Mestre
das Marés, Roberto de Sousa Causo. Arte de capa de Vagner
Vargas. 288 páginas. São Paulo: Devir, Coleção Pulsar, 2018.
Este
romance é o terceiro livro de Causo em seu universo ficcional GalAxis, e o
segundo da série As Lições do Matador. O primeiro foi Glória Sombria
(2013), que mostra uma das primeiras missões do herói Jonas Peregrino, e o
segundo traz as aventuras de Shiroma: Matadora Cyborgue (2015). Neste
meio tempo outras histórias curtas de ambos os personagens foram escritas e
publicadas. Mestre das Marés é, isto sim, o trabalho mais ambicioso
deste universo até o momento, e um dos melhores já escritos pelo autor.
Nesta
nova missão, o Capitão Jonas Peregrino e sua unidade dos Jaguares são enviados
para resgatar uma estação internacional de pesquisa, em órbita do planeta
Firedrake Gamma-M, depois que ela é atacada pelas naves-robôs dos tadais, a
misteriosa espécie alienígena que combate a expansão humana pela Via-Láctea e
ameaça também outras civilizações alienígenas.
Os
cientistas se refugiam no planeta, mas ele é duramente atingido por jatos
relativíscos que começam a ser disparados pelo buraco negro dos arredores, e
que era pesquisado pelos cientistas. Gamma-M tem sua atmosfera eliminada e é só
uma questão de tempo para que seja inteiramente destruído pela singularidade,
chamada pelos cientistas terrestres de Firedrake, o dragão que cospe fogo.
Contudo, talvez a metáfora mais apropriada seja a de Mestre das Marés, a
tradução do nome Agu-Du’svarah, dado pela antiga civilização do Povo de Riv — vistos
antes na noveleta “A Alma de Um Mundo”.[1]
Conforme
os cientistas da estação Roger Penrose — homenagem antecipada ao físico inglês
vencedor do Nobel em 2020 — e Peregrino irão constatar, o ataque ocorreu porque
nos subterrâneos do planeta oculta-se uma instalação tadai secreta, com
dispositivos de alta tecnologia e informações que podem ajudar na guerra
travada pela Terra e seus aliados contra os inimigos. A missão, então, passa a
ser muito mais complexa e perigosa do que inicialmente prevista, pois além de
resgatar os cientistas, Peregrino deve levar o que puder do dispositivo.
Como
já mostrado nas histórias anteriores, no século XXV embora a Terra tenha se
expandido pela galáxia suas divisões políticas internas continuaram. Peregrino
é um militar da Latinoamérica, a menos afluente das alianças continentais. As
outras são a Aliança Transatlântico-Pacífico e os Euro-Russos. Em meio às
rivalidades políticas, os humanos vivem nas chamadas Zonas de Expansão, com um
grande interesse pela Esfera, a região mais rica e habitada por civilizações
alienígenas, como o já citado Povo de Riv. De certa forma, é uma amostra de
incrível poder econômico, militar e tecnológico dos humanos, conseguir se
espalhar pela galáxia, se equiparando a outras civilizações que, ao que parece,
conseguiram sua união política interna.
Mas
este contexto político maior é abordado de forma indireta, por meio das
estratégias e intrigas entre as alianças para obter poder e influência entre os
humanos e, destes, com outros povos da galáxia. Em Mestre das Marés tal
contexto se desdobra aos poucos, principalmente quando vai se tornando claro
que não há um mesmo objetivo entre os cientistas e Peregrino, quanto a quem
deve ser o destinatário das valiosas informações do dispositivo tadai.
Contudo,
a grande força do romance é a missão em si. Um grupo de naves espaciais se
aproxima de um planeta que está sendo devorado por um buraco negro e ainda sob
a ameaça de extermínio pelos inimigos tadais. Como diz o subtítulo, a aventura
é mesmo uma “jornada ao inferno de um mundo destruído por um buraco negro”. O
enredo se concentra na descida a Gamma-M e o drama explícito de, mais do que
resgatar os cientistas, obter as informações dos tadais a tempo de não ser
destruído por Agu-Dus’varah.
