi, sabidamente, um dos principais líderes do extinto movimento cyberpunk, e sua figura pública é conhecida para além das fronteiras da ficção científica. Assim, a editora Aleph acerta em cheio nos brindando com mais uma obra deste autor importante, tanto para a ficção científica, como para o que poderíamos chamar de uma literatura voltada a estudos contemporâneos da cultura.

O livro vem bem recomendado do exterior, pois foi finalista do prestigioso Arthur C. Clarke Award 2004 e esteve na lista dos “livros notáveis” em 2003, pela revista americana Locus. Além disso, vale destacar a edição brasileira, bem cuidada do ponto de vista editorial. Com uma bela ilustração de capa de Thiago Ventura e uma tradução competente, por um especialista no gênero, o Fábio Fernandes. Ele tem a sensibilidade certa em perceber quais neologismos estrangeiros devem ou não ser vertidos para a língua portuguesa, conectado que está com a rede mundial de computadores e sua já vasta e internacionalizada sub-cultura.
Isso porque Reconhecimento de Padrões, embora não se assuma como um romance de ficção científica tem toda uma ambientação que muito o lembra. Gibson se propôs a um desafio difícil, percebe-se na leitura de sua obra: como escrever uma história situada em nosso presente e que, ao mesmo tempo, procure especular sobre as perspectivas deste mundo nascente e incerto do início de século.[1]
Já se disse que escrever FC near-future é mais difícil que a far-future. As mudanças políticas, culturais e tecnológicas acontecem o tempo todo e num ritmo difícil de apreender enquanto vivemos o processo. Corre-se o risco de trocar a especulação, pela antecipação. Ou pior, ser taxado com a pecha de futurologista, o que em 99% dos casos soa como algo pejorativo. Mais fácil ou prudente, então, realizar uma tentativa de extrapolação distante, fora das paixões e do alcance dos que, de alguma forma, irão testemunhar as mudanças propostas em uma história de futuro próximo.
Mas se o desafio é maior por causa da história se ambientar em cenários próximos, o prazer pela leitura de uma obra que — a despeito desta dificuldade — consiga ser robusta e bem realizada é tanto maior. E este é o caso de Reconhecimento de Padrões.
Em uma passagem particularmente luminosa, um diálogo entre dois personagens situa os objetivos de Gibson ao conceber esta obra — inclusive com relação à ficção científica —, bem como suas expectativas do mundo que se avizinha:

Não temos idéia, agora, de quem ou o quê poderão ser os habitantes do nosso futuro. Nesse sentido, não temos futuro. Não no sentido do futuro que os nossos avós tinham, ou achavam que tinham. Futuros culturais completamente imaginários eram o luxo de outra época, na qual o “agora” tinha uma duração maior. Para nós, claro, as coisas podem mudar de modo tão abrupto, tão violento, tão profundo, que futuros como o dos nossos avós possuem um “agora” insuficiente para se manter de pé. Não temos futuro porque o nosso presente é volátil demais. (...). Temos apenas gerenciamento de riscos. O desdobramento dos cenários de um momento determinado. Reconhecimento de padrões.
O futuro está lá olhando para nós. Tentando entender a ficção em que teremos nos tornado. E de onde eles estão, o passado atrás de nós não parecerá nem um pouco com o passado que imaginamos atrás de nós agora.  (págs. 70-71).

O livro foi escrito em 2002, e a história se passa neste ano. Isso não lembra algo? Sim, apenas um ano após o 11 de Setembro, seus ecos são corajosamente abordados no interior da trama, um dos pontos fortes do livro como um todo, inclusive, com a própria cena da queda das torres sendo narradas em flash-back por um dos personagens. De arrepiar, pois me fez lembrar de mim mesmo, perplexo como os personagens, à frente da TV de minha casa, tomando café e não querendo acreditar em ver o segundo avião se chocando com a segunda torre do World Trade Center. E Gibson vinculou este evento traumático da vida americana — e mundial — recente dentro da própria história que conta, o que a traz ainda mais próxima da realidade. O pai da protagonista Cayce Pollard desaparece misteriosamente na manhã fatídica dos ataques. Ele estava hospedado num hotel da cidade e simplesmente não deixa rastro depois dos atentados.
