Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro, Alfredo Suppia. 400 páginas. São Paulo: Devir Livraria, Coleção Enciclopédia Galáctica, 2013.
Há certos
livros que de saída chamam a atenção pelo tema. Pois este é o caso de Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no
Cinema Brasileiro. O assunto, à primeira vista, pode causar estranheza a um
leitor desavisado ou não familiarizado com a ficção científica, mesmo entre
aqueles da área de cinema. Mas mais importante do que isso é que este trabalho
– fruto da tese de doutorado do autor, defendida em 2007 – desmistifica lugares
comuns e abre a possibilidade de um novo e instigante campo de pesquisa. Para o
cinema brasileiro, para a ficção científica, e para os estudos culturais
brasileiros.
Alfredo Suppia,
que é professor do Instituto de Artes da Unicamp, inicialmente apresenta
algumas considerações de ordem teórica, de como compreende o que caracterizaria
a FC, baseando-se nos conceitos de intertextualidade e do novum – este
desenvolvido pelo acadêmico croata Darko Suvin. Grosso modo, o primeiro relacionado
às apropriações e intersecções possíveis entre diferentes assuntos dentro de um
mesmo gênero temático de histórias, ou a elas associadas. Já o segundo se
refere ao elemento decisivo que torna possível caracterizar uma história como
sendo de FC, que a diferenciaria do mundo tal qual lidamos e conhecemos. Tem
equivalência na ideia do estranhamento cognitivo, mas talvez seja mais incisiva
para pontuar o que pertence ou não ao campo da FC. Estas considerações serão
importantes ao longo dos capítulos, principalmente ao analisar ênfases
diferentes dos filmes brasileiros vinculados ao gênero.
Depois de apresentar
um breve histórico sobre a trajetória da literatura brasileira de FC – que
também servirá de substrato para discussões posteriores – Suppia parte para o
núcleo duro de sua pesquisa. Nos capítulos três e quatro ele expõe uma extensa
e detalhada resenha de dezenas de filmes brasileiros de FC, de longa e curta
metragem. Realiza esta façanha de forma cronológica. Primeiro num capítulo
sobre os longas-metragens e depois noutro com os curtas-metragens, mostrando
com riqueza de detalhes o desenvolvimento do cinema de FC brasileiro, suas
fases, características, padrões recorrentes, virtudes e limites.
Assim, são
comentados 95 filmes longa-metragem e 63 curtas-metragens. De 1908 a 2013,
quando foi publicado o livro. Praticamente um século de análise! Dentro deste
longo percurso foi identificado alguns temas mais recorrentes em determinada
época, e outros que tem se tornado padrão, se estabelecendo como um tema tradicional
do cinema de FC do país. Numa primeira vertente, filmes que satirizam, por meio
de elementos ou iconografia, aspectos da sociedade brasileira. Com o passar das
décadas esta tendência foi se enfraquecendo, sendo especialmente presente até,
pelo menos o final da década de 1950. A esta tendência emergiu outra que
relaciona a FC com o humor e a paródia, seja de temas da sociedade, seja do
próprio gênero em si, com adaptações que se inspiraram em clássicos do gênero,
característica presente principalmente nos filmes do grupo Os Trapalhões,
entre os anos 1960 e 1980. Filmes como, por exemplo, Os Trapalhões no
Planalto dos Macacos (1976) e Os Trapalhões na Guerra dos Planetas
(1978). A intenção destes filmes, fora o óbvio entretenimento e grande apelo
popular, seria o de estabelecer uma reflexão do quanto somos subdesenvolvidos,
tanto em termos sócio-econômicos, como em termos tecnológicos – da ciência e do
cinema em si. Outros filmes marcantes se inserem nesta perspectiva, ainda que
com nuances um pouco mais matizadas, como Carnaval em Marte (1954), O
Homem do Sputnik (1959) e Os Cosmonautas (1962), que partem do
modelo consagrado da chanchada para inserir temas de ficção científica.
Contudo, a
perspectiva crítica mais interessante do cinema brasileiro de FC tem sido a
abordagem dos temas ambientais, o que faz todo o sentido num país de dimensões
continentais, em processo de desenvolvimento econômico e com a maior floresta
tropical do planeta e a maior biodiversidade. Como conciliar o desafio de
construir uma nação material e socialmente desenvolvida com esta base ecossistêmica?
Pergunta que tem desafiado gerações de ambientalistas, economistas, políticos e
formuladores de políticas públicas recebeu diversas interpretações, ao longo da
trajetória do nosso cinema. Filmes representativos nesta seara são Quem é
Beta? (1973), Parada 88: Limite de Alerta (1978), Abrigo Nuclear
(1981), Por Incrível que Pareça (1986), Oceano Atlantis (1993) e Acquaria
(2004).
Nos últimos
anos têm surgido alguns filmes estrelados por atores conhecidos que, mesmo não
se assumindo como FC, pertencem ao gênero e podem servir, se esta tendência se
mantiver por alguns anos, para um processo de popularização do gênero entre
público e crítica. Exemplos como Redentor (2004), A Máquina
(2005), Nosso Lar (2010) – este no subgênero espírita, de grande apelo –,
O Homem do Futuro (2011) e o já citado Bacurau (2019).
