Ainda que seja conceito comum entre os críticos da literatura brasileira que ela seja uma arte estagnada, recorrente em seus temas, quase sempre ligados à marginália, à pobreza e à violência, repetindo personagens e tramas que tornam a leitura previsível – e isso pode ser mesmo verdade – sempre houve uma corrente que fluiu em outras direções. De Machado de Assis a Guimarães Rosa, de Murilo Rubião a Ignácio de Loyola Brandão, de Monteiro Lobato a José J. Veiga, há dezenas de autores que escapam dessa análise superficial, que levam temas e tramas da literatura brasileira muito além da fronteira. Histórias de horror quase sempre, fantasia e ficção científica eventualmente, aparecem em todas as épocas, desde que foi permitido que os brasileiros publicassem o que escreviam.
Hoje temos um real movimento em busca desses horizontes, iniciado antes de tudo pelos leitores fãs de ficção científica que, na dificuldade de encontrar o que queriam, passaram a compor suas próprias histórias em fanzines, a princípio, e em blogues, mais recentemente. Esse movimento pré-fabricado nos anos 1960 e 1980, cresceu muito na era da internet e eclipsou aquele fluxo natural que continua lá, contudo.
Há quem diga que as obras de autores ligados ao realismo fantástico não são parte desse movimento. E não são mesmo. São autores mais incorporados ao mainstream, nunca identificados como "fãs", que emprestam para si a estética e os mecanismos de uma tradição latinoamericana que vem de muito mais longe. As histórias tem textura de weird fiction (referência à revista americana Weird Tales, publicada entre 1923 e 1954), em que os contornos da literatura de gênero não são claros e seus preciosos protocolos não são respeitados.
Este é o caso dos dez contos que formam esta coletânea de Olavo Amaral, portoalegrense nascido em 1979, médico, neurocientista, cineasta e autor premiado, que tem em sua bibliografia as coletâneas Estática (2006) e Correnteza e escombros (2012), também relacionadas ao fantástico e ambas disponíveis para leitura na internet.
Dicionário de línguas imaginárias é o primeiro livro do autor pela Companhia das Letras e guarda tributo à Jorge Luis Borges, especialmente por conta do tema. Mas, enquanto Borges tinha no livro o seu objeto de especulação, Amaral volta sua atenção para a oralidade, a língua, e assim sustenta a mesma metalinguagem borgeana.
O conto que abre a seleta é "Uok phlau", estruturado na forma de um artigo sobre o trabalho de campo de um antropólogo junto a tribo nativa dos yualapeng, em cuja língua não existe a noção de "ir" e "vir".
"Travessia" é uma história mais convencional, sobre quatro homens que não falam a mesma língua e, por algum motivo não explicitado, estão presos em um contêiner, e os desdobramentos do estresse, medo e preconceito que surgem entre eles.
"Mixtape" é uma história sincopada, de tons eróticos, sobre um homem obcecado por um vídeo pornográfico.
"Quarto a beira d'água" retoma o estilo fantástico ao contar a tragédia de um casal depois que surge uma poça de água no meio de seu quarto de dormir.
"Iceberg" é uma fantasia com laivos de ficção científica. Um antropólogo passa o inverno observando à distância uma tribo de homens primitivos que vivem próximos ao litoral. O relato não deixa claro o que realmente está acontecendo, mas vamos sentir o estranhamento quando chega o verão.
"Choeung ek" apresenta uma sociedade que tem no turismo uma grande atividade comercial. Ali, os viajantes são encaminhados às "atrações" locais, que contam uma história tétrica e antiga de violência e crueldade, tudo muito profissional, é claro. Mas há um passeio especial, exclusivo para os turistas mais curiosos.
"O ano em que nos tornamos ciborgues" é uma ficção científica distópica, sobre uma revolução proletária fracassada que dá lugar a uma sociedade de coalizão. Sobreviventes mutilados pelo conflito são submetidos a um tratamento a base de implantes, mas ainda há muito com que se revoltar.
Em "Esquecendo Valdéz", o autor se achega ao modelo borgeano ao contar a história de um homem que forjou um intelectual inexistente a partir da produção de um livro no qual baseou seu trabalho acadêmico.
"Última balsa" tem um que de A estrada, de Cormac McCarthy. Conta o drama de um homem e um menino autista tentando sobreviver em uma ilha deserta após um naufrágio.
"Estepe" mostra o drama de um homem que tem uma doença incurável que avança tanto mais rápido quanto ele fala. O jeito é parar de falar e, para isso, ele vai viver com uma tribo nômade nas congeladas estepes russas, que não por acaso é o povo que menos fala no mundo.
Um livro curioso e perturbador, que sustenta a tradição do realismo fantástico brasileiro e latinoamericano com qualidades inegáveis, ótimas ideias e texto fluente. Leitura altamente recomendável que mostra que, ao contrário do que se pensa, há inteligência fora do fandom.
— Cesar Silva
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