A Cayce em questão é uma publicitária americana free-lancer, especializada na procura de novas tendências de comportamento em grupos específicos da sociedade globalizada, sub-culturas, manifestações underground, para resumir. Identificando estas tendências, em modos de se vestir, gírias, consumo de certo tipo de alimento ou audição de uma música específica, ela faz um relatório para uma empresa, com o objetivo de tornar a tendência comercialmente interessante. Ou seja, ela faz “reconhecimento de padrões” culturais, potencialmente aproveitáveis do ponto de vista econômico. E ela também trabalha com a identificação de logotipos, marcas registradas de empresas, aprovando ou não sua viabilidade comercial. Contudo, contraditoriamente, ela tem uma fobia patológica contra logotipos de multinacionais, como o boneco da Michellin, o símbolo da Coca-Cola, ou o selo de uma bolsa Louis Vuitton, por exemplo.
Inicialmente contratada pela agência de publicidade Blue Ant em Londres para aprovar alguns logotipos, ela depois é contactada pelo dono para outro serviço, ainda menos convencional. Procurar o criador de um filme que tem sido divulgado na internet, quadro a quadro, de tempos em tempos. E isso vem de encontro a uma curiosidade pessoal de Cayce, pois ela é uma ativa participante de uma lista de discussão na internet, por meio do website Fetiche:Filme:Forum, onde as pessoas acompanham as últimas novidades sobre o filme, bem como trocam e-mails sobre o tema. Tudo muito parecido com o que nós, leitores de ficção científica, estamos habituados já há alguns anos em torno do nosso assunto de preferência.
A partir deste ponto a história segue os passos tortuosos e surpreendentes de Cayce, coadjuvada por uma série de personagens muito vivos e interessantes, que lhe dá suporte: de ex-agentes de centrais de inteligência de países extintos a hakers ou ainda espiões industriais insuspeitos. Além do seu amigo cineasta Damien, que lhe manda e-mails de suas filmagens em São Petersburgo, Rússia. Dois irmãos poloneses que vivem sem grandes recursos em Londres, envolvidos de alguma forma com o manuseio e venda de novas tecnologias. Seus próprios correspondentes do Fetiche:Filme:Forum, especialmente um sujeito com o misterioso nick name de Parkaboy, que lhe será uma figura importante na tentativa de decifração final do criador.
Mas o que Cayce vai só aos poucos descobrindo é a teia paralela de poderosos interesses econômicos envolvidos em torno da produção deste filme, e as pessoas perigosas e não confiáveis com as quais ela têm de lidar para chegar até o criador. Com isso ela sai de Londres para uma viagem a Tóquio. E depois do retorno a Londres parte para Moscou, onde tudo se esclarece.
Não é por acaso que Gibson situa sua história nestas três metrópoles do mundo globalizado. Londres com seu charme decadente, pátria-mãe do capitalismo, hoje transformada em um vigoroso centro de negócios e serviços, além de ser um influente centro de novas experimentações culturais, por sua herança também estratégica de sede de um antigo império. Ou seja, cidade cosmopolita por natureza, local por onde tudo passa, embora não seja ela mesma o local onde as decisões mais importantes sejam tomadas. De Tóquio, Gibson nos situa na, talvez, megalópole de maior contraste no mundo contemporâneo. A cidade mais populosa do planeta, com o uso cotidiano da vanguarda tecnológica, mesclada por uma tradição cultural antiga e muito arraigada nos costumes, ainda que superficialmente transpareça uma ‘ocidentalidade’ que impressiona à primeira-vista.