Num primeiro
momento ler sobre centenas de filmes pode parecer um pouco cansativo, afinal
estes dois capítulos vão da página 29 até a página 236, mas creio que num
trabalho pioneiro como este é mais que justificado. Antes de mais nada, vale registrar
aqui o volume impressionante de informações que ele levanta – com o mérito
adicional de entrevistar vários dos diretores dos filmes – mostrando ser um
pesquisador dedicado e apaixonado. Mas a leitura das quase duzentas páginas
destes dois capítulos é das mais divertidas. Eu, pelo menos, fiquei com muita
vontade em ver filmes absolutamente raros e obscuros, e ao mesmo tempo,
frustrado porque a imensa maioria deles não se encontra à disposição, seja na
internet e muito menos no mercado de DVDs ou blu-rays. Ainda mais do que
na literatura brasileira de FC, há um campo enorme a ser descoberto por parte
de fãs, críticos e público interessado sobre o que já foi feito (e se faz) em
termos de cinema do gênero.
Mas se estes
dois capítulos em si já seriam uma contribuição mais do que suficiente para
tornar o livro uma referência tanto para o cinema quanto para a FC no Brasil,
Suppia parte para uma discussão mais analítica sobre porque o cinema brasileiro
de FC se desenvolveu destas formas, suas possíveis ligações com o realismo
mágico e das dificuldades de reconhecimento que a FC encontra tanto no cinema,
como na literatura para se tornar uma forma de expressão artística vista como
relevante por si enquanto criação, e também enquanto caminhos para refletir
sobre problemas da realidade brasileira.
Inicialmente
ele procura relativizar a noção de que o cinema brasileiro – e o de FC em
particular – deve ter como parâmetro de comparação e qualidade apenas
Hollywood. Assim, compara a produção brasileira como a de países com condição
social e tecnológica semelhante, como o México, Argentina e o Leste Europeu.
Novamente por meio da resenha de alguns filmes importantes de cada país, ele
mostra que a questão geográfica nem sempre é a mais adequada para se
identificar similaridade entre a produção dos países, mas sim suas conexões e
afinidades culturais. Neste sentido, o cinema mexicano se assemelha mais ao
brasileiro – principalmente no que diz respeito a não se levar muito a sério e
de se reconhecer como tecnologicamente inferior –, do que ao do seu vizinho
rico do norte, e o argentino ao da Europa Ocidental, em seu caráter mais sério
e socialmente crítico.
O cinema
brasileiro de FC tem dificuldades de afirmação e reconhecimento – especialmente
no formato longa-metragem –, porque ainda reina um senso comum de que estamos
tecnologicamente atrasados com relação aos EUA, e o gênero ser considerado como
de pouca relevância num país com tantos problemas históricos e sociais. O livro
mostra de forma convincente que o primeiro argumento não se sustenta. Se é fato
de que não há condições de se produzir no Brasil filmes com efeitos visuais
como os de Hollywood – apesar de novas tecnologias digitais terem reduzido esta
distância nos últimos anos –, por outro, isto não é tão importante assim, pois
é possível contar boas histórias concentrando-se mais nos roteiros e
interpretações. Ou seja, no aspecto mais dramático e de conteúdo do cinema.
Tomando como
inspiração o artigo clássico de Fausto Cunha, “FC no Brasil, um Planeta Quase
Desabitado”[1], Suppia
nomeia o cinema brasileiro como de “atmosfera rarefeita”, mas não invisível
dada a quantidade nada desprezível, resistente e contínua da prática de
produções cinematográficas brasileiras de FC, mesmo que boa parte delas, em especial
nos longas-metragens, tenham sido realizados sem a consciência ou intenção de
serem identificados com o gênero. O fato é que o cinema enfrentaria uma
dificuldade ainda maior do que a literatura de ser reconhecido e praticado,
dado os custos altos exigidos pela arte cinematográfica, mesmo aquela realizada
com orçamentos modestos.
Atmosfera Rarefeita, publicado em 2013,
é uma obra de referência de qualidade inegável e coloca-se no mesmo patamar que
Ficção Científica, Fantasia e Horror no
Brasil, 1875-1950 (2003), de Roberto de Sousa Causo, tem para os estudos históricos
e pesquisas sobre a literatura de FC brasileira.
O livro é
ainda completado por dezesseis páginas coloridas de rico e raro material visual
de produções brasileiras de FC, mas ficou incompleto pela ausência de uma
listagem dos filmes citados e analisados, além de um índice remissivo, que
seria de grande utilidade numa obra desenvolvida com tantas minúcias de
informações, especialmente sobre filmes e realizadores.
– Marcello Simão Branco
[1] Publicado
como capítulo extra do livro No Mundo da
Ficção Científica (Science Fiction
Reader´s Guide), de L. David Allen. Summus Editorial, 1975.
Obrigado pela resenha! A sugestão de uma listagem dos filmes citados e analisados, além de um índice remissivo, é muito bem-vinda. Quem sabe a editora lança uma segunda edição, revista e ampliada, com esses incrementos? Abs!
ResponderExcluirResenha muito boa. O livro e a pesquisa de Alfredo Suppia merecem todos os elogios, e são obrigatórios para quem pesquisa como a FC é recebida e produzida no Brasil. Obrigado também pela parte que me toca, Marcello! Abraços a todos.
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