sábado, 26 de setembro de 2020

A repartição do tempo

A repartição do tempo, direção de Santiago Dellape. Brasil, cor, 2018. 100 minutos.

É triste a sina dos brasileiros, e os inventores não escapam a ela. Essa é a constatação a qual chegamos ao assistir A repartição do tempo, longa metragem dirigido por Santiago Dellape, com roteiro original de Davi Mattos, que chegou às telas no início de 2018 depois de cumprir um longo roteiro de festivais no Brasil e no exterior. O trailer pode ser visto aqui.
Conta a história de um grupo de funcionários de um escritório de registro de patentes em Brasília, que ganhou celebridade depois que uma revista a classificou como a repartição pública mais ineficiente do país. A fama inoportuna irrita profundamente o chefe da seção, filho de uma senadora da república que o colocou lá para que ficasse longe de problemas. De fato, o lugar é um poço de absurdos, em que os funcionários dormem, embebedam-se, drogam-se, traficam e desenham histórias em quadrinhos durante o expediente. O momento mais festejado do dia é quando, no final do dia, ao som de A voz do Brasil, todos fazem fila para bater o ponto de saída.
Contudo, por um acaso, no mesmo dia em que a reportagem é publicada, o inventor Dr. Brasil (interpretado por Tonico Pereira) deposita para análise do departamento um protótipo funcional de uma máquina do tempo por ele construída. Ao arquivá-la no depósito, o abelhudo Jonas (Edu Moraes), inadvertidamente faz uma curta viagem no tempo, que o duplica por alguns minutos. O fenômeno não passa despercebido do chefe da seção Lisboa (Eucir de Souza), que vê nisso a oportunidade de tirar seu departamento da vexatória posição em que se encontra. Depois de embebedar os funcionários com a promessa de uma licença-prêmio, duplica cada um deles e escraviza os duplos num abrigo nuclear escondido no subsolo da repartição, para que produzam a força o trabalho que os funcionários originais jamais fariam. O plano parece caminhar bem, até que o duplo de Jonas consegue escapar da reclusão, sendo o original jogado por engano em seu lugar. O duplo tenta de todas as formas libertar seus companheiros de cárcere, mas tem que enfrentar não apenas a descrença dos originais dos colegas, mas também os duplos do segurança troglodita e da secretária piranha que estão mancomunados com o chefe.
Anunciado como uma "comédia de ficção científica", não há dúvida que é fc, mas da comédia passa longe. Na verdade, é uma história muito dramática, ainda que com forte viés irônico.
O momento mais divertido do filme é quando entra em cena um delegado da Polícia Civil interpretado por Dedé Santana, mais por conta da presença física do comediante, que é naturalmente engraçado, do que pela situção em si que, de fato, não tem nada de engraçada.
Do ponto de vista técnico, o filme é muito bem realizado, com boas soluções visuais, efeitos especiais eficientes, uma cenografia setentista irretocável e ótimas atuações. Como fc, contudo, tem lá suas falhas: o fenômeno da duplicação não convence e a história ignora a maior parte dos paradoxos temporais, preservando apenas aqueles de que precisa para contar a história.
O maior problema, contudo, é o alto nível de preconceito do filme com relação ao funcionalismo público, tanto que chega a ser angustiante e anula todo o pretenso humor da situação.
Também estão no filme os atores Bianca Müller, Antonio Abujamra, Andrade Júnior, André Deca, Bidô Galvão, Carmem Moretzsohn, Yasmim Sant'Anna, Dina Brandão, José de Campos, Lauro Montana, Ricardo Pipo, Romulo Augusto, Rossana Viegas, Selma Egrei e Sérgio Hondjakoff.
Após os créditos, um pequeno curta mostra Dr. Brasil retornando à repartição com seu novo invento, para levar a confusão a um novo paradigma.
É interessante notar que a ficção fantástica, ainda que incipiente, tem comparecido com mais frequência no cinema nacional, com produções bem realizadas, inclusive com componentes culturais bem mais evidentes do que é geralmente encontrado na fc&f literária produzida aqui. Uma interação maior entre as duas artes decerto que poderia promover alguma evolução em ambas, isso se a política cultural brasileira não arrasar com tudo antes, como parece pretender.
Cesar Silva

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