Finalmente, a escolha de Moscou é a mais feliz, pois representa em estado puro, o tal capitalismo selvagem, tão denunciado na boca de antigos membros de partidões comunistas e socialistas. Gibson é perspicaz em uma passagem, quando um de seus personagens diz sobre a cidade e sobre o que é esta nova Rússia pós-socialista: “Agora nós dizemos que tudo o que Lenin nos ensinou sobre o comunismo era falso, e tudo o que ele nos ensinou sobre capitalismo, verdadeiro.” Síntese brilhante e sombria, ao mesmo tempo. E o que dizer de Nova York? O centro do mundo se faz presente por sua ausência, embora quase todos os personagens dela tenha alguma referência particular. Como se fosse o local de quem se quer afastar, por causa do choque recente. Ainda que, em termos concretos, os personagens saibam não ser possível, por causa de sua liderança evidente no mundo contemporâneo.
Reconhecimento de Padrões é um livro tão inteligente quanto difícil para um leitor não acostumado com determinadas palavras e conceitos. Assim, diria que não é um livro para qualquer público. Uma pessoa não afeiçoada com alguns avanços tecnológicos ou com um estilo de vida específico, embora emergente, pode se desinteressar em prosseguir a leitura. Meio hermético, cifrado, lento, mas dentro do contexto da história que se quer contar e, claro, sem exageros. E esta aparente estranheza de vocábulos e conceitos não se dá tanto em eventuais inovações tecnológicas, embora exista também, afinal o livro se passa entre gente que lida com internet e suas derivações o tempo todo. Importa mais o detalhamento que Gibson faz de uma espécie de ‘sociologia do mercado global’, com suas marcas e logotipos, roupas, acessórios diversos de uso pessoal, comunicação instantânea via satélite, celular e internet, num verdadeiro e contundente painel da internacionalização inevitável da expansão capitalista, como já pregava há 150 anos um certo filósofo e economista alemão, radicado na Inglaterra. Mas a abordagem de Gibson não parte de uma ótica econômica, mas sim sociológica, mostrando como marcas, empresas, produtos de uso internacional, sinalizam a ascensão de uma cultura globalizada, ‘mundializada’, no sentido de gostos e comportamentos partilhados de modo semelhante e com uma mesma identidade por todo o planeta. O que configuraria uma das características mais presentes do mundo contemporâneo (ou pós-contemporâneo): uma sociedade civil internacional, de caráter transnacional, que aos poucos se desvincula das fronteiras nacionais, um dos bastiões de identidade política e cultural mais fortes dos séculos XIX e XX.
Em sua busca obsessiva pela fonte de criação do filme, Cayce Pollard se envolve com figurões pesados do capitalismo criminoso da caótica nova Rússia. Tem um alento sobre o paradeiro do seu pai que — é importante dizer —, era um agente do governo americano aposentado que havia experimentado o ápice de sua carreira nos tempos novecentistas da Guerra Fria, coisa que já soa como obsoleta aos nossos ouvidos.
O livro é longo em suas 400 e tantas páginas, a narrativa é linear, e não há grandes momentos de ação ou clímax, aos quais os leitores de ficção científica estão habituados. Mas Gibson tem uma prosa direta, com uma grande capacidade de explicar de maneira coerente assuntos de abordagem não muito fácil, além de revestir o livro de um painel, de um mosaico rico e instigante dos costumes e comportamentos de um segmento social internacionalizado e de contato cotidiano com tecnologia, pessoas que, aos poucos, vão se tornando mais comuns neste mundo atual.
E se o enredo em si não alcança picos de emoção, se fortalece em seu conjunto e pelos tipos de personagens elaborados, em especial a figura cativante de Cayce Pollard. Uma personagem ilustrativa dos tempos confusos que vivemos, ela também à procura de ‘reconhecimento de padrões’ em seu nível pessoal, para se situar neste mundo globalizado e de costumes cruzados, tão característico deste início de século XXI.

— Marcello Simão Branco


[1] A editora Aleph republicou Reconhecimento de Padrões em 2013 e a continuação Território Fantasma (Spoock Country), em 2013. É uma trilogia de temas contemporâneos que inclui ainda o romance Zero History (2010).