Causo
narra com detalhes extremos toda a sequência de acontecimentos dramáticos, em
que o risco de morte é iminente a cada virada de página. Isso dá uma sensação
de certa angústia ao leitor, de se estar diante de verdadeiras
situações-limite, em que cada decisão pode ser a última. Neste livro, mais do
que nas histórias anteriores, é mostrado um Peregrino mais sensível ao drama
que o cerca. Não em relação à missão militar em si, mas ao contexto de estar
diante da maior força conhecida da natureza, o buraco negro. A médica da equipe
dos cientistas o diagnostica com a “Síndrome de Reinhardt”, com aumento intenso
da ansiedade e numa situação próxima do pânico, diante da sensação de
descontrole e morte iminente — a popular síndrome do pânico. Para um militar em
comando isso poderia ser embaraçoso, mas Peregrino contorna a situação, ao se
concentrar nos objetivos em si de resgatar os cientistas e o dispositivo tadai.
Mesmo
que o aspecto dramático da trama seja evidente, por vezes, é preciso um esforço
do leitor em acompanhar capítulos com descrições detalhadas dos aspectos
científicos e militares envolvidos na missão. Causo mostra que pesquisou muito
para obter um resultado convincente, principalmente sobre os conceitos de
Física relativos à dinâmica difícil de um buraco negro. Se ficasse apenas neste
aspecto o romance já chamaria a atenção como uma peça de ficção científica hard
extrema, talvez só com paralelo com os escritos de Jorge Luiz Calife, em seu
Universo da Tríade. Mas em meio a este contexto mais árido, há a dimensão
humana do sofrimento, entremeado com seguidas citações de Peregrino de trechos
dos poemas de Dante Alighieri (1265-1321), no mergulho poético de extrema força
simbólica religiosa de sua obra A Divina Comédia (1304-1311), em
especial na seção relativa ao “Inferno”. Embora seja de se pensar como
Peregrino fosse um especialista numa obra como essa, por outro lado é parte da
densidade de um personagem que vai além das aparências. Neste sentido, tais
paralelos entre o que ele e seus comandados viveram nas entranhas de um planeta
prestes a ser destruído e as imagens poéticas de Dante, conferem uma dimensão
épica à aventura.
Outro
diferencial é a presença de uma jornalista que foi destacada para escrever um
perfil nada amigável de Peregrino. Por cerca de metade do livro, as seções são
entremeadas com a missão militar em si e as considerações pessoais nada
simpáticas de Camila Lopes ao personagem de sua reportagem. Chega a causar
incômodo a desconfiança da jornalista, para quem já acompanhou a postura ética de
Peregrino em outras histórias, mas, como irá ser revelado, tudo fazia parte de
um esquema oculto para prejudicar o prestígio de um militar que obteve grandes
vitórias contra os tadais em missões anteriores.
Mestre
da Marés é um dos melhores romances hard da ficção
científica brasileira. Não que haja muitos neste subgênero entre nós, mas, como
já disse, o autor é eficaz em trabalhar de forma didática tantos conceitos,
justificando-os como necessários para o tipo de história que está sendo
narrada, e tornando palatável para o leitor. O romance ainda é complementado
por uma seção de “anexos”, com várias informações e curiosidades sobre o
Universo GalAxis. Trabalho caprichado.
Apesar
de ser o maior texto já escrito sobre este universo, muitas questões são
deliberadamente deixadas em aberto com a conclusão do romance. As informações
do dispositivo tadai foram realmente perdidas? A que interesses de fato serviam
os cientistas da Roger Penrose? Qual o possível papel das outras alianças
terrestres rivais da Latinoamérica? Quais os segredos do misterioso Povo de
Riv, possivelmente o maior aliado dos humanos, mas com seus próprios interesses
na guerra? Além, é claro da persistência do mistério dos próprios tadais. É um
empolgante universo ficcional em construção, que só instiga o leitor a
continuar a acompanhar as próximas aventuras.
—Marcello Simão Branco
Agora
em janeiro de 2024, o Universo GalAxis completa 15 anos. Para comemorar
a data está disponível quatro papéis de parede ilustrados por Vagner Vargas.
Podem ser baixados gratuitamente: http://universogalaxis.com.br/universo-galaxis-faz-15-anos-em-2023/
[1] Publicado primeiro na antologia Space Opera:
Jornadas Inimagináveis em uma Galáxia não Muito Distante, organizada por
Hugo Vera e Larissa Caruso. Editora Draco, 2012.
Muito agradecido pela resenha aprofundada e positiva. Grato, em especial, pela comparação com Calife.
ResponderExcluir