Uma das primeiras manifestações editorialmente articuladas da literatura de gênero foi a Weird Fiction, que levou esse nome por estar associada à revista "pulp" Weird Tales, que circulou entre 1923 e 1954 nos Estados Unidos da América. Weird Tales era basicamente uma revista de contos de horror, mas como naqueles tempos pioneiros ainda não havia protocolos claros que estabelececem as características de cada um dos gêneros, os autores da revista costumavam misturá-los em receitas muito variadas, de modo que é quase impossível classificá-las em um gênero específico. São, portanto, Weird Fiction. Autores como H. P. Lovecraft, Robert E. Howard e Clark Ashton Smith são representantes destacados desse período. E como não havia limite algum, não raro os autores acrescentavam doses generosas de dramas épicos, e um dos período mais recorrentes era faroeste que, mais tarde, tornou-se também um gênero em si.
Para um autor americano do início do século XX, colocar histórias estranhas num ambiente de faroeste não era uma coisa incomum, afinal, em muitos lugares dos EUA, os cenários contuavam sendo os mesmos do século anterior. Contudo, esse tipo de narrativa acabou por ganhar corpo próprio, de forma a se tornar ele mesmo um gênero, que é hoje conhecido como Weird West.
Pode parecer estranho um autor brasileiro se interessar por esse gênero tão estravagante e distante da cultura local, até porque temos ambientes similares ainda pouco explorados, como o visto na novela de horror O fascínio, de Tabajara Ruas, e o filme longa metragem Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Mas visto de dentro do fandom, é natural que um autor fã apaixonado pela Weird Fiction sinta o impulso de fazer algo nessa linha. Tanto que já tivemos, em anos recentes, as antologias Cursed City (2011, Estronho), Sagas Volume 2: Estranho Oeste (2012, Argonautas) e os romances Areia nos dentes, de Antonio Xerxenesky (2008, Não) e O peregrino: Em busca das crianças perdidas (2011, Draco), de Tibor Moricz.
Este é também o caso de Duda Falcão, escritor gaúcho que há anos vem desenvolvendo uma robusta carreira como autor de horror sobrenatural. Sua especialidade são as narrativas curtas, que já reuniu em quatro volumes: Protetores (2012, Underworld)), Mausoléu (2013, Argonautas), Treze (2015, Avec) e Comboio de espectros (2017, Avec). Seu trabalho mais recente é justamente um fix-up (romance construído a partir de contos independentes de um mesmo contexto) de Weird West com o pitoresco título O estranho Oeste de Kane Blackmoon, publicado em 2019 pela Avec, editora que nos últimos anos tem executado um trabalho muito consistente no ambiente da ficção fantástica.
O estranho oeste de Kane Blackmoon conta a história de um mestiço de branco e índio que sustenta sua vida como caçador de recompensas. Numa de suas caçadas, Blackmoon conhece Sunset Bison, xamã lakota (sioux, para os inimigos) que pede sua ajuda na missão sagrada de recapturar um demônio e o inicia nos mistérios do xamanismo. Mas, na luta contra o ente sobrenatural que ocupava o corpo de um pistoleiro cruel, o xamã acaba por ser ferido de morte. Nos seus últimos momentos, Sunset Bison passa para Blackmoon a tarefa de encontrar e prender o demônio. Para isso, ele terá de desenvolver suas capacidades místicas ainda incipientes, pois o demônio não é nem de longe o único ente do mal que se arrasta pelos desertos e pradarias do oeste selvagem.
O romance é composto de oito contos dispostos linearmente na ordem dos acontecimentos: "Homem-urso", Bisão do Sol Poente", "Armadilha", Resgate do mundo inferior", "Procurado", Sob os auspícios do Corvo", "Nevasca", "O trem do inferno". Não há pretenção de situar as histórias de Kane Blackmoon num contexto histórico realista, como acontece, por exemplo, na série italiana de quadrinhos Mágico Vento, na qual circulam personalidades famosas em ambientes e fatos historicamente reconhecíveis, que dão à narrativa um caráter elegante e sofisticado. Neste aspecto, o romance de Falcão tem uma pegada mais similar ao primeiro volume da série A Torre Negra, de Stephen King: o estranho Oeste de Blackmoon é uma ambiente mítico, totalmente descolado do real, no qual anacronismos não são relevantes e podem até ser elementos dramáticos que fazem parte das histórias.
A leitura do romance é agradável, muito por conta do talento de Falcão em contar histórias. Percebe-se a preocupação do autor em criar um texto que possa ser prazeroso e compreensível para leitores de todas as idades. Não há cenas grotescas e sanguinolentas em exagero, e a violência intrínseca ao gênero tem a estética das histórias em quadrinhos. O resultado é mais para uma aventura de dark fantasy do que de horror gore, embora tenha potencial para isso. Ainda traz, em camadas mais profundas, a questão do preconceito, uma vez que o personagem é um pária tanto entre os brancos quanto entre os indígenas, mas esse tema não foi explorado em profundidade.
Kane Blackmoon acaba por se tornar um dos personagens de referência da literatura nacional de horror e teve ótima repercussão quando do lançamento do livro, em 2019. Ainda que o romance tenha um desfecho bastante satisfatório, acredito ser possível dar sequência às suas histórias, pois o mal do mundo é inesgotável. Mas isso é lá com Duda Falcão.
— Cesar Silva
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