domingo, 11 de outubro de 2015

Rebelião dos Planetas (Queen of Outer Space, EUA, 1958)


Bagaceira de ficção científica da produtora “Allied Artists”, típica dos anos 50 do século passado, um período fértil para o cinema fantástico com histórias toscas e exageradas na fantasia. A direção é de Edward Bernds, de outras tranqueiras igualmente divertidas como “Vinte Milhões de Léguas a Marte” (World Without End, 1956) e “O Monstro de Mil Olhos” (1959). O roteiro é de Charles Beaumont, baseado na história “Queen of the Universe”, de Ben Hecht, e em seu currículo fazem parte preciosidades como “O Castelo Assombrado” (1963) e “A Orgia da Morte” (1964).
A história de “Rebelião dos Planetas” é ambientada em 1985, e mostra uma expedição enviada num foguete rumo a uma estação espacial em órbita da Terra. O grupo de astronautas é formado pelo Capitão Neal Patterson (Eric Fleming) e os Tenentes Mike Cruze (Dave Willock) e Larry Turner (Patrick Waltz), que estão levando o renomado cientista Prof. Konrad (Paul Birch). Porém, antes de chegarem ao destino, eles testemunham a destruição da estação espacial por um misterioso raio desintegrador, e seu foguete é impulsionado numa velocidade imensa com forte turbulência, aterrissando numa região de neve de um planeta desconhecido. Eles encontram similaridades com a Terra em termos de gravidade e ar respirável, e descobrem que estão em Vênus. Decidem abandonar a nave para explorar o local, chegando numa floresta, onde são surpreendidos e capturados como prisioneiros por um grupo de belas mulheres.
São levados para uma cidade chamada Kadir, governada por uma rainha tirana mascarada, Yllana (Laurie Mitchell). Ela assumiu o poder ao liderar uma revolta após uma terrível guerra contra um planeta inimigo, escravizando os homens sobreviventes mantendo-os numa colônia penal num dos satélites do planeta. Seu governo é totalitário e despertou o interesse por liberdade num motim realizado por um grupo de mulheres lideradas por Talleah (a húngara Zsa Zsa Gabor), e que se apaixonam pelos homens recém chegados da Terra, formando uma aliança com eles para derrubar a rainha do poder.
Com apenas 80 minutos de duração, “Rebelião dos Planetas” é mais um daqueles filmes exagerados de ficção científica bagaceira de meados do século XX, uma aventura espacial que desperta um sentimento de nostalgia daquelas histórias ingênuas que investiam mais em situações inverossímeis do que na especulação científica. É um filme divertido justamente por suas características bagaceiras e não por alguma tentativa de contar uma história séria, fato que não acontece.
É revelado que a ambientação do filme é no futurístico ano de 1985 para a época de produção e que já é um passado distante para nossos tempos de início de novo século, e que em 1957 foi o ano do lançamento do primeiro satélite ao espaço sideral, seguido pelo início da montagem em 1963 da estação espacial em órbita da Terra.
Tem todos aqueles clichês conhecidos com um foguete tosco controlado por painéis enormes com luzes piscando, fitas de gravação, mostradores diversos, botões e alavancas de acionamento. Tem até uma espécie de televisão toda estilosa acionada por um controle remoto, que mostra a constante movimentação de mulheres na manutenção de uma poderosa arma de destruição, geradora de raios desintegradores.
Para aproveitamento de recursos já existentes e contenção de despesas na produção, foram reaproveitadas várias cenas de “Vinte Milhões de Léguas a Marte”. Como o foguete viajando com turbulência em alta velocidade, a aterrissagem na neve de Vênus e o ataque de uma aranha gigante de pelúcia e borracha, estática e tosca ao extremo, contra um dos membros da expedição de terráqueos, no interior de uma caverna, numa cena divertida de tão bagaceira. O uniforme dos astronautas é similar ao utilizado no clássico “Planeta Proibido” (Forbidden Planet, 1956). E a cena com a plataforma de lançamento do foguete é uma reprodução real de um teste americano em 1952.
