sábado, 14 de março de 2020

O Mundo dos Draags


O Mundo dos Draags (Oms em Série), Stefan Wul. Tradução de Mário Henrique Leiria. Capa de Lima de Freitas. 155 páginas. Lisboa: Edição Livros do Brasil, Coleção Argonauta, no. 64, 1961. Lançado originalmente em 1957.

Este é o quarto romance do autor publicado na célebre coleção Fleuve Noir nos anos 1950 e, mais uma vez, temos como pano de fundo uma ameaça ao destino da humanidade. Tal situação já havia sido tratada em Regresso a Zero (Retour à “0”) (1956) e Pré-História do Futuro (Niourk) (1957), respectivamente, seu primeiro e terceiro romance. Em Regresso a Zero através de um confronto catastrófico entre a velha Terra e o emergente poder de uma Lua rebelde habitada por criminosos. Já no segundo o reerguimento da humanidade após um apocalipse nuclear que dizimou quase toda a civilização.
Agora com O Mundo dos Draags a humanidade encontra-se em xeque, numa posição inferior e indigna. Somos apresentados ao mundo de Ygam onde a espécie dominante chamada draags escraviza os humanos – chamados de oms – não como serviçais, mas pior que isso, como animais de estimação, considerados como estúpidos e pouco inteligentes. Será esse nosso possível destino no caso de um contato com uma espécie alienígena tecnologicamente mais avançada, belicosa e, eventualmente, mais inteligente? Realmente me incomodou ver nossa espécie sendo humilhada, numa relação paternal e opressiva. E num certo sentido talvez possamos dizer que este livro despretensioso de Wul tenha influenciado o bem mais reconhecido O Planeta dos Macacos (La Planète de Singe) (1963), do também francês Pierre Boulle (1912-1994), embora não com uma dominação alienígena, mas de uma espécie de nosso próprio planeta.
Os draags invadiram a Terra em nosso futuro, mas já distante da época em que se passa a história. Levaram para seu planeta seres humanos, considerados como passivos e resignados. Havíamos chegado a uma condição de bem-estar material consolidado que, gradativamente, nos teria deixado fracos para lutar, acostumados com muitos anos sem rivalidades ou problemas sérios a resolver.
O início da história nos mostra a vida de um om domesticado, cuidado com carinho, mas subjugado apenas como estimação para famílias e, principalmente, crianças. Os draags têm a aparência semelhante à de sapos enormes, cerca de cinco vezes a altura de um om adulto. Depois de séculos de escravidão, por meio da fuga de um jovem om, Wul nos conta a lenta saga de resistência que emergirá entre os oms, que sem os donos, vivem em pequenos grupos nos esgotos, parques, lugares ermos da grande metrópole de Ygam.
Através da liderança de Terr – mostrado no início da história – os oms organizam-se crescentemente, unindo-se em coletivos cada vez maiores e mais articulados. Um dos meios para que eles readquirissem o gosto pelo conhecimento era através de fones de ouvido, usados para alfabetizar as crianças draags, que eles roubavam.
Contudo, apesar dos alertas seguidos de Singh, um dos mais prestigiados cientistas draags, de que os oms não deviam ser subestimados, pois estavam readquirindo sua inteligência e capacidade de rebeldia, os draags só o levaram a sério quando era muito tarde. Isso porque os oms, por causa da escravidão e conforto lhes imposta pelos draags, recuperaram seu desejo por liberdade, novamente lutando por sua sobrevivência para se organizar como seres autônomos e dotados de razão.
Sendo Ygam um planeta enorme em comparação com a Terra – com uma superfície distribuída por cinco continentes, três deles artificiais, construídos pela tecnologia draag, os oms conseguem se refugiar num velho porto abandonado e organizar-se numa sociedade. Assim, eles constroem três navios e navegam em direção a um dos dois continentes naturais, pouco habitados pelos draags.
Como já deve antever o leitor presume-se um confronto entre as duas civilizações, agora praticamente invertendo a situação: os conquistadores draags acomodados e sem disposição para a luta e os oms renascidos em sua busca por dignidade e liberdade. Podemos dizer que estamos diante de uma metáfora sobre racismo, numa crítica ao imperialismo europeu – e francês em particular – com relação aos povos conquistados pela força militar e discriminados por uma suposta – e na verdade absurda – superioridade cultural.
Mas Wul não problematiza questões como estas, escreve como que com um impulso natural e irresistível, dando a impressão – como já visto em outros de seus livros – de não planejar o enredo. Assim, a força da história repousa na fluência narrativa e na movimentação dos acontecimentos, sobressaindo o pleno entretenimento. Em todo caso, nota-se em O Mundo dos Draags um subtexto político mais presente do que nos livros anteriores.
Notável e instigante como os outros, é digno de registro que também foi publicado no Brasil como O Cativeiro Humano, pela Tridente Edições e Artes Gráficas, coleção FC no. 5, em 1970. Além disso recebeu também uma interessante adaptação ao cinema de animação em 1973, com o título de La Planète Seuvage (Fantastic Planet, em inglês), dirigido em tons psicodélicos e surrealistas bem à moda dos anos 1970 por René Laloux. Bem recebido pela crítica levou o Prêmio do Jurí do Festival de Cannes de 1973. Tive a sorte de conseguir uma cópia da versão em inglês, mas não foi lançado no mercado audiovisual no Brasil, embora seja possível assisti-lo na internet.
Em suma, O Mundo dos Draags é mais uma das aventuras pulps de Stefan Wul, embora aqui o tom de crítica social e subtexto político tenha um pouco mais de espaço do que seus três livros anteriores, de tonalidades mais fantásticas e delirantes.

Marcello Simão Branco

Nenhum comentário:

Postar um comentário