quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

O Círculo, Dave Eggers

O Círculo (The Circle), Dave Eggers. 522 páginas. Tradução de Rubens Figueiredo. Capa de Jessica Hische. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2014.

Houve um tempo em que a ficção científica era um gênero considerado escapista e alienado, porque suas histórias geralmente se passavam séculos ou até milênios no futuro, no espaço sideral ou em planetas distantes, nos quais sociedades absurdas discutiam problemas de uma forma tão extrapolada que eram fantasias de sonho, valendo-se apenas das correrias dos heróis para salvar mocinhas indefesas das garras de alienígenas mal intencionados. No meio dessa ficção de gosto duvidoso, que fazia sucesso entre os adolescentes, alguns autores logravam oferecer enredos um tanto mais densos. 1984, de George Orwell, Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, A laranja mecânica, de Anthony Burgess, Nós, de Yevgeny Zamyatin, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, A beira do fim, de Harry Harrison, entre outros, surpreendiam com os horrores reais de opressões que grassavam, e ainda acontecem, em várias partes do mundo. Eram as chamadas distopias – o inverso de utopias – um tipo de especulação político-social que antecipava os descaminhos da sociedade.
Atualmente, as distopias tornaram-se um bom mercado. Desenvolvidas a partir de mundos de alta fantasia, séries como Jogos vorazes, de Suzanne Collins, e Divergente, de Veronica Roth, têm atraído grande número de leitores jovens. Ainda que estejam distantes, em impacto e relevância, daquelas distopias clássicas, numa coisa são semelhantes: ainda que aterradoras, parecem distantes e, certamente, evitáveis.
Esta não é o caso de O Círculo, romance de ficção científica do jornalista americano Dave Eggers, recentemente publicado no Brasil pela Editora Companhia das Letras, com tradução de Rubens Figueiredo.
A princípio, parece um exagero tratar O Círculo como um romance distópico. Isso porque a história de Eggers acontece praticamente em nosso próprio tempo, um ou dois anos no futuro, no máximo. As coisas que vemos na maior parte da narrativa já fazem parte do nosso dia a dia e não seria de estranhar que muita gente rejeitasse a classificação de ficção científica para ele.
O Círculo é uma empresa de tecnologia, luxuosa e sofisticada, sucessora das atuais redes sociais que, através do uso sistemático dos programas de busca, construiu um enorme e centralizado banco de dados capaz de oferecer um leque inesgotável de oportunidades para jovens empreendedores. Além disso, o Círculo é uma megarrede social, fusão do Google com o Facebook e o Twitter, o maior vício de uma comunidade global entusiasmada com o poder de se meter na vida uns dos outros. É lá que vai trabalhar a irrequieta e um tanto insegura Mae. Recém-saída da universidade, ela recebeu uma proposta de trabalho no Círculo de Annie, uma bem posicionada executiva da empresa que foi sua colega de dormitório no campus. Mae inicia sua carreira no Círculo no departamento de atendimento ao cliente e, como vamos perceber, a invasão da tecnologia é avassaladora nesse ambiente de trabalho.
A princípio, Mae parece não se adaptar bem ao modelo exigido dos empregados no Círculo. Seus pais vivem numa pequena cidade a 200 quilômetros da sede da empresa, para onde ela viaja periodicamente para visitar o pai, que sofre de um tipo de esclerose progressiva, quando ela também aproveita para praticar um esporte solitário do qual gosta muito, a canoagem. Suas ausências, ainda que fora do horário de trabalho, não são bem recebidas por seus superiores, que passam a pressioná-la para adotar um estilo de vida mais "transparente", o que significa compartilhar a maior quantidade possível de dados pessoais na grande rede administrada pela empresa. Preocupada em perder o emprego, Mae torna-se uma praticante exageradamente entusiasmada desse novo modo de vida, ao ponto de forjar as máximas que passam a nortear as ações do Círculo "Segredos são mentiras", "Compartilhar é cuidar" e "Privacidade é roubo", criadas num processo que, não por acaso, lembra o duplipensar orwelliano.
Porém, há um estranho no Círculo: Kalden, homem que ninguém parece conhecer e não tem sequer um registro na onipresente, onisciente e quase onipotente rede. Mae se envolve com Kalden, que tenta demovê-la da doutrina do Círculo. Dividida entre a paixão por Kalden e a lealdade ao Círculo, o dilema levará Mae às franjas do apocalipse, quando o Círculo – cujo logotipo é uma letra C – passa a almejar a "completude", que seria fechá-lo num círculo perfeito, e isso é bem mais do que uma figura ilustrativa. As coisas vão se complicar ainda mais quando Mae decide convencer Mercer, seu ex-namorado ludita, e os próprios pais a submeterem-se ao Círculo, e nem mesmo as mais trágicas consequências abalam Mae: o vício pela tecnologia a transformou numa máquina faminta de atenção e sucesso.
Eggers também investe na forma narrativa. Seu texto, apoiado principalmente em diálogos, não faz uso de travessões e todas as falas são grafadas entre aspas. Também não há capítulos, com o texto se alongando como uma tortura chinesa, contudo, impossível de largar. A única concessão do autor foi a divisão do texto em três partes estranhamente irregulares. A primeira parte tem cerca de 320 páginas e narra os primeiros dias de Mae no Círculo. O Livro II tem pouco menos de 200 páginas e acompanha a transformação inconsciente e gradativa de Mae numa alucinada entidade pós-humana. A última parte, o Livro III, tem apenas quatro páginas, mas é a que vai levar leitor a nocaute; um gancho tão forte que nos faz perder as meias. Tudo porque, apesar do evidentes descaminhos, o Círculo parece representar exatamente aquilo que vemos de mais positivo na revolução digital; ela precisa estar certa e compactuamos com isso. Seus anseios são legítimos, os resultados são favoráveis e positivos, e cada pequena vitória de Mae e do Círculo parecem ser a vitória do bem e do bom senso em direção a uma humanidade melhor, progressista e sadia. Contudo...
A leitura de O Círculo deve causar um poderoso efeito sobre os usuários das redes sociais, especialmente aqueles dedicados a influir na sociedade para torná-la mais justa. Porque, mesmo sob a melhor das intenções, quando isso se torna uma impostura, a utopia inevitavelmente atravessa a linha tênue que a separa da distopia.
O desfecho do romance é avassalador e deixa uma sensação quase insuportável de urgência e inevitabilidade semelhante a que experimentamos na leitura de 1984, do qual O Círculo é herdeiro legítimo.
— Cesar Silva

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