 “Rebelião dos Planetas” nos remete para outros filmes com ideias similares como “Mulheres-Gato da Lua” (Cat-Women of the Moon, 1953), “Missile to the Moon” (1958), que é conhecido no Brasil pelos títulos “Terríveis Monstros da Lua” e “Míssil Para a Lua”, e o já citado “Vinte Milhões de Léguas a Marte”. Onde é clara a intenção dos realizadores em explorar a sociedade de Vênus somente com belas mulheres sensuais portando armas, vestindo saias e mostrando suas pernas torneadas, além dos rostos sempre bem maquiados e com os cabelos penteados e estilosos. E também não poderiam faltar os cenários exageradamente coloridos e com tentativas de aspectos futuristas, com destaque para o “Desintegrador Beta”, uma arma capaz de destruir planetas. Além dos vários e patéticos relacionamentos amorosos entre os homens da Terra e as mulheres de Vênus, com diálogos ingênuos e piadas constantes, reservadas principalmente para o galanteador Tenente Larry Turner.         
Curiosamente, somente após quinze longos minutos é que aparecem os letreiros iniciais com o nome do filme e apresentação do elenco e equipe de produção. 
(Juvenatrix – 11/10/15)

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Por universos nunca dantes navegados

Por universos nunca dantes navegados, Luís Filipe Silva & Jorge Candeias, orgs. 262 páginas. Edição dos autores, Lisboa, 2007.

Lançamento aguardado com expectativa no fandom lusófono, desde o princípio organizado através da internet, com amplo chamamento dos dois lados do Atlântico, calçado na credibilidade de seus organizadores, Jorge Candeias, editor da revista eletrônica E-Nigma, e Luís Felipe Silva, veterano no fandom português, autor premiado e responsável pelo site de referência Tecnofantasia.
Depois de um longo período reunindo e avaliando os mais de 70 trabalhos recebidos, os editores escolheram 14 obras, sendo sete de autores portugueses e sete de brasileiros. Não parece ter sido coincidência que a antologia tenha sido assim dividida, provavelmente foi parte do projeto desde o princípio.
O volume apresenta uma característica muito positiva: a qualidade dos contos é bastante homogênea. Não há nenhum conto demasiadamente mau, embora nenhum deles se destaque.
Apresentarei, a princípio, uma rápida sinopse dos trabalhos portugueses que formam o volume, detendo-me a seguir nos trabalhos brasileiros. A ordem de entrada dos contos é a mesma aqui representada, sendo que os contos brasileiros estão intercalados aos portugueses, também na mesma ordem.
Contos portugueses:
“Resíduos sólidos urbanos”, de João Ventura: numa sociedade futura, as pessoas derrotadas são simplesmente jogadas no lixo. Mas há regras. Somente os realmente derrotados podem ser descartados, e instala-se uma crise política quando uma família resolve desfazer-se, ilegalmente, de um vovozinho ainda operacional.
“Fome de pássaro”, de Yves Robert: jovem irrefreável apaixona-se por garota desconhecida que parece ter algo a ver com a aparição fantasmagórica que flutua sobre os telhados, comandando uma revoada de pássaros.
“Littleton”, de Jorge Candeias: turista entra numa simulação virtual da época do faroeste, na qual representa um ladrão de bancos. Porém, as coisas não caminham conforme o roteiro: estranhos equipados com armas de verdade causam pânico entre os avatares do jogo, que dizem ao turista que eles são perigosos criminosos fugitivos refugiados na simulação, e que ele terá de se aguentar enquanto não se resolve um problema técnico que, durante um certo tempo, impede que ele saia do jogo em segurança.
“O pico de Hubert”, de Telmo Marçal: os destinos do assassino perfeito e da acólita de uma seita integralista cruzam-se no último refúgio da civilização depois da queda, não por acaso, uma comunidade corrupta e violenta, dominada por um chefão do crime.
“Assassinos de sobreiros”, de João Ventura: grupo paramilitar extremamente bem equipado invade uma empresa de pesquisas genéticas para assassinar árvores mutantes, mas tem de enfrentar também a equipe de segurança da empresa.
