sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Atmosfera Rarefeita


Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro, Alfredo Suppia. 400 páginas. São Paulo: Devir Livraria, Coleção Enciclopédia Galáctica, 2013.


Há certos livros que de saída chamam a atenção pelo tema. Pois este é o caso de Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro. O assunto, à primeira vista, pode causar estranheza a um leitor desavisado ou não familiarizado com a ficção científica, mesmo entre aqueles da área de cinema. Mas mais importante do que isso é que este trabalho – fruto da tese de doutorado do autor, defendida em 2007 – desmistifica lugares comuns e abre a possibilidade de um novo e instigante campo de pesquisa. Para o cinema brasileiro, para a ficção científica, e para os estudos culturais brasileiros.
Alfredo Suppia, que é professor do Instituto de Artes da Unicamp, inicialmente apresenta algumas considerações de ordem teórica, de como compreende o que caracterizaria a FC, baseando-se nos conceitos de intertextualidade e do novum – este desenvolvido pelo acadêmico croata Darko Suvin. Grosso modo, o primeiro relacionado às apropriações e intersecções possíveis entre diferentes assuntos dentro de um mesmo gênero temático de histórias, ou a elas associadas. Já o segundo se refere ao elemento decisivo que torna possível caracterizar uma história como sendo de FC, que a diferenciaria do mundo tal qual lidamos e conhecemos. Tem equivalência na ideia do estranhamento cognitivo, mas talvez seja mais incisiva para pontuar o que pertence ou não ao campo da FC. Estas considerações serão importantes ao longo dos capítulos, principalmente ao analisar ênfases diferentes dos filmes brasileiros vinculados ao gênero.
Depois de apresentar um breve histórico sobre a trajetória da literatura brasileira de FC – que também servirá de substrato para discussões posteriores – Suppia parte para o núcleo duro de sua pesquisa. Nos capítulos três e quatro ele expõe uma extensa e detalhada resenha de dezenas de filmes brasileiros de FC, de longa e curta metragem. Realiza esta façanha de forma cronológica. Primeiro num capítulo sobre os longas-metragens e depois noutro com os curtas-metragens, mostrando com riqueza de detalhes o desenvolvimento do cinema de FC brasileiro, suas fases, características, padrões recorrentes, virtudes e limites.
Assim, são comentados 95 filmes longa-metragem e 63 curtas-metragens. De 1908 a 2013, quando foi publicado o livro. Praticamente um século de análise! Dentro deste longo percurso foi identificado alguns temas mais recorrentes em determinada época, e outros que tem se tornado padrão, se estabelecendo como um tema tradicional do cinema de FC do país. Numa primeira vertente, filmes que satirizam, por meio de elementos ou iconografia, aspectos da sociedade brasileira. Com o passar das décadas esta tendência foi se enfraquecendo, sendo especialmente presente até, pelo menos o final da década de 1950. A esta tendência emergiu outra que relaciona a FC com o humor e a paródia, seja de temas da sociedade, seja do próprio gênero em si, com adaptações que se inspiraram em clássicos do gênero, característica presente principalmente nos filmes do grupo Os Trapalhões, entre os anos 1960 e 1980. Filmes como, por exemplo, Os Trapalhões no Planalto dos Macacos (1976) e Os Trapalhões na Guerra dos Planetas (1978). A intenção destes filmes, fora o óbvio entretenimento e grande apelo popular, seria o de estabelecer uma reflexão do quanto somos subdesenvolvidos, tanto em termos sócio-econômicos, como em termos tecnológicos – da ciência e do cinema em si. Outros filmes marcantes se inserem nesta perspectiva, ainda que com nuances um pouco mais matizadas, como Carnaval em Marte (1954), O Homem do Sputnik (1959) e Os Cosmonautas (1962), que partem do modelo consagrado da chanchada para inserir temas de ficção científica.
 A partir dos anos 1960 uma nova perspectiva começa a ser vislumbrada, a de filmes mais centrados em temas sociais e políticos, como O Quinto Poder (1962), O Homem que Comprou o Mundo (1968), Brasil Ano 2000 (1969), entre alguns outros poucos que não firmaram uma tendência para as décadas posteriores, embora não tenham desaparecido completamente, como pode ser visto em filmes como O Efeito Ilha (1994) e nos mais recentes Branco Sai, Preto Fica (2015) e Bacurau (2019).
Contudo, a perspectiva crítica mais interessante do cinema brasileiro de FC tem sido a abordagem dos temas ambientais, o que faz todo o sentido num país de dimensões continentais, em processo de desenvolvimento econômico e com a maior floresta tropical do planeta e a maior biodiversidade. Como conciliar o desafio de construir uma nação material e socialmente desenvolvida com esta base ecossistêmica? Pergunta que tem desafiado gerações de ambientalistas, economistas, políticos e formuladores de políticas públicas recebeu diversas interpretações, ao longo da trajetória do nosso cinema. Filmes representativos nesta seara são Quem é Beta? (1973), Parada 88: Limite de Alerta (1978), Abrigo Nuclear (1981), Por Incrível que Pareça (1986), Oceano Atlantis (1993) e Acquaria (2004).
Nos últimos anos têm surgido alguns filmes estrelados por atores conhecidos que, mesmo não se assumindo como FC, pertencem ao gênero e podem servir, se esta tendência se mantiver por alguns anos, para um processo de popularização do gênero entre público e crítica. Exemplos como Redentor (2004), A Máquina (2005), Nosso Lar (2010) – este no subgênero espírita, de grande apelo –, O Homem do Futuro (2011) e o já citado Bacurau (2019).
