quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Idade da decadência: Inferno em Khallah


Idade da decadência: Inferno em KhallahRogério Amaral de Vasconcellos, Cláudia Furtado, Diva Bernardes Sepulveda, Edison Luis Raffi Silveira e Marco A. M. Bourguignon. 146 páginas. Editora Mitsukai, Projeto Slev, Rio de Janeiro, 2001.

Idade da decadência: Inferno em Khallah é um romance de ficção científica escrito pelo método round robin, sob organização de Rogério Amaral de Vasconcellos que, além do próprio organizador, envolveu os autores Cláudia Furtado, Diva Bernardes Sepulveda, Edison Luis Raffi Silveira e Marco A. M. Bourguignon.
Round robin é uma brincadeira cultural entre amigos, na qual cada autor é responsável pela redação de um capítulo de uma história proposta pelo organizador, com liberdade para acrescentar o que bem entender e deixar um desafio para ser resolvido pelo autor seguinte, sempre preocupando-se em manter alguma coerência narrativa. Em tempos de baixa tecnologia, esse procedimento era realizado pelo correio e nem sempre funcionava a contento, mas com o advento da Internet foi muito facilitado. O processo que viabilizou a composição da obra foi batizado de Slev, sigla que significa Suruba Literária Experimental Virtual, nascida no saite Oficina de Escritores.
A novela, dividida em três partes, tem cerca de 65 mil palavras no total e foi publicada no ano 2001 em formato digital e cópias por demanda. O exemplar analisado aqui foi impresso em jato-de-tinta e encadernado com espiral. Suas 146 páginas trazem também um glossário de neologismos, um quadro cronológico do planeta Khallah e um texto explicativo sobre sua história e geografia, acompanhado de um mapa do continente principal. O volume é apresentado como o livro dois de uma trilogia.
Trata-se de uma space-opera com muitas referências não disfarçadas a Duna (Frank Herbert), O senhor dos anéis (J. R. R. Tolkien), O mundo do rio (Phillip Jose Farmer), Crônicas de Majipoor (Robert Silverberg), O planeta dos dragões (Anne McCaffrey), diversos seriados de tv e filmes de cinema.
Conta a história de Lorn Cleópatra, clone da rainha Cleópatra do Egito, construída num planeta-babel chamado Khallah, no qual uma raça antiga e já desaparecida de alienígenas chamada Os Atemporais, instalou, por volta de 7900 AC, uma carrada de espécies sencientes coletadas de vários mundos destruídos por uma ameaça pouco explicada chamada Os Anéis.
Em Khallah, essas raças adaptaram-se e amalgamaram uma sociedade tribal por vários milênios, até a chegada da humanidade ao planeta, em 2390 DC. Mais avançados tecnologicamente, os humanos ali instalaram um gigantesco espaçoporto, construíram a cidade fortificada de Robotróia, considerada a jóia do universo, e impuseram aos autóctones um regime imperial de exploração e escravismo. Mas as viagens frequentes dos humanos acabaram por trazer a Khallah uma praga espacial chamada Fogo Alucinante, que matou dois terços da população, incluindo a humana, e jogou o planeta numa era de decadência política e tecnológica a partir de 2500 DC, isolando-o do universo.
A história relata os fatos a partir de 2575 DC, quando Robotróia passa por dificuldades políticas devido a atividades de guerrilheiros e terroristas. Essa nova Cleópatra, líder de um pelotão militar de elite a serviço da Imperatriz Numa de Robotróia, recebe ordens de atacar a comunidade paupérrima conhecida por Cinturão de Favelas, que cerca a cidade fortificada e abriga alguns desses guerrilheiros. O pelotão é formado exclusivamente por clones de personagens históricos como Mahatma Gandhi, Santos Dumont, John Lennon, e outros. Cleópatra vai envolver-se com alguns personagens alienígenas, principalmente Sykes, um nativo de aparência humanóide, ao ponto de converter-se a causa rebelde e enfrentar, ela mesma, a corrupta e devassa Imperatriz Numa e o poderio humano que dá suporte ao seu Governo.
Diga-se ainda que os Atemporais também foram os responsáveis pela coletagem das amostras de DNA humano ao longo da história da Terra. Os homens trombaram no espaço com uma nave abandonada pelos Atemporais e dela subtraíram boa quantidade de amostras, o que permitiu a clonagem desses personagens.
Apesar do cenário razoavelmente bem preparado, a equipe de escritores da Slev cometeu alguns pecados na construçâo do enredo de Idade da decadência: Inferno em Khallah. O principal deles talvez seja a escolha de um panorama clássico de space-opera, subgênero capa-e-espada  bastante explorado no período dourado da fc americana (décadas de 1940/1950) e praticamente esgotado do ponto de vista dramático, com poucos exemplos de qualidade na fc moderna.
A ambientação space-opera mascarou a sensibilidade dos autores para o fato que essa caracterização simplista não basta para suspender a incredibilidade do leitor. Os autores esforçam-se tanto em demonstrar que o poderio bélico humano estava de tal forma decadente que soa absurdo o fato de Robotróia manter sob controle político todo um planeta até aquele momento. Decadente como estava, Robotróia mal podia manter-se, quanto mais governar. O poder político já deveria estar longe de Robotróia e da Imperatriz há tempos, e essa situação irreal tira a verossimilhança do ambiente.
Outro problema é a dispersão dramática na metade inicial da narrativa, na qual grande quantidade de personagens superficialmente caracterizados não dão conta de quem é o quê. A história ganha fôlego somente quando os autores optam por centrar a ação na dupla Cleópatra/Sykes, cujo envolvimento romântico chega as vias de fato. Assim como quando a Imperatriz ganha função antagônica, juntamente com o bruxo Surabakh que, apesar de seu poder enorme, é vencido com facilidade pelo protagonista. Apesar disso, Surabakh não chega a morrer e os autores reservam a ele um epílogo dispensável, gancho para a sequência da história na Terra, estranhamente num futuro bastante próximo da nossa época.
Também soa estranho o modo pouco natural com que os personagens tratam-se em alguns momentos, como se os autores não soubessem seus nomes inteiros. Por exemplo, quando Cleópatra encontra com Santos Dumont no deserto de Khallah, o trata por Santos. Ora, militares, em geral, tratam-se pelo sobrenome, portanto seria mais natural se Cleópatra dirigir-se ao seu comandado por Dumont. Mas se o autor queria de fato dar ao encontro um caráter intimista, deveria ter usado Alberto, o primeiro nome de Santos Dumont, não o seu nome do meio.
Em alguns momentos na parte final da novela, o texto chega a empolgar, mas sua irregularidade geral (por conta do estilo fragmentado comum a todos os round-robins), da inexperiência dos autores (apenas Rogério teve experiência editorial anterior) e do objetivo da obra (ser uma espécie de jogo), faz com que toda a novela caia em um sem número de lugares comuns, com muitos personagens sem utilização adequada, perdidos na trama confusa. Uma boa enxugada poderia ser valiosa para tornar a leitura mais palatável, mas esse não era o objetivo das autores.
Mesmo assim, vale a pena conhecer o trabalho dessa turma, que está vários furos acima dos fanfics que abundam na internet e revistas especializadas.
Cesar Silva

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