“O nevoeiro que desvendou realidades”, Sofia Vilarigues: numa ilha turística mora uma velha senhora que é uma das últimas falantes de uma língua antiga. Com ela vive seu neto, que aprende os rudimentos dessa língua, que permite dialogar com a natureza. Uma neblina misteriosa leva o jovem a se perder na mata, enquanto uma família num jeep se acidenta em algum lugar selvagem da ilha.
“Deus das Gaivotas”, Antonio e Jorge Candeias: administrador de um pesqueiro passa os dias de baixa temporada em devaneios eróticos com gaivotas. Mas essa é apenas uma história dentro de outra, na qual o autor irritado com a teimosia de seu personagem, o materializa para uma discussão cara a cara.
Contos brasileiros:
“Oberon”, de Walmir Alcântara: garotinha e sua jovem mãe separada de um marido violento, mudam-se para um apartamento de um prédio antigo. As duas são influenciadas por uma presença misteriosa que habita um dos apartamentos superiores e apenas sua vizinha, uma matrona que perdeu a filha, poderá ajudá-las a entender e aceitar seu destino. O conto é doce e simpático, mas soa como algo já lido, refletindo nitidamente as influências do autor. O final feliz arremata o conto de forma previsível.
“Para tudo se acabar na quarta-feira”, de Octavio Aragão: episódio no universo Intempol, criado pelo autor. Desta vez, os agentes da polícia do tempo estão às voltas com um grupo de traficantes do Rio de Janeiro durante o carnaval. O líder da quadrilha – plantado desde criança nessa linha temporal por uma concorrente da Intempol, com o objetivo de desenvolver agressividade e falta de caráter –, depois de um entrevero com outra gangue, vê a namorada, destaque de escola de samba, ser baleada durante o desfile. Sua busca por vingança vai revelar até onde a estratégia de treinamento deu certo. As cenas de ação são  descritas com a crueza costumeira do autor, porém a história em si não chega a parte alguma. Os personagens são todos desprezíveis e não favorecem identificação com o leitor. A história não chega a ter uma conclusão, parecendo ser introdução a uma obra maior. Há uma grande quantidade de referências e citações ao universo intempoliano, que dificulta ainda mais a interpretação dos leitores não iniciados nesse ambiente.
“Digital Éden”, de Gabriel Boz: jovem entrega-se ao vício depois que a consciência de sua namorada desapareceu num computador ilegal conhecido como Digital Éden. Acusado pela polícia de fazer parte dos contraventores e ser responsável pela morte dela, o jovem passa o tempo tomando de drogas pesadas. Sua única esperança é, um dia, poder seguir sua amada. História de desfecho pessimista que não logra ser tão dramática: o personagem inexpressivo não atrai a simpatia do leitor.
“Disse a profetisa”, Carlos Orsi.
Num futuro decadente, uma sociedade teocrática cuja religião está apoiada no corpo congelado de uma viajante do passado, dois jovens irmãos conseguem manter diálogo com a consciência dessa viajante, por meio de um dispositivo eletrônico bem a propósito, que passou centenas de anos sem ter sido descoberto. A conversa abala as bases da religião oficial e acaba por derrubá-la, instalando outra no lugar. Um conto que poderia conter muitos significados, mas que não vai muito longe porque teve um tratamento demasiadamente superficial.
“A irmandade”, de Carlos Patati: várias pessoas têm seu destino modificado pela aquisição, geralmente em condições misteriosas, de um medalhão que lhes dá a capacidade de escutar vozes do presente, passado e futuro. Um a delas usa a capacidade para impedir crimes, antecipando as ações dos criminosos. Mas as coisas não saem de acordo quando ela segue um animado casalzinho numa favela, para impedir que aquele jovem traficante perpetre a maldade que pretende. Conto interessante com boa proposta temática e uma questão moral a ser interpretada pelo leitor. Entretanto, carece de uma estrutura que permita ao leitor memorizar os personagens e compreender o que está acontecendo, principalmente na primeira metade do conto que, de qualquer forma, é curto demais para abrigar a discussão que propõe.