Num primeiro momento ler sobre centenas de filmes pode parecer um pouco cansativo, afinal estes dois capítulos vão da página 29 até a página 236, mas creio que num trabalho pioneiro como este é mais que justificado. Antes de mais nada, vale registrar aqui o volume impressionante de informações que ele levanta – com o mérito adicional de entrevistar vários dos diretores dos filmes – mostrando ser um pesquisador dedicado e apaixonado. Mas a leitura das quase duzentas páginas destes dois capítulos é das mais divertidas. Eu, pelo menos, fiquei com muita vontade em ver filmes absolutamente raros e obscuros, e ao mesmo tempo, frustrado porque a imensa maioria deles não se encontra à disposição, seja na internet e muito menos no mercado de DVDs ou blu-rays. Ainda mais do que na literatura brasileira de FC, há um campo enorme a ser descoberto por parte de fãs, críticos e público interessado sobre o que já foi feito (e se faz) em termos de cinema do gênero.
Mas se estes dois capítulos em si já seriam uma contribuição mais do que suficiente para tornar o livro uma referência tanto para o cinema quanto para a FC no Brasil, Suppia parte para uma discussão mais analítica sobre porque o cinema brasileiro de FC se desenvolveu destas formas, suas possíveis ligações com o realismo mágico e das dificuldades de reconhecimento que a FC encontra tanto no cinema, como na literatura para se tornar uma forma de expressão artística vista como relevante por si enquanto criação, e também enquanto caminhos para refletir sobre problemas da realidade brasileira.
Inicialmente ele procura relativizar a noção de que o cinema brasileiro – e o de FC em particular – deve ter como parâmetro de comparação e qualidade apenas Hollywood. Assim, compara a produção brasileira como a de países com condição social e tecnológica semelhante, como o México, Argentina e o Leste Europeu. Novamente por meio da resenha de alguns filmes importantes de cada país, ele mostra que a questão geográfica nem sempre é a mais adequada para se identificar similaridade entre a produção dos países, mas sim suas conexões e afinidades culturais. Neste sentido, o cinema mexicano se assemelha mais ao brasileiro – principalmente no que diz respeito a não se levar muito a sério e de se reconhecer como tecnologicamente inferior –, do que ao do seu vizinho rico do norte, e o argentino ao da Europa Ocidental, em seu caráter mais sério e socialmente crítico.
O cinema brasileiro de FC tem dificuldades de afirmação e reconhecimento – especialmente no formato longa-metragem –, porque ainda reina um senso comum de que estamos tecnologicamente atrasados com relação aos EUA, e o gênero ser considerado como de pouca relevância num país com tantos problemas históricos e sociais. O livro mostra de forma convincente que o primeiro argumento não se sustenta. Se é fato de que não há condições de se produzir no Brasil filmes com efeitos visuais como os de Hollywood – apesar de novas tecnologias digitais terem reduzido esta distância nos últimos anos –, por outro, isto não é tão importante assim, pois é possível contar boas histórias concentrando-se mais nos roteiros e interpretações. Ou seja, no aspecto mais dramático e de conteúdo do cinema.
Tomando como inspiração o artigo clássico de Fausto Cunha, “FC no Brasil, um Planeta Quase Desabitado”[1], Suppia nomeia o cinema brasileiro como de “atmosfera rarefeita”, mas não invisível dada a quantidade nada desprezível, resistente e contínua da prática de produções cinematográficas brasileiras de FC, mesmo que boa parte delas, em especial nos longas-metragens, tenham sido realizados sem a consciência ou intenção de serem identificados com o gênero. O fato é que o cinema enfrentaria uma dificuldade ainda maior do que a literatura de ser reconhecido e praticado, dado os custos altos exigidos pela arte cinematográfica, mesmo aquela realizada com orçamentos modestos.
Atmosfera Rarefeita, publicado em 2013, é uma obra de referência de qualidade inegável e coloca-se no mesmo patamar que Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil, 1875-1950 (2003), de Roberto de Sousa Causo, tem para os estudos históricos e pesquisas sobre a literatura de FC brasileira.
O livro é ainda completado por dezesseis páginas coloridas de rico e raro material visual de produções brasileiras de FC, mas ficou incompleto pela ausência de uma listagem dos filmes citados e analisados, além de um índice remissivo, que seria de grande utilidade numa obra desenvolvida com tantas minúcias de informações, especialmente sobre filmes e realizadores.

– Marcello Simão Branco


[1] Publicado como capítulo extra do livro No Mundo da Ficção Científica (Science Fiction Reader´s Guide), de L. David Allen. Summus Editorial, 1975.

2 comentários:

  1. Obrigado pela resenha! A sugestão de uma listagem dos filmes citados e analisados, além de um índice remissivo, é muito bem-vinda. Quem sabe a editora lança uma segunda edição, revista e ampliada, com esses incrementos? Abs!

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  2. Resenha muito boa. O livro e a pesquisa de Alfredo Suppia merecem todos os elogios, e são obrigatórios para quem pesquisa como a FC é recebida e produzida no Brasil. Obrigado também pela parte que me toca, Marcello! Abraços a todos.

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