“Ponte frágil sobre o nada”, de Maria Helena Bandeira: mulher vive com o filho cego numa sociedade teocrática que aboliu a linguagem oral (exceto entre os cegos). Repentinamente, a realidade dessa mãe começa a se confundir com outra, na qual homens falantes tentam convencê-la que toda a sua vida é uma ilusão criada pelos sacerdotes. A consciência da mulher salta de uma realidade para outra, sem que ela consiga decidir qual delas é a verdadeira, ganhando contornos ainda mais dramáticos por conta do destino da criança cega, que passa a ter a sua existência questionada. A introdução do conto é interessante, mas  tem desenvolvimento previsível e um desfecho inconclusivo.
“Xochiquetzal  em Cuzco: Uma princesa asteca no reino dos incas”, de Gerson Lodi-Ribeiro, assinando como Carla Cristina Pereira: sequência às narrativas da princesa asteca Xochiquetzal, casada com o navegante português Vasco da Gama numa realidade em que as civilizações nativo-americanos não foram dizimados pelos espanhóis e tornaram-se vassalas de um grande império intercontinental sob o domínio de Portugal. Depois de arrasar a cidade de Calicute, a esquadra de Vasco da Gama parte em direção à América para arrasar outras paragens. Invencível e cruel, a frota lusitana só conhece um meio de negociação: o bombardeio de saturação. Assim, depois de descobrir um novo caminho entre o Pacífico e o Atlântico, ao sul da África, e de batalhar rapidamente contra uma frota espanhola, Vasco e seus almirantes vão à Cuzco bombardear as forças de um novo imperador que, acredita-se, não pretende manter o império inca alinhado à Portugal. A história não tem um estilo narrativo coerente. As vezes, assume o formato de romance, com diálogos voluptuosos, noutras adota o formato de relato de viagem, o que é mais natural uma vez que trata-se de um testemunhal. Porém, a relatora fictícia demonstra um distanciamento displicente dos fatos, como no relato da façanha de dobrar o Cabo das Tormentas, por exemplo. Num momento, com a frota ainda ao largo das ruínas fumegantes de Calicute, os almirantes debatem os grandes riscos de se aventurarem através de um caminho desconhecido que já tirou a vida de muitos navegantes audazes. No momento seguinte, a frota já está no Atlântico, sem maiores delongas. Como personagem, a relatora é praticamente imaterial, sem qualquer função dramática. Lodi-Ribeiro propõe que os atos fictícios de Vasco da Gama seriam mais honrosos que os de Pizarro na história real pois, apesar de igualmente cruéis e violentíssimos, não assumem o caráter genocida que caracterizou as ações civilizatórias sob responsabilidade dos espanhóis. Mesmo não sendo exatamente uma ficção longa, é a maior peça da antologia, com 38 páginas. Mas parece bem mais, pois sua legibilidade é cansativa e incômoda, por conta da grande volume de palavras ilegíveis retiradas das línguas nativo-americanas, tão invasivas que distanciam o leitor. Pelo menos no meu caso, tive de desistir de ler esses termos exóticos para conseguir chegar ao final do conto.
Como é possível perceber, os autores não se incomodaram em seguir a sugestão implícita no título Por universos nunca dantes navegados (que pode até ter sido criado depois de montado o volume): vários contos são sequências de histórias já vistas em outras antologias e mesmo os mais originais entre eles têm um certo ar de já visto. A promessa do título não é, portanto, cumprida. Mas isso não invalida o meritório esforço dos editores que, movidos tão somente pelo prazer da realização, viabilizaram mais uma das raras antologias lusófonas editadas em Portugal, belamente produzida pela lulu.com, um serviço internacional de tiragens por demanda.
Cesar Silva

O Monstro da Bomba H (The H-Man, Japão, 1958)


Outra pérola do cinema fantástico bagaceiro dos anos 50 do século passado, numa produção do estúdio japonês “Toho” e parceria entre o cineasta Ishiro Honda e o diretor de efeitos especiais Eiji Tsuburaya. “O Monstro da Bomba H” explora os temas de “homem transformado em monstro” e a paranoia dos efeitos radioativos desconhecidos e incontroláveis da energia atômica testada para a destruição com bombas no conturbado período da guerra fria após o término da Segunda Guerra Mundial.
A polícia de Tóquio está investigando as ações de criminosos na cidade, e após perseguição contra o ladrão de jóias Misaki (Hisaya Itô), encontram apenas suas roupas no chão. Atrás de informações e respostas, o Inspetor Tominaga (Akihiko Hirata) procura a namorada do gangster, a cantora de boate Chikako Arai (Yumi Shirakawa). Nesse momento, surge o Dr. Masada (Kenji Sahara), um estudioso dos efeitos da radiação nas pessoas. Ele sugere aos policiais a conexão entre as misteriosas mortes de pessoas derretidas e o desaparecimento da tripulação de um navio no Oceano Pacífico, numa provável relação com os efeitos da explosão de bombas atômicas na região, que poderiam ter criado um monstro mutante gosmento, uma espécie de líquido azul que em contato com as vítimas, fazem-nas borbulharem e derreterem. Após extensa investigação e muitas mortes violentas, a polícia organiza uma ação coordenada para incendiar os esgotos da cidade, local de refúgio das criaturas gosmentas, na tentativa de eliminar a ameaça.
O grande destaque dessa preciosidade japonesa certamente fica por conta dos ataques violentos das criaturas radioativas derretendo suas vítimas, como líquidos vivos com atividade mental humana (ou “humanos líquidos”). Num excelente trabalho da equipe de efeitos especiais dirigida pelo mestre Tsuburaya, que impressionou as plateias da época e que continua interessante e convincente até hoje, nesses tempos modernos de computação gráfica e excesso de artificialidade.
Assim como em “Matango, a Ilha da Morte” (1963), que também é da dupla Ishiro Honda e Eiji Tsuburaya, o roteiro procurou explorar outros assuntos em paralelo com a ideia central dos monstros radioativos. Em “Matango”, temos uma interessante crítica social ao comportamento humano em momentos de crise, com um grupo de náufragos sobreviventes isolados numa ilha competindo entre si pela sobrevivência, ao invés de cooperação para o bem comum. Já em “O Monstro da Bomba H”, temos uma história de investigação policial sobre as atividades de criminosos e traficantes de drogas na capital japonesa. Porém, o problema é que infelizmente nesse caso, a narrativa tornou-se muito arrastada e entediante na condução dos policiais tentando localizar os bandidos, em meio ao mistério envolvendo o surgimento de vítimas derretidas. E o tédio aumentou significativamente com as várias cenas desnecessárias de cantorias numa boate, as quais deveriam ser trocadas por mais ataques sangrentos dos monstros viscosos. Ou por mais especulações científicas bagaceiras dos efeitos destrutivos da bomba de hidrogênio, assunto que é a maior razão da existência do filme (daí o título). Ou seja, deveríamos ter mais história de monstros e menos história de detetive.      
Curiosamente, percebemos influências do anterior “O Estranho de Um Mundo Perdido” (1956), produção inglesa da “Hammer” com um monstro gosmento imenso que se alimenta de radiação e derrete suas vítimas. E “O Monstro da Bomba H” foi lançado pouco antes da cultuada produção americana “A Bolha” (The Blob), com Steve McQueen, que também tem ideias similares na concepção de um monstro espacial amorfo e gosmento, formado por um líquido pegajoso. Naquele período fértil dos anos 50 para o cinema fantástico bagaceiro, temos inúmeras referências e relações entre filmes de países diferentes abordando a mesma ideia básica de monstros gosmentos radioativos que ameaçariam ainda mais a já instável segurança da humanidade por causa da guerra fria.
(Juvenatrix – 05/10/15)